Buscando substituir a tradicional história das ideias, acusada de
insuficiência teórica pelos Analles,
a história dos conceitos é uma área de pesquisa que ganhou notoriedade no
terceiro quarto do século passado. No Brasil, o historiador alemão Reinhart
Koselleck é conhecido como o principal pesquisador desta modalidade. O texto
que passo a resumir e comentar nas linhas abaixo trata-se de um dos ensaios
reunidos em seu livro Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. No ensaio em
questão, Koselleck apresenta as características gerais da história dos
conceitos e em que medida ela é indispensável à história social.
Inicialmente, Koselleck aponta algumas diferenças entre a história
dos conceitos e a história social. Enquanto a primeira se detém
fundamentalmente sobre textos e vocábulos, a última serve-se deles apenas para
deduzir fatos, processos e dinâmicas históricas que não se encontram ali. Isto
é, a história social toma a escrita como referências que apontam para
acontecimentos fora do texto e não como acontecimentos (da linguagem) que
possuiriam funcionamentos particulares. Os métodos da história dos conceitos
vêm da história da terminologia filosófica, da gramática e filologia histórica,
da semasiologia¹ e da onomasiologia.² Seus resultados são comprovados pela
retomada da exegese textual. N’outro pólo, a história social tem como objeto de
investigação a formação das sociedades, estruturas constitucionais; relações
entre grupos, camadas e classes; as circunstâncias nas quais ocorreram certos
eventos, com foco em estruturas e alterações de médio e longo prazo. Além
disso, pode pesquisar teoremas econômicos, por meio dos quais torna-se possível
problematizar os eventos singulares e os desenvolvimentos políticos dos fatos.
Apesar destas diferenças, a história dos conceitos e a social se alimentam de
um mesmo corpus. Isto porque, segundo Koselleck, “sem conceitos comuns não pode
haver sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade de ação política. Por
outro lado, os conceitos fundamentam-se em sistemas político-sociais que são,
de longe, mais complexos do que faz supor sua compreensão como comunidades
linguísticas organizadas sob determinados conceitos-chave” (2006, p. 98). Por
isso, faz-se necessário esclarecer a relação entre tais modalidades de pesquisa
histórica em três níveis.
1º] Até que
ponto a história dos conceitos segue os métodos
históricos-críticos clássicos e contribui para compreender os temas da
história social? O historiador lança mão de alguns exemplos neste tópico para
demonstrar que a história social não pode prescindir do auxílio da história dos
conceitos. Um destes exemplos é o discurso reformista de Karl Hardenberg, em
1808. Após a Revolução Francesa, este estadista formulou um programa que
pretendia uma reestruturação tanto econômica como social da Prússia. Para
compreender tal documento é necessário que se faça uma exegese crítica dos
conceitos presentes no programa. No escrito consta a substituição do conceito
de “estamento” pelo de “classe”, propondo com isso uma numa organização social.
“No lugar de uma sociedade estamental tradicional, deve entrar uma sociedade de
cidadãos do Estado (formalmente igualitária) cuja filiação a classes (a definir
econômica e socialmente) possibilite uma nova hierarquia de Estado”, escreve
Koselleck (2006, p. 99). Pode-se dizer que o “estamento” é o significante de um
tipo de mobilidade social muito insipiente se comparado ao de “classe”. Está mais
ligado a um privilégio (um título de honra ou nobreza, por exemplo) do que a uma
conquista econômica ou social. Demonstrava-se, com isso, uma crítica ao
tradicional direito de soberania para reivindicar uma maior mobilidade social:
constitui parte de algumas consequências da Revolução Francesa que afetaram
todo o Ocidente. O emprego do conceito de “cidadão” na oração de Hardenberg
também nos diz sobre elementos sócio-históricos presentes na ocasião.
Tratava-se de um conceito criado recentemente e visava polemizar a desigualdade
de ordens num contexto que ainda não existia o direito civil.
Ambos os conceitos (“classe” e “cidadão”) são, para Koselleck,
indicadores de mudanças sociais e políticas. Ainda que não existissem empiricamente, eles sinalizavam
não só o “espaço de experiências” (passado-presente), mas também o “horizonte
de expectativas” (futuro) de uma determinada sociedade no tempo. Isto porque em
todas as épocas de crise, os conceitos apontam mais para o futuro do que para
designar fatos. Grande parte das conquistas e privilégios políticos foi
formulada, primeiro, na linguagem para que pudesse ser descrita e, depois,
fosse efetivada. “Com esse procedimento, diminuiu o conteúdo empírico presente
no significado de muitos conceitos, enquanto aumentava proporcionalmente a
exigência futura neles contida. [No período em questão,] a co-incidência entre
o conteúdo empírico e o campo de expectativa diminuía cada vez mais. Inclui-se
aqui a criação de numerosos ‘-ismos’ que serviram como conceito de agrupamento
e de dinâmica para ordenar e mobilizar as massas estruturalmente
desarticuladas” (KOSELLECK, 2006, p. 102-103).
2º] Em
segundo nível, Koselleck reflete sobre a história dos conceitos como uma
disciplina autônoma, pois ela, além de ser metodologia de crítica da fonte, é
um campo particular de estudos. Por exemplo, à história social, ela serviu para
criticar as traduções descontextualizadas de determinadas expressões; promoveu
uma crítica à história das ideias, tendo em vista que, esta modalidade trabalhava
com grandes constantes que se articulavam sem alteração, ainda que sob
distintas formas históricas (por exemplo: o liberalismo na Europa e no Brasil);
na investigação da história de um conceito, foi possível pesquisar o “espaço de
experiência” e o “horizonte de expectativa” de um período, ao mesmo tempo em
que pesquisava a função política e social do mesmo conceito – tratando assim do
espaço e do tempo, numa perspectiva sincrônica de análise. Além disso, o
procedimento da história dos conceitos desenvolve a tradução de textos do
passado para nossa compreensão atual, realizando um estudo diacrônico.
Denomina-se história dos conceitos o estudo que contém um conjunto
desses procedimentos citados acima; disciplina próxima a filologia histórica e,
neste caso, independente da história social. Como objeto de pesquisa, pode-se
investigar a duração do significado de um conceito. Por exemplo, por volta de
1700, “burguês” significava um cidadão ou habitante da cidade (numa sociedade
estamental na qual definições legais, políticas, econômicas e sociais estavam
unidas); em 1800, significava um cidadão do Estado (definido, negativamente,
como aquele que não pertencia nem ao campesinato, nem à nobreza); e, por
último, por volta de 1900, significava aquele que não é proletário (membro de
uma classe do ponto de vista puramente econômico, numa sociedade de economia
liberal), designação válida tanto para o direito de voto de classe, quanto para
a teoria marxista.
O princípio diacrônico da história dos conceitos exige que, num
primeiro momento, ela deixe de lado os conteúdos extralingüísticos. Pelo
aspecto somente temporal há três tipos de conceitos políticos e sociais: (a) os
da doutrina constitucional aristotélica (são significados que permanecem em
parte os mesmos, inclusive seus conteúdos empíricos); (b) conceitos que seus
conteúdos mudaram bastante, embora possuam a mesma constituição linguística
(neste caso, seus conteúdos só podem ser reconstruídos historicamente – o
conceito “história”, na modernidade, parece ser ao mesmo tempo seu sujeito e
seu objeto, enquanto “histórias” tem como objeto pessoas e domínios concretos);
(c) neologismos que surgem em momentos específicos visando registrar ou
provocar situação políticas e sociais (ex: comunismo e fascismo). Na história
dos conceitos, há uma tensão entre fatos e conceitos, nunca um “espírito de
época”; ora se neutraliza essa tensão, ora ela se irrompe. Por isso, tal
disciplina não deve se restringir a significação das palavras e suas
modificações. É preciso explicar porque vários conceitos são utilizados para
descrever um único fato ou dinâmica, como no caso de “secularização” e
“mundialização”.
Koselleck (1923-2006) |
3º] No último
nível, Koselleck pondera sobre a teoria da história dos conceitos e da história
social, sobretudo, em que medida a última pode operar sem atender as exigências
da primeira. A história dos conceitos aborda estados sociais, do ponto de vista
sincrônico, e suas alterações ao longo do eixo diacrônico. Embora ela não
apreenda imediatamente a realidade social a partir do conceito, possui como
premissa refletir a co-incidência entre conceito e realidade, em estruturas e
transformações. “O método da história dos conceitos é uma condição
[imprescindível] para questões da história social exatamente porque os termos
que mantiveram seu significado estável não são, por si mesmo, um indício
suficiente da manutenção do mesmo estado de coisas do ponto de vista da
história dos fatos; por outro lado, fatos cuja alteração se dá lentamente, a
longo prazo, podem ser compreendidos por meio de expressões bastante variadas”,
escreve Koselleck (2009, p. 114).
Sob a premissa teórica de confrontar e medir permanência e
alteração, tendo a última como referência a primeira, a história dos conceitos
pesquisa a resistência das teorias do passado à modificação, especialmente, às
disjunções entre os antigos significados lexicais referentes a um fato ou
circunstâncias não mais existentes, assim como novos significados de uma mesma
palavra. Permitindo também, com isso, enxergar significados que não
correspondem a nenhuma realidade factual ou ver fatos que transparecem em significados
inconscientes ao usuário do conceito. Nas camadas de significado encobertas
pelo tempo e pelo uso cotidiano da língua, a história dos conceitos promove uma
decifração. No próximo post farei um comentário sobre o ensaio de Koselleck.
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Referências:
KOSELLECK, Reinhart. História dos conceitos e história social.
In:______. Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed.
PUC-Rio, 2006, p. 97-118.
1 Semasiologia: estudo dos sentidos lingüísticos partindo do
significante (palavra) ao significado (coisa).
2 Onomasiologia: estudo das mutações e das diferenças de sentido,
partindo do significado ao significante, ou seja, o exercício oposto da
semasiologia.
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