Posto
abaixo as principais partes de um texto meu que foi publicado nesta semana pela
Revista Ágora de Cerro Grande (RS).
O intuito de divulgação é pelo caráter didático do mesmo sobre a filosofia
anarquista, especialmente, porque sei que uma parte significativa que acessa o
blog tem simpatia e interesse pelo anarquismo, tema que há algum tempo tem
ficado em falta aqui. Vou dividir o texto em duas partes, a primeira sobre
Proudhon e a segunda sobre Kropotkin. Aproveito para recomendar a revista Ágora
aos leitores e aos colegas de graduação e de pós-graduação que estão começando
a publicar textos acadêmicos.
***
No
livro O que é a propriedade?, de 1840,
Pierre-Joseph Proudhon assumiu-se anarquista pela primeira vez. Nesta época, a
palavra anarquia era utilizada como arma de ataque nos debates políticos e seu
significado estava relativo à desordem e ao caos (PRÉPOSIET, 2007, p. 89). Em
defesa da anarquia, Proudhon travou uma batalha pelo significado da palavra,
dizendo que esta (a anarquia) significava a ordem e não a desordem. Para o
filósofo francês, a anarquia era a organização das coisas e dos seres no mundo
sem necessidade de autoridade externa, pois esta sim que era a causa dos
problemas e da desorganização social que vigorava então.[1]
Proudhon,
no livro seminal do anarquismo, em favor de sua proposta social mutualista, contrapôs
os projetos políticos tanto do liberalismo quanto do comunismo, os quais ele
acreditava ser respectivamente a expressão da propriedade e da autoridade,
princípios estes causadores da miséria e da opressão.
O
anarquista francês recorre a uma hipotética história primitiva (assim como o
“estado de natureza” na filosofia política de Hobbes ou Rousseau) para elucidar
seu leitor acerca do modo como foi instituída a autoridade política de uns
sobre os outros. De acordo com Proudhon (1975, p. 235), pelo hábito e por uma
questão de respeito à experiência, o mais velho do grupo geralmente era
reconhecido como o líder. Sua autoridade ficava maior na medida em que o grupo
crescia. Entretanto, por conta da pressão imposta pela autoridade às
individualidades humanas ali presentes na coletividade, num caso ou noutro
aconteceram revoltas a partir das quais os mais jovens destronaram os líderes
antigos. Entretanto, pouco a pouco o hábito substituía novamente a força. Com o
passar do tempo, a disputa pela autoridade foi se tornando mais complexa,
sobretudo a partir de sua relação direta com a religião. Para Proudhon a
questão do poder na realeza tem um vínculo direto com o direito divino. Pois,
assim que se começou a atribuir a responsabilidade de liderança ao mérito e à
força, foi entendido que essas tais qualidades eram dádivas de Deus àqueles
mais preparados para governar, a partir de então o mais velho do grupo teve de
lhe ceder o lugar na chefia e deu início ao despotismo (1975, p. 236).
Proudhon
adverte que a religião, conjuntamente com a invenção do pecado original, serviu
para que o homem desconfiasse de sua natureza. Deste modo, por temer seu gênio
inato para o mal, o homem crê na necessidade da autoridade de uns sobre os
outros para manter a estabilidade pacífica da sociedade. Existe neste aspecto
do pensamento proudhoniano um diálogo e, acima de tudo, uma crítica voraz à filosofia
política de Tomas Hobbes que, de acordo também com outros anarquistas, foi
desenvolvida para justificar a criação do Estado moderno.
Tanto
a crença da necessidade do Estado quanto da autoridade baseada em Deus ou no
direito divino são constituições de um mesmo preconceito, indica Proudhon. No
entanto, o autor coloca que este preconceito será facilmente abolido por meio
do uso da razão na observação à natureza. Pois, a razão desenvolvida através do
processo evolutivo da ciência é o instrumento necessário para que os homens
enxerguem que a melhor escolha para a organização social é a anarquia.
É
necessário considerar que a noção de história para Proudhon está ligada a um
lento progresso de evolução, às vezes acompanhada de processos abruptos chamados
de revolução. Contudo, diferentemente de outros pensadores anarquistas, Proudhon,
ao menos neste livro, não defende a revolução pela força e imposição, pois
considera que para a sociedade se desenvolver é preciso que todos desejem
espontaneamente de livre acordo. Destarte, pode-se dizer então que a razão e a
ciência encontram-se no ápice desta evolução histórica, “e esta ciência envolve
conjuntamente o homem e a natureza” (1975, p. 12).
A
relação entre natureza e história pode ser vista a partir da própria concepção
do conceito de anarquia, da maneira como Proudhon a concebeu. Pois, a
autoridade, como produto da propriedade e da realeza, está em decadência desde
os primórdios da história do mundo e encontrará seu fim a partir do momento que
em que todos descobrirem e se convencerem de que a autoridade do homem sobre o
homem é inversa ao desenvolvimento intelectual ao qual a sociedade chegou. O
autor conclui que a duração provável dessa autoridade pode ser calculada pelo
desejo mais ou menos geral de um governo verdadeiro, quer dizer, de um governo
segundo a ciência. Da mesma maneira que a natureza do homem procura a justiça
na igualdade, a natureza da sociedade procura a ordem na anarquia, considera Proudhon
(1975, p. 238).
Os postulados
do autor nos possibilitam aferir que ao longo da história a autoridade se
constituiu como um empecilho para a harmonia na organização social entre os
homens e que, então agora, com o uso da razão para observar cientificamente
como se deu este processo histórico, o homem concluirá que a anarquia é a
condição propícia para seu desenvolvimento natural, a qual durante muito tempo
lutou-se inconscientemente em seu favor.[2]
É
possível nessa altura do texto estabelecer um contraponto com uma reflexão teórica
de outra perspectiva. Rousseau ficou conhecido como o filósofo político
defensor da natureza “boa” do homem, quando este se encontrava num a priori social hipotético (o
bom-selvagem). Porém, a sociedade corromperia sua bondade, sendo necessário,
portanto, recursos externos educativos que o encaminhasse para o caminho do bem
(FLORESTA, 1999, p. 143-4). Além disso, Rousseau vê com bons olhos a
“alienação” da vontade individual pela “vontade geral” que seria resultado
correlato do bem comum. Entretanto, Proudhon discorda de Rousseau neste último
ponto, e vai além pela defesa da natureza humana como base de um corpo social
harmônico. Ele diz o seguinte:
“Nem
a hereditariedade, nem a eleição, nem o sufrágio universal, nem a excelência do
soberano, nem a consagração da religião e do tempo fazem a realeza legítima.
Sob qualquer forma que se apresente monárquica, oligárquica, democrática, a
realeza ou o governo do homem pelo homem, é ilegal e absurdo” (PROUDHON, 1975,
p. 237).
Neste
ponto, Proudhon advoga em favor da liberdade negativa, no sentido de ausência
de intervenção sobre o indivíduo e de intermediários nas relações políticas,
pois as vontades nunca podem ser representadas, elas devem ser exprimidas pelos
próprios cidadãos (PROUDHON, 2008, p. 88-94). A filosofia proudhoniana é uma
defesa radical da natureza humana, pois acredita que a autoridade e a coerção
são elementos que a arruínam, e sem as quais, o desenvolvimento dos seres
humanos se daria de maneira espontânea e plena.[3] No
anarquismo de Proudhon, o qual ele chama de mutualismo neste livro, haverá
igualdade de condições sociais e os homens poderão exercer livremente suas
faculdades naturais. O auxílio ao próximo não será mais uma obrigação como no
autoritarismo comunista, fechado sob o mito da “vontade geral”, mas o homem o
fará por puro sentimento social de fraternidade e de simpatia. A propriedade do
capitalismo será substituída pela posse, ou seja, pelo uso daquele que
trabalha, e as trocas serão feitas por comunicação e reciprocidade, não mais
por lucro e vantagem sobre o outro. Os membros da sociedade se ajudarão
mutuamente por simples gosto e amor espontâneo de uns pelos outros. Podemos
dizer que este é o fim da História a partir da natureza social do homem quando
não mediada por autoridade, segundo Proudhon.
Sem dúvida
tal exposto nos apresenta como um otimismo romântico do autor. Mas não será
isso que a sociedade mais carece atualmente, isto é, acreditar em si mesma e em
sua capacidade de reverter à situação política que parece tão adversa e apocalíptica?
Acredito, inclusive, que o incomodo causado pelas proposições de Proudhon é
provocado justamente pelo choque com nossa desesperança contemporânea. Então,
que o antagonismo das duas nos proponha um momento de transformação subsidiada
pela reflexão.
Texto publicado
originalmente em:
ALVES,
M. P. Natureza e anarquia: aspectos entre natureza e história na filosofia
política anarquista de Proudhon e Kropotkin. Ágora Revista Eletrônica. Ano VIII, n. 16, p. 31-42.
Referências:
ALVES, M. P. O elogio da anarquia em “O que é a propriedade?” de Proudhon: apontamentos para a discussão conceitual do anarquismo. Revista Urutágua, Maringá, UEM, n. 27,
p. 15-25, nov. 2012/abr. 2013.
FLORESTA,
L. Gênese do pensamento pedagógico anarquista. Revista Educação e Filosofia. Uberlândia, vol. 13, n° 26,
jul./dez., 1999, p. 141-172.
PRÉPOSIET,
J. História do anarquismo. Coimbra:
Edições 70, 2007.
PROUDHON,
P-J. Do princípio de autoridade. In:______. A propriedade é um roubo: e outros escritos anarquistas. Seleção e
notas de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 74-99.
PROUDHON, P-J. O que é a
propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975.
[1] Para detalhes
sobre a “ressignificação” de anarquia empreendida por Proudhon, tenho um
trabalho publicado recentemente pela Revista Urutágua que considero
bastante didático:
ALVES, 2013.
[2] “Anarquia,
ausência de mestre e soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nós
nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e sua
vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a expressão do caos”
(PROUDHON, 1975, p. 239). Como podemos notar nesta citação, Proudhon compreende
a ordem instituída pela autoridade como a constituição da desordem, sendo o
inverso da ordem natural pela anarquia.
[3] Na visão
naturalista de Proudhon “homem e natureza estão intrinsecamente ligados, não
havendo oposição entre eles. Pelo contrário, o homem é visto como parte
integrante da natureza e só se realiza em fusão com ela [...]. O homem possui
todas as qualidades que o tornam um ser capaz de viver em harmonia e liberdade,
sem necessidade de contrato para regulamentar e constranger suas relações”
(FLORESTA, 1999, p. 142).