O que é real? Como você define o
"real"? Se você está falando sobre o que você pode sentir, o que você
pode cheirar, o que você pode saborear e ver, o real são simplesmente sinais
elétricos interpretados pelo seu cérebro.
(Morpheus em Matrix)
A partir dos anos 70 surgiram diversos
trabalhos abordando a fragilidade epistemológica em que a História se apoia
quando pretende encontrar ou construir verdades
científicas emitidas através de uma narrativa semelhante a do realismo
literário. O apontamento dos limites, ou seja, a crítica ao saber histórico, que
passa pela relativização da verdade em relação à linguagem, foi engendrada por
pesquisadores de diferentes perspectivas, inspirações e áreas. Passando por
cima desta pluralidade, alguns historiadores e colegas vizinhos encontraram uma
estratégia para caracterizar o posicionamento destes críticos, chamando-os de pós-modernos: termo que se tornou
sinônimo de relativista. Porém,
apesar da recusa ao diálogo por parte de determinados historiadores, alguns ao
menos tentam responder as críticas. Neste post procuro discutir uma destas
respostas que, a meu ver, é ineficiente. Tentarei expor o porquê.
Diferentes historiadores como o
francês Pierre Vidal-Naquet (1988) e o italiano Carlo Ginzburg (2002; 2006) argumentam
que o relativismo é um dos
pressupostos básicos para a negação do Holocausto (o chamado negacionismo/revisionismo).
Ou que a corrente relativista contribuiu para o aparecimento na década de 80
de trabalhos de história sobre o Nazismo que negavam o Holocausto. Carlo
Ginzburg vai além ao condenar como “irracionalistas”
todos os pesquisadores que se inspiram ou dialogam em alguma medida com a
filosofia de Nietzsche. Derrida, Paul De Mann, Barthes, Foucault e White seriam
então relativistas, niilistas e, por fim, nazistas. Entretanto Ginzburg omite
propositalmente o pensamento de Nietzsche como crítico feroz do orgulho nacionalista alemão e do
Estado – eixos basilares do Nazismo.[1]
Aqui, através de um argumento
moral, historiadores como Vidal-Naquet e Ginzburg tentam matar dois coelhos com
uma cajadada só (de Moisés!). Mas o mar vermelho não se abriu quando tentaram
integrar numa mesma ilha dois posicionamentos distintos que consideram
“inimigos” da História: o relativismo
e o negacionismo. Não há resposta,
somente uma contraposição que diz: se você é relativista (ou “irracionalista”)
logo defenderá o Nazismo e negará o extermínio dos judeus. O argumento neste
nível não tem nada de epistemológico como nos escritos em que a Deborah
Lipstadt denunciou a adulteração e a fraude de documentos para manipular os
eventos históricos feitas por David Irving – um historiador britânico que
aderiu com o passar do tempo a organizações neonazistas nos EUA (JIMÉNEZ,
2000).[2]
Judeus em Auschwitz |
Em todo caso os negacionistas
não defendem a inexistência do Nazismo, nem mesmo que mortes e assassinatos não
aconteceram nos campos de concentração. Os argumentos centrais destes são os
seguintes: (1ª) não é possível ter ocorrido o extermínio dos judeus (o Holocausto)
porque os nazistas não traçaram nenhum plano neste sentido, uma vez que não
existe documento algum que detalhe este plano; (2ª) a tecnologia da época não
permitia a existência de câmaras de gás que funcionassem como máquinas de morte
em massa; (3ª) entre os anos de 1941 a 1945 a população judia manteve-se
estável, por isso o número de seis milhões de mortos é falso; (4ª) os judeus
sobreviventes mentem para conseguir privilégios financeiros; (5ª) o julgamento
ocorrido em Nuremberg após a guerra se apoiava em documentos falsos para
condenar o inimigo alemão derrotado (JIMÉNEZ, 2000, p. 378).
Parece bastante claro que estes
argumentos não possuem nada de relativistas. Pelo contrário, como já apontara
André Voigt (2009), eles partem de um solo comum da chamada linha de
investigação da história “realista”
ou científica. Quer dizer, no primeiro argumento defende-se que o acontecimento
só é possível ou real se existe algum documento que o comprove. É óbvio que
eles sabem que muitos arquivos foram aniquilados e que os próprios nazistas
usavam termos burocráticos para se referirem ao extermínio em massa (como
“solução final”, “questão judia”, “internamento” e etc.).
No segundo argumento reaparece a
realidade submetida a uma possibilidade e, neste caso, à (descrição da) época: como se não pudesse existir algo novo e diferente em relação ao que descreveram como a época. O problema é
que o discurso histórico, em certa medida, caminha neste mesmo sentido. Acredita-se em demasia nestas descrições generalistas. A chamada contextualização
histórico-social às vezes peca por apagar os acontecimentos, as criações, as
novidades que não se adaptam a ela em prol de um efeito de realidade ao qual tudo precisa estar ligado para ser
verdadeiro. Esse é um modelo discursivo típico do realismo literário que, em
reação ao romantismo e influenciado pelo positivismo do século 19, pratica
literatura como a escrita que descreve a realidade da época, isto é, dos problemas
sociais e políticos. Uma espécie de poética histórica (uma arte) que liga os
fatos à necessidade ou a verossimilhança. Misturando personagens fictícios a
realidades aceitas socialmente e submetendo o real somente ao possível.
Complementando o que disse
acima, ao tecer uma crítica aos Annales,
Voigt argumenta que na atualidade determinado modelo historiográfico opõe o acontecimento à noção
de mentalidade. Conforme já havia sido exposto por Jacques Rancière, Voigt conclui que
esta é uma “maneira de suprimir o acontecimento, neutralizando-o em sua carga
de ruptura com uma época na mesma medida em que procura submetê-lo à
possibilidade de ter tido condições de existência em seu tempo. O medo do
anacronismo acabou submetendo o real ao possível, de acordo com o tempo. Do
mesmo modo, esta prática historiadora sempre procura encadear o acontecimento a
uma conjuntura necessária, para que possa ser caracterizada como real” (2009,
online).[3]
Se concordássemos que num período após a Primeira Guerra o mundo inteiro estava
falando e pensando em paz, seria difícil situar a possibilidade de existência do
horror que foram os campos de concentração e extermínio. Na linha das
mentalidades esse acontecimento foi irreal? Talvez por isso os historiadores
até hoje sentem dificuldade em representá-lo através de uma narrativa.
Os outros argumentos dos negacionistas
ou caminham na mesma direção ou defendem que o Holocausto não passa de uma maquinação política empreendida por um
complô contra os alemães derrotados na II Guerra Mundial. Argumento este bastante usado
pela historiografia dos oprimidos e dos “dominados” quando se pretende relativizar
os documentos oficiais. Ok, isto pouco importa neste momento. O que gostaria de destacar
é que os “negacionistas” ou “revisionistas” não relativizam coisa alguma. Pelo contrário, os verbos-chaves
usados são os mesmos de um historiador não-negacionista cuja pretensão é
buscar ou construir verdades: “evidenciar”, “demonstrar”, “revelar”, “confirmar”,
“comprovar” e similares. Ou seja, em tese, eles se dão por satisfeitos quando
tais documentos comprobatórios existem: a verdade se revela neles. É o chamado “verbo que se fez carne”, muito caro à
tradição judaico-cristã. Estes argumentos podem ser perigosos, pois já
imaginaram se acaso aconteça algo que não tenha produzido documentos para comprovar que aquilo realmente aconteceu?
Voigt (2009) considera que na
ausência de conseguir dar uma resposta satisfatória aos negacionistas, os historiadores
asseveraram que a História era assim um artifício para assegurar a memória. Um
uso político e moral da memória. A
memória como dever. E, neste caso, mais uma vez existe uma luta contra
Nietzsche por causa da apologia que o filósofo fez ao esquecimento. Por tabela a crítica ou a acusação de compactuar com
o esquecimento do nazismo se estende a todos aqueles considerados relativistas,
irracionalistas, pós-modernos, pós-estruturalistas, desconstrucionistas,
contorcionistas e demais “istas” que inventaram... Mas novamente se enganam ao acreditarem que o esquecimento filosófico de Nietzsche tem a ver com o
esquecimento do Holocausto. Primeiro que os negacionistas não pregam o
esquecimento. Eles não dizem: “vamos esquecer o que aconteceu e seguir em
frente, pois só o presente nos interessa agora”. Nada disso! Eles
querem é construir uma nova memória do Nazismo e da II Guerra advogando sobre a inexistência do
Holocausto. Eis a verdade deles! E querem universalizá-la a todos,
instaurando-a e consentindo-a hegemonicamente.
Em A genealogia da moral Nietzsche apresenta o esquecimento não como
uma passividade. Algo que seria secundário em relação à memória, sua inoperação ou ausência de
memória. Mas como uma atividade. Uma positividade. O filósofo compara o
esquecimento à digestão. O homem que não consegue esquecer é identificado como
um enfermo cuja doença o impede de digerir os alimentos. Só o
esquecimento poderá dar esperança e felicidade. Enquanto isso o memorioso, como não
consegue se livrar de nada, nunca fica pronto para o novo ou para o presente.
Ademais, a reflexão de Nietzsche proporciona um outro olhar para a noção de
memória. Quando o esquecimento for uma faculdade que antecipa a inscrição da
memória, inibindo a fixação desta sem a sua vontade, “a memória não será
entendida mais como uma prisão a marcas de um passado inexorável” do qual não
se pode mais se livrar, porém uma impressão da qual não quer mais se livrar
(FERRAZ, 1999, p. 35). A memória deixa finalmente de ser um dever e passa a ser um querer.
Uma memória para o futuro! Uma promessa da qual se quer cumprir. Assim, lembrar
passa a ser um continuar querendo o já querido, uma memória da vontade
proporcionada por um esquecimento ativo e criador.
Outra confusão “ingênua” (para
não chamar de desonestidade intelectual) é a que descreve como irracionalismo o posicionamento de intelectuais que dialogam com
Nietzsche. Ora, não há uma rejeição da razão por parte destes filósofos,
historiadores, sociólogos e teóricos literários que gostam da filosofia nietzschiana. Longe disso, eu penso. Há um uso do intelecto para criticar e suspeitar da própria razão. Para desconfiar da fé cega na
razão, especialmente a instrumental, utiliza-se a razão autocrítica. Este
exercício é desenvolvido há bastante tempo desde Kant, passando por Marx, Freud e Escola
de Frankfurt. O que Nietzsche e os outros pensadores fazem é colocar uma suspeita
sobre a razão utilizando-se dela mesma. Ou vocês acham que este exercício do pensamento é possível por
qual meio? Nietzsche coloca inclusive o próprio relativismo em suspeita.[4]
É um eterno “não acredito em nada além daquilo que duvido” -- como já cantou
Renato Russo (1991).
Ainda assim, colegas anarquistas
e monarquistas me disseram que o relativismo nos levaria a um fascismo tal qual o
Nazismo. Eu nem me considero um relativista sob todos os aspectos, mas defendo
que é seu “oposto” que formou a condição de possibilidade do Nazismo acontecer:
a crença cega. Se o relativismo
fosse um fenômeno de percepção mais ou menos geral entre a população e os
líderes alemães, o Nazismo ou algo similar não teria ocorrido. Provavelmente
eles desconfiariam com veemência da identidade
alemã, da ideia de que os povos germânicos ou arianos descendiam de uma raça
pura ou que eram escolhidos pelos deuses ou coisa assim. Desconfiariam
também das pesquisas científicas nazistas que "comprovavam" que judeus, negros, ciganos e outros eram inferiores
aos alemães com pedigree. A galera
que diz que não sabia de nada desconfiaria do sumiço em massa dos judeus e de suas
novas moradias distantes. Os soldados que diziam apenas cumprir ordens
desconfiariam de que aquilo ali coisa bacana não era não. E, finalmente, todos
desconfiariam da história que narra a bela trajetória dos povos germânicos através dos tempos e a chegada dos
judeus-ratos que tiraram seus postos de trabalho e sugaram suas riquezas. Porque
para fazer uma coisa daquelas há que ser como os negacionistas e os positivistas:
tem que acreditar demais e duvidar de menos.
Referências:
FERRAZ, Maria Cristina Franco.
Nietzsche: esquecimento como atividade. Cadernos
Nietzsche, São Paulo, nº 07, p. 27-40, 1999.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
______. Relações de força: história, retórica e prova. São Paulo: Cia das
Letras, 2002.
JIMÉNEZ, José L. Rodrigues. El debate en
torno a David Irving y el negacionismo del holocausto. Cuadernos de Historia Contemporanea, Madrid, nº 22, p. 375-385,
2000.
LEGIÃO Urbana. Sereníssima. Compositor: Renato Russo. Álbum: V. Faixa: 06. Gravadora:
EMI, 1991.
NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia
da moral. São Paulo: Brasiliense, 1988.
VIDAL-NAQUET, Pierre. Os
assassinos da memória. Campinas: Papirus, 1988.
VOIGT, André F. O Holocausto, entre
o realismo e o relativismo historiográfico: uma introdução ao estudo do
Holocausto. Revista História e-História,
Campinas, online, 2009. [Disponível em: http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=94].
[1]
Quem quiser saber mais, escrevi uma resenha deste livro no ano passado aqui no
blog: Relações da forca: o historiador como juiz e policial em Ginzburg.
[2] De
acordo com o texto de Jiménez, David Irving, apesar de sempre controverso,
gozou de reconhecimento no início da carreira, escrevendo sobre a Segunda
Guerra Mundial, alguns de seus livros foram bastante lidos e traduzidos em
diversas línguas. Entretanto, sua fama sempre se deu mais pela polêmica
levantada em suas obras e pelo aparecimento em canais de televisão do que por
sua erudição – não que não tivesse alguma. Sua figura esteve associada aos
revisionistas e negacionistas, e foi ganhando cada vez mais simpatia com os
neonazistas. A partir de certo momento foi convidado a integrar o Instituto
Histórico Revisionista na Califórnia que é ligado a organizações neonazistas.
Em seus últimos livros, Irving começou a abonar ou neutralizar o papel de
Hitler no Holocausto, atribuindo ao ministro da propaganda Joseph Goebbels e ao
comandante da SS, Himmler, a culpa pelas mortes. Ao primeiro por colocar na
cabeça do Fürer a ideia dos assassinatos por fuzilamento, e ao segundo pelas
más condições no campo de trabalho. Ainda assim, ele rejeita as execuções pela
câmara de gás, dizendo que as mortes que aconteceram foram normais para uma
situação de guerra. Irving processou Deborah Lipstadt pelas críticas que fez a
seus livros. E em 2000, o tribunal inglês deu parecer favorável a Deborah, onde
foi decidido que Irving “manipulou fatos históricos bem documentados para
dispor os acontecimentos em concordância com sua ideologia” (JIMÉNEZ, 2000, p.
282).
[3] O
historiador André Voigt (2009) aponta que Rancière encontrou uma saída
interessante para responder os negacionistas sem cair nos pressupostos dos
historiadores. Para Rancière o Holocausto é uma realidade histórica e o
negacionismo é falso, mas para escaparmos da imobilidade da história (e também
da política) devemos assumir três axiomas: “o tempo é sem relação com a
verdade; o acontecimento é sem relação com o possível; o real é sem relação com
o realismo”. Esta é uma proposta ética-política para neutralizar o discurso
negacionista, abandonando a democracia consensual para dar lugar a uma
rediscussão dos papeis sociais numa nova partilha do sensível.
[4]
Tratei exatamente deste assunto no seguinte post: Por que Nietzsche não é um relativista?