sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Foucault e sua arqueologia: um fichamento do capítulo “ciência e saber”

Chamada de fase arqueológica, os primeiros trabalhos de Michel Foucault (1926-1984) se pautaram por uma pesquisa histórica que percorresse de alguma maneira o nascimento de determinadas “ciências” modernas. Em História da loucura, de 1961, o ponto de partida era o surgimento de uma disciplina psiquiátrica no século 19; em O nascimento da clínica, de 1963, a questão central era sobre a “cientifização” da medicina; e em As palavras e as coisas, de 1966, foram investigadas as condições de possibilidade para o aparecimento, especialmente, da filologia, da economia e da biologia. A arqueologia do saber, livro de 1969, em que explica a metodologia empregada em suas pesquisas, Foucault responde no último capítulo um questionamento que poderiam lhe fazer. Por um lado, as “histórias” que a arqueologia (foucaultiana) descreve não seriam as de disciplinas duvidosas que, talvez, não atingiram o nível de ciências como a matemática, a física e a química? E, por outro, a epistemologia não seria o estudo que descreve as ciências que se formaram a partir ou a despeito das disciplinas descritas pela arqueologia? Por isso, apresenta-se a relação entre a arqueologia e a análise das ciências.  

Desde o início, Foucault deixa claro que a arqueologia não se preocupa com as fronteiras colocadas por uma disciplina. Diferentemente de um tipo de relato histórico que contorna os desvios, as lacunas, as contradições, os acidentes e os erros para traçar uma síntese ou um caminho linear até chegar à disciplina em seu estágio atual, a arqueologia descreve positividades. Há, portanto, uma separação conceitual que diferencia “positividades” de “disciplinas”. A positividade de um discurso é, para Foucault, a definição de um espaço limitado de comunicação. Ela não tem a amplidão de uma disciplina tomada em toda a sua transformação histórica. Porém, através da positividade podemos saber se dois pensadores estão falando da “mesma coisa”, desenvolvendo o mesmo “campo conceitual”. A positividade desempenha o papel do que se chama por “a priori histórico”. Isto é, ela se refere às condições de realidade para enunciados. E os princípios segundo os quais os enunciados substituem, se transformam e desaparecem. As disciplinas podem servir como “iscas”. Mas nunca como limites. 

Um exemplo do uso da “isca”. O arqueólogo, tomando como base uma disciplina do presente, questiona-se como foi possível pensar da maneira como tal disciplina pensa ou como esta apareceu. Por isso se lança nas camadas do que foi dito e escrito no passado sobre algum objeto do saber. Vemos o método aplicado em História da Loucura, ali Foucault não separa obras literárias, filosóficas, opiniões comuns, documentos assinados por padres e figuras jurídicas ou discursos médicos. Descreve os acontecimentos do discurso, para perceber através deles mudanças nas maneiras de pensar e nas sensibilidades que, ademais, alteram as maneiras de conhecer e, logo, de emitir juízos sobre a loucura. Toda essa rede possibilita a instituição de novas práticas discursivas e não-discursivas.

O que tornou possível o nascimento da disciplina psiquiátrica no século 19 foi “todo um jogo de relações entre a hospitalização, a internação, as condições e os procedimentos da exclusão social, as regras da jurisprudência, as normas do trabalho industrial e da moral burguesa, em resumo, todo um conjunto que caracteriza, para essa prática discursiva, a formação de seus enunciados; mas essa prática não se manifesta somente em uma disciplina de status e pretensão científicos” (FOUCAULT, 2010, p. 200). Assim, a formação discursiva que tornou possível o aparecimento da psiquiatria não é coextensiva à própria disciplina, mas a ultrapassa e a cerca de todos os lados. Entre os séculos 17 e 18, não se percebe nenhuma disciplina que pudesse ser apontada como precursora da psiquiatria. Mas há sim toda uma prática discursiva com regularidades (ex: análise das febres, alteração dos humores ou enfermidades do cérebro) que se encontra não só no discurso médico, mas em regulamentos administrativos, em textos literários e filosóficos e etc. Há na época clássica (sec. 17-18), uma formação discursiva e uma positividade acessível à descrição, mas nenhuma disciplina comparável a psiquiatria.   

Mas então pode se perguntar se as positividades e as formações discursivas não são aí germes que prenunciam a chegada de uma disciplina. Foucault nega novamente. A descrição arqueológica não dá conta da totalidade dos enunciados que, ainda dentro de uma formação discursiva, se afastariam de qualquer semelhança dos enunciados de uma disciplina já constituída numa época posterior. Por isso: “As formações discursivas não são, pois, as ciências futuras no momento em que, ainda inconscientes de si mesmas, se constituem em surdina: não estão, na verdade, em um estado de subordinação teleológica em relação à ortogênese das ciências” (p. 202). Foucault quer escapar da narrativa do destino inevitável. Isto porque as possibilidades dentro de uma formação discursiva são tamanhas que poderiam levar a constituir “disciplinas” inteiramente distintas das que temos hoje. Logo, a formação discursiva não pode ser identificada como ciência, nem com disciplinas pouco científicas, nem às figuras que prenunciam as ciências. Então qual é a relação entre as positividades e as ciências?  

O saber 

A análise das positividades mostra as regras das quais uma prática discursiva forma conjuntos de enunciados, grupos de objetos, jogos de conceitos e séries de escolhas teóricas; tais regras são as bases para construir proposições. “Trata-se dos elementos que devem ter sido formados por uma prática discursiva, para que, eventualmente, se constituísse um discurso científico, especializado não só por sua forma e seu rigor, mas também pelos objetos de que se ocupa, os tipos de enunciação que põe em jogo, os conceitos que manipula e as estratégias que utiliza” (p. 204). A esse conjunto de elementos pode-se chamar saber. “Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico; um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso; um saber é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam; finalmente, um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso. Há saberes independentes das ciências; mas não há saber sem uma prática discursiva definida [...]” (p. 204-5). 

A arqueologia encontra o ponto de equilíbrio de sua análise no saber – em um domínio em que o sujeito é necessariamente situado e dependente, sem que jamais possa ser considerado titular (p. 205). Distinguindo os domínios científicos dos territórios arqueológicos, vemos que os últimos podem atravessar textos “literários” ou “filosóficos”, bem como científicos. O saber não está contido somente em demonstrações, mas pode estar em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos institucionais, decisões políticas. Por exemplo, “o território arqueológico da gramática geral compreende tanto os devaneios de Fabre d’Olivet (que jamais receberam status científico e se inscreveram antes no pensamento místico) quanto à análise das proposições atribuitivas (que era então aceita à luz da evidência e na qual a gramática gerativa pode reconhecer, hoje, sua verdade prefigurada)” (p. 206).

Quando uma ciência se constitui ela não retorna à prática discursiva em que aparecia, nem dissipa o saber que a cerca. “Aquilo que na época clássica era considerado como conhecimento médico das doenças da mente, ocupava no saber da loucura, um lugar muito limitado: não era mais que uma de suas superfícies de afloramento entre muitas outras (jurisprudência, casuística, regulamentação policial etc.); em compensação, as análises psicopatológicas do século 19, que também passavam por conhecimento científico das doenças mentais, desempenharam um papel muito diferente e bem mais importante no saber da loucura (papel de modelo e de instância de decisão). [...] A análise arqueológica em vez de definir uma relação de exclusão ou de subtração entre saber e ciência, mostra como a ciência se inscreve e funciona no elemento do saber” (p. 206-7). A influência da ideologia sobre o discurso científico, por exemplo, se articula onde a ciência se destaca sobre o saber; a ideologia não se identifica com o saber, não o exclui, mas se localiza nele, estrutura alguns de seus objetos, enunciações, conceitos e estratégias. A economia política é exemplar em seu papel na sociedade capitalista, servindo aos interesses da classe burguesa, por quem e para quem ela foi formulada. Mas qualquer descrição precisa das relações entre estrutura epistemológica da economia e sua função ideológica deverá passar pela análise da formação discursiva que lhe deu lugar e do conjunto de ferramentas conceituais e teóricas que foram elaboradas e sistematizadas.

Emergências distintivas das formações discursivas

Na descrição arqueológica há uma cronologia específica para situar metodologicamente os acontecimentos do discurso. 1º) O limiar de positividade descreve três instantes: quando uma prática discursiva se individualiza, torna-se autônoma; quando se encontra um único e mesmo sistema de formação de enunciados; e quando esse sistema se transforma. 2º) Limiar de epistemologização: momento em que um conjunto de enunciados, de uma formação discursiva, se delineia e pretende fazer valer normas de verificação e coerência e o fato de que ele exerce sobre o saber uma função dominante de modelo, crítica ou verificação. 3º) Limiar de cientificidade: momento em que uma figura epistemológica obedece a um certo número de critérios formais, quando seus enunciados respondem a certas leis de construção das proposições. 4º) Limiar de formalização: momento em que um discurso científico pode definir os axiomas que lhe são necessários, os elementos que usa, as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as transformações que aceita, desenvolvendo um edifício formal a partir de si mesmo (p. 209).

A dinâmica destes movimentos é para a arqueologia um de seus domínios de maior exploração. No entanto, trata-se de acontecimentos cuja dispersão não é evolutiva; a ordem singular é própria a cada formação discursiva. Um exemplo: No caso da economia, no século 17, reconhece-se um limiar de positividade. Ele coincide com a prática e a teoria do mercantilismo, mas sua epistemologização só se produziria um pouco mais tarde, no fim deste século ou no início do sec. 18, com Locke e Cantillon. No entanto, o séc. 19 assinala, ao mesmo tempo, com Ricardo, um novo tipo de positividade, uma nova forma de epistemologização, que Cournot e Jevons por sua vez modificariam, justamente na época em que Marx, a partir da economia política, faria aparecer uma prática discursiva inteiramente nova (p. 210).

A única ciência que é uma exceção em relação à historicidade de seus momentos de constituição é a matemática. Ela rompeu todos os limiares de uma só vez. Seu remodelamento é nada mais do que uma purificação que volta sempre ao começo. Daí a tentativa de todas as ciências em adotarem seu modelo, caminho que, além de ser um fracasso a todas as demais, também é um mal exemplo a ser seguido pelos historiadores das ciências (p. 211).

Os diferentes tipos de história das ciências

[1º tipo] No nível do limiar formalização é essa a história que a matemática conta de si mesma. O que ela foi em um dado momento jamais é lançado no campo da não-cientificidade, mas se encontra redefinido no edifício formal que a constitui. Para essa história da matemática, a álgebra de Diofano não é uma experiência que permanece em suspenso, é um caso particular da álgebra tal como conhecemos desde Abel e Galois.  [2º tipo] “É diferente a análise histórica que se situa no limiar da cientificidade e que se interroga sobre a maneira pela qual ele pôde ser transposto a partir de figuras epistemológicas diversas. Trata-se de saber como um conceito carregado de metáforas e conteúdos imaginários se purificou podendo assumir status e função de conceito científico. Ou de saber como uma ciência se estabeleceu acima e contra um nível pré-científico que a preparava e resistia a seu avanço, transpondo seus obstáculos e limitações”. Pesquisadores como Bachelard e Canguilhem apresentaram o modelo desta história de segundo tipo (p. 212-3).  Ela era diferente da história que faz uma análise recorrencial [1º tipo], que se situa no interior da própria ciência e de contar sua formalização no vocabulário formal que é hoje o seu. Essa história toma por norma a ciência já constituída, a história que ela conta é escandida pela oposição verdade e erro, racional e irracional, obstáculo e fecundidade, pureza e impureza, científico e não-científico. Trata-se de uma história epistemológica das ciências (p. 213).

[3º tipo] O terceiro tipo de análise histórica é o que toma como ponto de ataque o limiar de epistemologização. É esse o modelo que a arqueologia seguiu nos três primeiros trabalhos de Foucault. “Nesse nível, a cientificidade não serve como norma: o que se tenta revelar, na história arqueológica, são as práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber, e em que esse saber assume o status e o papel de ciência. Empreender nesse nível uma história das ciências não é descrever formações discursivas sem considerar estruturas epistemológicas; é mostrar como a instauração de uma ciência, e eventualmente sua passagem à formalização, pode ter encontrado sua possibilidade e incidência em uma formação discursiva e nas modificações de sua positividade” (p. 213). O intuito é “fazer aparecer todo o jogo das diferenças, das relações, dos desvios, das defasagens, das independências, das autonomias, e a maneira pela qual se articulam entre si suas historicidades (p. 214)”. Para se distinguir das outras histórias das ciências, chamou-se de análise da episteme. Por “episteme entende-se o conjunto das relações que podem unir em uma dada época as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados”. Ela “não é uma forma de conhecimento ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas” (p. 214).

Outras arqueologias

É possível que uma arqueologia descreva as regularidades discursivas de um saber sem caminhar em direção às figuras epistemológicas e às ciências? Isto é, “a orientação voltada para a episteme é a única que pode abrir-se a arqueologia?” A arqueologia deve ser exclusivamente uma maneira de interrogar a história das ciências? (p. 215). A resposta é não! Neste sentido, Foucault diz esperar o aparecimento de arqueologias que se direcionem a caminhos distintos.  Ainda na trilha de seus trabalhos relacionados às ciências, o autor prenuncia suas futuras pesquisas que culminarão em História da Sexualidade (de 1976). Ele diz já identificar como a sexualidade caminhou em direção à episteme:

“[...] mostraríamos de que maneira, no século 19, se formaram figuras epistemológicas como a biologia ou a psicologia da sexualidade; e por qual ruptura se instaurou, com Freud, um discurso de tipo científico. Mas percebo também uma outra possibilidade de análise: ao invés de estudar o comportamento sexual dos homens em uma dada época, ao invés de descrever o que os homens pudessem pensar da sexualidade, perguntaríamos se nessas condutas assim como nessas representações, toda uma prática discursiva não se encontra inserida; se a sexualidade, fora de qualquer orientação para um discurso científico, não é um conjunto de objetos de que se pode falar, um campo de enunciações possíveis, um conjunto de conceitos, um jogo de escolhas (que podem aparecer na coerência das condutas ou em sistemas de prescrição). Tal arqueologia, se fosse bem sucedida, mostraria como as proibições, as exclusões, os limites, as valorizações, as liberdades, as transgressões da sexualidade, todas as suas manifestações, verbais ou não, estão ligadas a uma prática discursiva determinada. Ela faria aparecer não certamente como verdade última da sexualidade, mas como uma das dimensões segundo as quais pode ser descrita, uma certa ‘maneira de falar’; e essa maneira de falar mostraria como ela está inserida, não em discursos científicos, mas em um sistema de proibições e de valores. Tal análise seria feita assim não em direção de episteme, mas no sentido do que se poderia chamar ética” (p. 216-217). Além desse, Foucault dá outros dois exemplos, um em relação à pintura artística e outro em relação à política.

Neste sentido, a arqueologia não está restrita a análise dos discursos científicos. Pois não quer descrever a ciência em sua estrutura própria, mas o domínio do saber. Assim, ela pode se movimentar tanto em direção às figuras epistemológicas do saber e às ciências, como em outra direção. O motivo porque a pesquisa arqueológica tenha até agora caminhado em direção à análise das ciências se dá porque em nossa cultura as formações discursivas possuem uma tendência à epistemologização.

Referências:

FOUCAULT, Michel. Ciência e saber. In:______. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 199-219.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.
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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Hermenêutica na historiografia: história dos conceitos de Koselleck

O texto que se segue é um comentário complementar do anterior, intitulado “Elos entre história dos conceitos e história social em Koselleck". Escrito por volta do final dos anos 70, o ensaio “História dos conceitos e história social” de Koselleck objetiva principalmente reivindicar um lugar de importância à história dos conceitos dentro da historiografia, seja no uso de seus métodos de investigação ou enquanto área de pesquisa histórica autônoma. A qualidade de seu trabalho não é a inovação, mas o rigor metodológico, o autor é herdeiro ao mesmo tempo da tradição alemã da hermenêutica e do historicismo.

Hermes: segundo a mitologia grega, deus da comunicação, do comércio e dos ladrões (que coincidência! “Patrono” dos jornalistas, empresários e assaltantes), é também o radical de onde a palavra “hermenêutica” deriva. Praticada na exegese bíblica, a hermenêutica designa a arte (técnica) de compreender e interpretar textos. Pode-se dizer que o pai da hermenêutica moderna é o filósofo e teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Mais conhecido pela recuperação e interpretação da obra de Platão, Schleiermacher foi o primeiro a tentar construir uma “hermenêutica universal”, isto é, a criação de um método único que se dispusesse à interpretação de quaisquer textos nos quais a compreensão imediata fosse impedida pela possibilidade de um mal-entendido. Intento, de certa maneira, conectado à tradição da retórica aristotélica. Schleiermacher escreve o seguinte: “O vínculo entre a hermenêutica e a retórica consiste no fato de que todo ato de compreender é a inversão do ato de falar, pelo que deve chegar à consciência qual o pensamento que está na base do discurso” (2005, p. 94). Sendo assim, a hermenêutica universal deve estar relacionada também com a crítica e com a gramática, pressupondo a união entre o pensamento e a linguagem (escrita ou falada). Daí se infere que para compreender o sentido original de um texto faz-se necessário conhecer a totalidade da linguagem e o pensamento geral de seu autor.

Segundo o filósofo e historiador da hermenêutica, Hans-Georg Gadamer (1900-2002), a principal característica da hermenêutica universal de Scheleiermacher é a pretensão de “transferir-se para dentro da constituição completa do escritor, um conceber o ‘decurso interno’ da feitura da obra, uma reformulação do ato criador” (1997, p. 292). Para realizar esta tarefa e encontrar a verdade, a operação hermeneuta descrita por Schleiermacher se articula em dois eixos: interpretação gramatical e interpretação psicológica. No entanto, Gadamer faz uma crítica ao último eixo da operação de Schleiermacher, isto é, à interpretação psicológica. Isso porque, segundo Gadamer, é preciso compreender o sentido de um texto nele mesmo, sem se recorrer à subjetividade do outro, pois a missão da hermenêutica não é promover uma comunicação entre as almas, mas participar de uma perspectiva comum (2003, p. 59). Além disso, Gadamer critica também o caráter formalista da hermenêutica de Schleiermacher, dizendo que, em vez de conceber um método válido para qualquer objeto de pesquisa, é o objeto de pesquisa que deve determinar a formação de “um projeto de compreensão que vai se corrigindo, progressivamente, à medida que progride a decifração” (2003, p. 61).

Apesar das críticas de Gadamer, a regra geral da hermenêutica se conserva. “Trata-se da relação circular entre o todo e suas partes: o significado antecipado em um todo se compreende por suas partes, mas é à luz do todo que as partes adquirem a sua função esclarecedora”, assinala o autor (2003, p. 58). Ou seja, a hermenêutica é uma operação do conhecimento que procura encontrar o sentido do texto através de uma articulação entre o particular e o geral. Esta concepção embebedou a historiografia mais do que qualquer estudante de história possa imaginar. Inclusive, um dos pontos do livro Verdade e método, escrito por Gadamer, é a demonstração de como a historiografia do século 19 e 20 foi uma evolução da hermenêutica. A busca da verdade, através do método histórico, nada mais faz do que inserir/situar o objeto de pesquisa particular (um acontecimento, um texto, um indivíduo, uma classe, um processo, etc.) dentro de um dado contexto (tempo, espaço e sociedade). Operação que pode ser conhecida também com o substantivo de “crítica externa da fonte”. Por outro lado, a “crítica interna da fonte”, também usada pela historiografia, pode ser comparada com o procedimento hermeneuta de pesquisa do conjunto de obras do autor, entretanto, neste caso, leva-se em consideração não apenas o que ele escreveu, mas também o que pensou, falou e agiu a partir da totalidade de documentos que ficou registrada pelas gerações passadas.

É possível ver o exemplo desta tradição de pesquisa em dois trabalhos historiográficos que sequer foram produzidos por autores alemães. Refiro-me a O problema da incredulidade no século 16, do francês Lucien Febvre (1878-1956) e a O queijo e os vermes, do italiano Carlo Ginzburg (1939-). No primeiro trabalho, um precursor da história das mentalidades e conhecido pela história-problema, Febvre parte de uma indagação: “é possível que Rabelais fosse um ateu no século 16?” A tentativa era contrapor a tese do historiador da literatura, Abel Lefranc, contemporâneo de Febvre, segundo a qual afirmava, baseando-se nos escritos críticos a doutrina cristã produzidos por Rabelais, que seu autor era um descrente. Para provar o contrário, Febvre se detém inicialmente numa série de documentos da época: relatos de (eventuais) testemunhas, pessoas que conviveram com Rabelais e que trocavam cartas com ele; obras de literatura, de teatro e de filosofia do período; trabalhos de teólogos e de controversistas; enfim, todo o material produzido pelo círculo intelectual que o sujeito pesquisado possa ter tido contato. Depois o historiador se debruça sobre os escritos de Rabelais (Gargantua e Pantagruel), realizando assim a crítica interna das fontes. Por fim, uma descrição do contexto da época, para assegurar que a religião cristã estava em todos os lugares e não dava nenhuma possibilidade de qualquer sujeito ser descrente, a menos que fosse louco. A verdade histórica do problema levantado por Febvre é a de que era impossível que Rabelais fosse ateu na Europa do século 16. Para que o sujeito pudesse ser ateu era necessário que ele se apoiasse em um quadro social inscrito na atmosfera da época, coisa que não existia, já que até mesmo a ciência e a filosofia do período eram impregnadas de religião cristã. Na introdução de seu livro, Febvre diz que seu trabalho não “se trata de uma monografia sobre Rabelais, mas de um ensaio sobre o sentido e o espírito de nosso século 16” (2009, p. 29). Ao relacionar o particular (Rabelais) ao geral (contexto), o historiador compreende que seria um anacronismo dizer que o sujeito era ateu, isto porque não fazia sentido. Desta forma, Febvre promove uma co-incidência entre autor, obra e época.

Em O queijo e os vermes, a preocupação metodológica de Ginzburg é bastante semelhante ao relacionar o particular ao geral. O objeto de pesquisa é a trajetória do moleiro italiano Menocchio, perseguido pela Inquisição católica por ser acusado de bruxaria, no final do século 16. Embora o foco seja sobre o microcosmo, já que se trata de um trabalho da micro-história, o historiador italiano diz desde o início que sua empreita lhe permitiu construir uma hipótese geral sobre a cultura da Europa pré-industrial (1987, p. 12). Ao se perguntar como foi possível um sujeito das classes populares fazer uma crítica peculiar a Igreja, Ginzburg encontra o sentido no contexto da época. Isto é, nos dois grandes acontecimentos do período (a reforma protestante e a invenção da imprensa), no substrato de crenças pagãs da cultura popular, na rede de relações entre as classes subalterna e dominante a qual o ofício de moleiro tinha contato, e nos livros que Menocchio teve acesso devido a essa mesma rede de relações. Esta operação de pesquisa histórica, compartilhada tanto por Ginzburg como por Febvre, apresenta um problema grave na medida em que, ao articular o particular ao geral, acaba submetendo o primeiro ao último. Em Febvre isso fica bastante nítido quando ele declara a tese de Lefranc como “absurda” (sem sentido, anacrônica) simplesmente por ela não se submeter ao geral.

Na passagem em que Koselleck interpreta o texto de Hardenberg fica claro o uso do método particular-geral (objeto-contexto), indispensável à história dos conceitos. Assim o historiador escreve: “[...] o sentido exato pode ser depreendido só a partir do contexto do diário [Memorandum] de Hardenberg, mas deve ser igualmente deduzido da situação do autor e dos destinatários. Além disso, é preciso que se considere a situação política e social da Prússia naquela época, como também se deve entender o uso da língua pelo autor, por seus contemporâneos e pela geração que o precede, com os quais ele viveu em comunidade linguística”. Eventuais questões que não possam ser respondidas com essa metodologia dizem “respeito principalmente à estrutura social da Prússia de então, que não pode ser compreendida de maneira satisfatória sem que se proceda a um questionamento de caráter econômico, político ou sociológico” (KOSELLECK, 2006, p. 99-100). A particularidade (o conceito, a oração, o texto) só é compreendida, de maneira eficaz, quando relacionada à totalidade, isto é, ao sistema de linguagem (história da língua) e dentro dos conflitos sociais e políticos nos quais o conceito foi usado (história factual).

Importa aqui dizer que, ainda que tenha sido contraposta por Gadamer, a interpretação psicológica (ou da subjetividade) se enraizou na historiografia – algumas vezes de maneira até grosseira. Podemos vê-la em Koselleck? Embora não idêntica a Schleiermacher e outros, creio que sim! Por exemplo, tratando-se de conceitos como “socialismo”, “comunismo” e “liberalismo”, uma das ferramentas teóricas de Koselleck, quer seja, “horizonte de expectativa”, nos permite refletir sobre a batalha discursiva que extrapola a própria língua. Ainda hoje estes são conceitos em disputa. O termo “socialismo real” (referente à União Soviética, pós-revolução) é usado por algumas pessoas para descrever a realização da expectativa que se tinha sobre o conceito “socialismo”, ou seja, designa o futuro, tornado presente, de uma sociedade do passado. Outros não aceitam a designação, dizendo que o que houve na União Soviética foi um “capitalismo de Estado”, a partir do pressuposto de que o significado de “socialismo” não se ajusta ao significante da experiência política da URSS. Então, infere-se que o “horizonte de expectativa” é algo ainda a ser realizado (ou jamais). Por isso, na modalidade de pesquisa koselleckiana, é necessário atentar-se para em que lugar, quando e qual é o seu sentido no espaço de experiência, mas também para quem escreve, logo, necessita de uma interpretação da subjetividade do autor. Isso se não estivermos desejosos de uma verdade “neutra” ou de um sentido único.

Na tensão entre conceito e realidade empírica, a preciosidade do trabalho de Koselleck é a possibilidade de usar a interpretação psicológica sem submetê-la ao geral. Sobretudo porque uma das ferramentas teóricas de Koselleck, por exemplo, o conceito de “horizonte de expectativa” proporciona uma margem de movimentação particular ao tempo histórico, diferentemente do tempo coagulado de Febvre (época). Daí pode-se enxergar o futuro do passado, embora ele, obviamente, não exista empiricamente. Do contrário teríamos um futuro do qual ninguém espera e que nunca chega, pois o presente seria uma eternidade. Um único tempo possível, como a Europa do século 16, onde o Rabelais de Febvre vivia.

É exatamente por isso que o diacronismo (dois tempos: passado-presente e passado-futuro) da história dos conceitos se atenta como poucas modalidades de pesquisa histórica sobre o perecimento do conhecimento e, concomitantemente, sobre o caráter provisório da verdade; especialmente, por levar em consideração a transitoriedade do tempo (presente). Como o próprio Lucien Febvre já expôs, a história precisa ser constantemente reescrita, uma vez que ela se trata de um conhecimento diacrônico, não um conhecimento do passado, mas da relação passado-presente. Visto que o presente interfere nesse processo de cognição. O que parece não ter sido levado em consideração por Febvre é que, num só tempo, tantos sentidos são possíveis à medida que podemos relacioná-los a algo e tantas verdades existem conforme a quantidade de caminhos (aceitos) são traçados para construí-las.

Referências:

FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis-SP: Editora Vozes, 1997.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006.
SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica e crítica, vol. I. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005.

Elos entre história dos conceitos e história social em Koselleck

Buscando substituir a tradicional história das ideias, acusada de insuficiência teórica pelos Analles, a história dos conceitos é uma área de pesquisa que ganhou notoriedade no terceiro quarto do século passado. No Brasil, o historiador alemão Reinhart Koselleck é conhecido como o principal pesquisador desta modalidade. O texto que passo a resumir e comentar nas linhas abaixo trata-se de um dos ensaios reunidos em seu livro Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. No ensaio em questão, Koselleck apresenta as características gerais da história dos conceitos e em que medida ela é indispensável à história social.  

Inicialmente, Koselleck aponta algumas diferenças entre a história dos conceitos e a história social. Enquanto a primeira se detém fundamentalmente sobre textos e vocábulos, a última serve-se deles apenas para deduzir fatos, processos e dinâmicas históricas que não se encontram ali. Isto é, a história social toma a escrita como referências que apontam para acontecimentos fora do texto e não como acontecimentos (da linguagem) que possuiriam funcionamentos particulares. Os métodos da história dos conceitos vêm da história da terminologia filosófica, da gramática e filologia histórica, da semasiologia¹ e da onomasiologia.² Seus resultados são comprovados pela retomada da exegese textual. N’outro pólo, a história social tem como objeto de investigação a formação das sociedades, estruturas constitucionais; relações entre grupos, camadas e classes; as circunstâncias nas quais ocorreram certos eventos, com foco em estruturas e alterações de médio e longo prazo. Além disso, pode pesquisar teoremas econômicos, por meio dos quais torna-se possível problematizar os eventos singulares e os desenvolvimentos políticos dos fatos. Apesar destas diferenças, a história dos conceitos e a social se alimentam de um mesmo corpus. Isto porque, segundo Koselleck, “sem conceitos comuns não pode haver sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade de ação política. Por outro lado, os conceitos fundamentam-se em sistemas político-sociais que são, de longe, mais complexos do que faz supor sua compreensão como comunidades linguísticas organizadas sob determinados conceitos-chave” (2006, p. 98). Por isso, faz-se necessário esclarecer a relação entre tais modalidades de pesquisa histórica em três níveis.

1º] Até que ponto a história dos conceitos segue os métodos históricos-críticos clássicos e contribui para compreender os temas da história social? O historiador lança mão de alguns exemplos neste tópico para demonstrar que a história social não pode prescindir do auxílio da história dos conceitos. Um destes exemplos é o discurso reformista de Karl Hardenberg, em 1808. Após a Revolução Francesa, este estadista formulou um programa que pretendia uma reestruturação tanto econômica como social da Prússia. Para compreender tal documento é necessário que se faça uma exegese crítica dos conceitos presentes no programa. No escrito consta a substituição do conceito de “estamento” pelo de “classe”, propondo com isso uma numa organização social. “No lugar de uma sociedade estamental tradicional, deve entrar uma sociedade de cidadãos do Estado (formalmente igualitária) cuja filiação a classes (a definir econômica e socialmente) possibilite uma nova hierarquia de Estado”, escreve Koselleck (2006, p. 99). Pode-se dizer que o “estamento” é o significante de um tipo de mobilidade social muito insipiente se comparado ao de “classe”. Está mais ligado a um privilégio (um título de honra ou nobreza, por exemplo) do que a uma conquista econômica ou social. Demonstrava-se, com isso, uma crítica ao tradicional direito de soberania para reivindicar uma maior mobilidade social: constitui parte de algumas consequências da Revolução Francesa que afetaram todo o Ocidente. O emprego do conceito de “cidadão” na oração de Hardenberg também nos diz sobre elementos sócio-históricos presentes na ocasião. Tratava-se de um conceito criado recentemente e visava polemizar a desigualdade de ordens num contexto que ainda não existia o direito civil.

Ambos os conceitos (“classe” e “cidadão”) são, para Koselleck, indicadores de mudanças sociais e políticas.  Ainda que não existissem empiricamente, eles sinalizavam não só o “espaço de experiências” (passado-presente), mas também o “horizonte de expectativas” (futuro) de uma determinada sociedade no tempo. Isto porque em todas as épocas de crise, os conceitos apontam mais para o futuro do que para designar fatos. Grande parte das conquistas e privilégios políticos foi formulada, primeiro, na linguagem para que pudesse ser descrita e, depois, fosse efetivada. “Com esse procedimento, diminuiu o conteúdo empírico presente no significado de muitos conceitos, enquanto aumentava proporcionalmente a exigência futura neles contida. [No período em questão,] a co-incidência entre o conteúdo empírico e o campo de expectativa diminuía cada vez mais. Inclui-se aqui a criação de numerosos ‘-ismos’ que serviram como conceito de agrupamento e de dinâmica para ordenar e mobilizar as massas estruturalmente desarticuladas” (KOSELLECK, 2006, p. 102-103).

2º] Em segundo nível, Koselleck reflete sobre a história dos conceitos como uma disciplina autônoma, pois ela, além de ser metodologia de crítica da fonte, é um campo particular de estudos. Por exemplo, à história social, ela serviu para criticar as traduções descontextualizadas de determinadas expressões; promoveu uma crítica à história das ideias, tendo em vista que, esta modalidade trabalhava com grandes constantes que se articulavam sem alteração, ainda que sob distintas formas históricas (por exemplo: o liberalismo na Europa e no Brasil); na investigação da história de um conceito, foi possível pesquisar o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa” de um período, ao mesmo tempo em que pesquisava a função política e social do mesmo conceito – tratando assim do espaço e do tempo, numa perspectiva sincrônica de análise. Além disso, o procedimento da história dos conceitos desenvolve a tradução de textos do passado para nossa compreensão atual, realizando um estudo diacrônico.

Denomina-se história dos conceitos o estudo que contém um conjunto desses procedimentos citados acima; disciplina próxima a filologia histórica e, neste caso, independente da história social. Como objeto de pesquisa, pode-se investigar a duração do significado de um conceito. Por exemplo, por volta de 1700, “burguês” significava um cidadão ou habitante da cidade (numa sociedade estamental na qual definições legais, políticas, econômicas e sociais estavam unidas); em 1800, significava um cidadão do Estado (definido, negativamente, como aquele que não pertencia nem ao campesinato, nem à nobreza); e, por último, por volta de 1900, significava aquele que não é proletário (membro de uma classe do ponto de vista puramente econômico, numa sociedade de economia liberal), designação válida tanto para o direito de voto de classe, quanto para a teoria marxista.

O princípio diacrônico da história dos conceitos exige que, num primeiro momento, ela deixe de lado os conteúdos extralingüísticos. Pelo aspecto somente temporal há três tipos de conceitos políticos e sociais: (a) os da doutrina constitucional aristotélica (são significados que permanecem em parte os mesmos, inclusive seus conteúdos empíricos); (b) conceitos que seus conteúdos mudaram bastante, embora possuam a mesma constituição linguística (neste caso, seus conteúdos só podem ser reconstruídos historicamente – o conceito “história”, na modernidade, parece ser ao mesmo tempo seu sujeito e seu objeto, enquanto “histórias” tem como objeto pessoas e domínios concretos); (c) neologismos que surgem em momentos específicos visando registrar ou provocar situação políticas e sociais (ex: comunismo e fascismo). Na história dos conceitos, há uma tensão entre fatos e conceitos, nunca um “espírito de época”; ora se neutraliza essa tensão, ora ela se irrompe. Por isso, tal disciplina não deve se restringir a significação das palavras e suas modificações. É preciso explicar porque vários conceitos são utilizados para descrever um único fato ou dinâmica, como no caso de “secularização” e “mundialização”.

Koselleck (1923-2006)
3º] No último nível, Koselleck pondera sobre a teoria da história dos conceitos e da história social, sobretudo, em que medida a última pode operar sem atender as exigências da primeira. A história dos conceitos aborda estados sociais, do ponto de vista sincrônico, e suas alterações ao longo do eixo diacrônico. Embora ela não apreenda imediatamente a realidade social a partir do conceito, possui como premissa refletir a co-incidência entre conceito e realidade, em estruturas e transformações. “O método da história dos conceitos é uma condição [imprescindível] para questões da história social exatamente porque os termos que mantiveram seu significado estável não são, por si mesmo, um indício suficiente da manutenção do mesmo estado de coisas do ponto de vista da história dos fatos; por outro lado, fatos cuja alteração se dá lentamente, a longo prazo, podem ser compreendidos por meio de expressões bastante variadas”, escreve Koselleck (2009, p. 114).

Sob a premissa teórica de confrontar e medir permanência e alteração, tendo a última como referência a primeira, a história dos conceitos pesquisa a resistência das teorias do passado à modificação, especialmente, às disjunções entre os antigos significados lexicais referentes a um fato ou circunstâncias não mais existentes, assim como novos significados de uma mesma palavra. Permitindo também, com isso, enxergar significados que não correspondem a nenhuma realidade factual ou ver fatos que transparecem em significados inconscientes ao usuário do conceito. Nas camadas de significado encobertas pelo tempo e pelo uso cotidiano da língua, a história dos conceitos promove uma decifração. No próximo post farei um comentário sobre o ensaio de Koselleck. Clique aqui para ler!

Referências:

KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos e história social. In:______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p. 97-118.

1 Semasiologia: estudo dos sentidos lingüísticos partindo do significante (palavra) ao significado (coisa).
2 Onomasiologia: estudo das mutações e das diferenças de sentido, partindo do significado ao significante, ou seja, o exercício oposto da semasiologia.
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