Dando continuidade ao post anterior, O Lula de Perry Anderson, vou descrever e comentar as análises histórico-sociológicas
com as quais o historiador inglês dialoga em seu artigo “O Brasil de Lula”,
pontuando os tópicos mais pertinentes.
A questão do
populismo
Segundo Anderson, para Fernando Henrique Cardoso e
seguidores, ainda dominantes na intelligentsia e na mídia brasileira, Lula
encarna as tradições mais retrógradas do continente sulamericano, sendo nada
mais que uma variante do populismo demagógico encarnada na figura de um líder
carismático que despreza tanto a democracia quanto a civilidade, e que
conquista as massas com caridade e bajulação. Daí surge comparações a dois
políticos populistas do meio do século 20, Getúlio Vargas e, o argentino, Juan
Domingo Perón. Entretanto, o historiador trata de delimitar as diferenças entre
eles próprios e também as de Lula para com ambos.
A retórica discursiva de Vargas era paternalista e
sentimental, enquanto a de Perón era exaltada e agressiva. Ambos possuíam
relações distintas com as massas. Vargas incorporou trabalhadores
recém-urbanizados ao sistema político para constituir seu poder. Estes eram
beneficiários passivos de seus cuidados através de uma legislação trabalhista protecionista
e de uma sindicalização castrada de cima para baixo. Já Perón energizou os
trabalhadores como combatentes contra o poder oligárquico através de uma
militância sindicalista que até o sobrepôs. Vargas “apelou às imagens
lacrimosas do ‘povo’, enquanto Perón conclamou a ira de los descamisados – os sans-cullotes
locais, os sem camisas, em vez de calças” (ANDERSON, 2011, p. 33). A catapulta
de ascensão de Lula foi bem diferente. Para o historiador, este esteve ligado
ao movimento sindical e a um partido político moderno mais democrático do que qualquer
coisa de Vargas e Perón; ainda que o PT tenha se reduzido a uma máquina
eleitoral já em 2002. Ao contrário dos outros dois presidentes, a marca do
governo de Lula foi a desmobilização popular. Sindicatos e movimentos sociais,
atuantes na primeira candidatura de Lula em 1989, perderam representatividade e
força. O MST foi praticamente ignorado. As formas de clientelismo típicas do
populismo clássico não foram reproduzidas pelo PT. O programa “Bolsa Família,
por exemplo, é administrado de forma impessoal, livres dos sistemas capilares
do clientelismo” (2011, p. 34).
A psicologia dos
pobres
A segunda possibilidade de análise do governo Lula trazida
por Anderson é a do cientista político André Singer, que foi porta-voz de Lula
no primeiro mandato. Para o autor, a composição dos pobres no Brasil se dá por
um subproletariado que representa 48% da população. Esse estrato social é
movido basicamente por duas emoções: (1ª) esperança
de que o Estado possa moderar a desigualdade; (2ª) medo de que os movimentos sociais possam gerar desordem. Podemos
ver este último como ilustração do enorme sucesso que as grandes mídias,
sobretudo, através de programas policiais pró-repressão, possuem junto ao
público de baixa renda. Frequentemente, manipulando as informações para jogar a
população contra as manifestações e movimentos sociais que reivindicam
melhorias das condições políticas e civis em benefício da própria população.
No Brasil, a instabilidade é um fantasma para os pobres,
seja ela em forma de luta armada, inflação dos preços ou ações bruscas da
indústria. Enquanto a esquerda não compreendeu isso, a direita cooptou seus
votos para o conservadorismo, aponta Anderson. Isto fica mais compreensível se
pensarmos a estratégia de Collor em 1989 ao acusar Lula de extremista. Ou as
eleições de 1994 e 1998 quando o controle da inflação encabeçada por FHC
garantiu a vitória do PSDB. No entanto, Lula só entendeu isso em 2006. Os
números das eleições demonstram que, em 89, Lula obteve vitória no sul do país,
com 51%, e derrota no nordeste, com 29%. Já em 2006, ele ficou com 46% no sul e
77% no nordeste. Desta maneira:
“A ortodoxia econômica do primeiro mandato de Lula e, em
menor grau, a mais contínua cautela de seu segundo mandato eram, portanto, mais
do que simples concessões ao capital. Ela respondia às necessidades dos pobres
que, ao contrário dos trabalhadores no emprego formal, não podem se defender da
inflação, e repudiam as greves ainda mais do que os ricos, como uma ameaça à
vida cotidiana. Assim, vindo depois de FHC, Lula cortou a inflação ainda mais,
mesmo quando se dedicava a estimular o consumo popular, tornando-se o pioneiro
da ‘nova via ideológica’ com um projeto que unia a estabilidade de preços à
expansão do mercado interno. Por isso, Singer sugere, ele demonstrou sua
sensibilidade tanto ao temperamento das massas como à cultura política do país
em geral, cada qual marcada a seu modo por uma longa tradição brasileira de
evitar o conflito”, pondera Anderson (2011, p. 34).
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Perry Anderson |
Depois dessa digressão, voltemos às análises de Anderson. O
historiador considera que Lula pode ser uma espécie de herdeiro de Vargas na
medida em que tenta conciliar capital e
trabalho, explorar circunstâncias externas em prol do desenvolvimento interno
e conectar-se com as massas, oferecendo proteção através de autoridade. No
entanto, isso ocorre de uma forma diferente que a de Vargas, especialmente por
possuir raízes populares. O fato de ter sido um imigrante e de seu compromisso
democrático confere a ele legitimidade maior como “defensor dos pobres” do que a
de um fazendeiro rico do sul (Vargas). Apesar de Lula se identificar com
Kubitschek em vez de Vargas, é com Roosevelt que André Singer o compara. Para o
cientista político, ambos transformaram um cenário político com um pacote de
reformas que acabou elevando milhões de trabalhadores sob pressão e
empregadores em apuros à condição de ocupantes da classe média. Singer destaca
também a forte oposição conservadora a ambos os presidentes. Sobre isso,
Anderson chama a atenção para a atuação da imprensa
anti-lulista.
É que enquanto a imprensa estrangeira (por exemplo, Economist e Financial Times) ronrona satisfeita com as políticas pró-mercado e
com a concepção construtiva da presidência brasileira, garantindo estabilidade
e prosperidade capitalista, o leitor da Folha
e do Estadão parecem estar vivendo em
um mundo diferente: “Normalmente, em suas colunas, o Brasil estava sendo mal
governado por um grosseiro aspirante a caudilho, sem a menor compreensão dos princípios
econômicos ou respeito pelas liberdades civis, uma ameaça permanente à
democracia e à propriedade privada” (2011, p. 36). Mas o que a mídia brasileira
escrevia sobre Lula pouco acontecia de fato. A razão das críticas era outra.
Mas qual seria ela já que Lula continuou provendo os banqueiros e empresários?
Para Anderson, desde o término da ditadura, era a imprensa
que decidia quem seria o candidato eleito à presidência. O caso de Collor na
Rede Globo foi emblemático. Quem não se lembra dos debates montados para erguer
o candidato? No entanto, Lula quebrou esse ciclo com o carisma junto às massas.
E a mídia ficou ressentida. As críticas a Lula encontraram acolhimento em parte
da classe média. Não porque sob seu governo este estrato social havia perdido
poder, coisa que nunca tivera. Mas por ter perdido status. Não só porque o
presidente agora era um ex-operário de chão de fábrica que apanhava da
gramática. Mas também porque empregadas domésticas, porteiros e trabalhadores
braçais (a ralé) estavam agora adquirindo bens de consumo até então privilégios
dos instruídos. O resultado disso foi o que Élio Gaspari chamou de “demofobia”. Aversão ao povo. Coisa que
existe ainda em peso em nossa sociedade. A gritaria contra o vídeo da mãe que
reclama do valor do Bolsa Família por não conseguir comprar uma calça jeans (de
300,00 contos) para sua filha faz parte deste sentimento/pensamento. “Pobre não
pode comprar calça de 300 reais. Nem viajar, nem comprar casa, nem ir ao
shopping. Deve se preocupar somente com seu trabalho, saúde e educação”. Ainda
que seja absurda a reclamação da mãe, ela evidencia uma sociedade formada por
desejos de consumo, estimulada pela propaganda, por objetos materiais que são
aceitos como sinal de reconhecimento social. É o capitalismo criando suas
contradições, engolindo o próprio lixo que vomitou na sociedade. De todo modo,
este caso específico não deve servir para deslegitimar o programa social que
funciona somente como um paliativo de urgência, fraco, mas melhor que nada.
Perry Anderson mostra que o empresariado nada deveria ter do
que reclamar de Lula; já que o governo beneficiou os proprietários fazendo
circular dinheiro com programas e financiamentos e reduziu impostos em momentos
delicados. A Bovespa superou todas as bolsas entre 2002-10. Houve também um
crescimento do agronegócio. Se alguém pode ter críticas a fazer a Lula estas
são mais legítimas quando vem da esquerda, do que da direita. Especialmente
porque algumas pesquisas mostraram que a desigualdade social promovida sob seu governo
pode ser ilusória, tendo em vista que apesar da renda das classes baixas ter
subido, houve um aumento ainda maior àqueles que possuem renda elevada. Além do
que, os critérios que o governo utiliza para enquadrar a chamada “nova classe
média” são bastante questionáveis.
Hegemonia às avessas
A terceira e última análise interpretativa sobre o governo
de Lula vem do sociólogo Chico de Oliveira. Em princípio, ele não contesta a
tese da psicologia dos pobres desenvolvida por Singer, nem as melhorias de vida
a estes trazidas pelo presidente. Porém, Oliveira se concentra mais no tipo de
relação de Lula e seu eleitorado e a adequação às leis internacionais próprias
que regem o mercado. Na verdade, trata-se de uma crítica contumaz ao lulismo.
Para Oliveira, a globalização do século 21 impediu o projeto inclusivo de
desenvolvimento nacional. A chamada terceira revolução industrial, ligada à
ciência e tecnologia, exigiu investimento em pesquisas e impôs patentes que
impossibilitaram a transferência de seus resultados à periferia do sistema,
especialmente ao Brasil que investe pouco em pesquisa e desenvolvimento. Assim,
houve uma migração das fábricas para as transações financeiras e para a
extração de recursos naturais, e da mineração e do agronegócio para a exportação.
Tudo para adequar-se ao cenário mundial. A primeira operação acaba desviando o
investimento da produção; a segunda leva o Brasil de volta “aos ciclos
anteriores de dependência de produtos primários para o crescimento” (2011, p.
40). Contudo, para este acordo com o capital, foi preciso um ajuste na dinâmica
destes setores. O resultado é uma transformação das estruturas pelas quais Lula
chegou ao poder. Partido e sindicatos se moldaram como aparatos do poder. Os
quadros do PT colonizaram a administração pública sobre a qual o presidente tem
direito de nomear 20 mil empregos bem remunerados. A liderança da CUT virou
encarregada do maior fundo de pensão do país. Sindicalistas se tornaram
administradores de concentrações de capital do país. Militantes se
transformaram em funcionários desfrutando das vantagens que um cargo público
oferece. A classe trabalhadora terminou desconectada do Partido. Mercado e
burocracia são engolidos numa só bocada. Esse novo tipo de poder incrustado
seria um ambiente natural para a corrupção, segundo Oliveira.
A relação de Lula com as massas era agora uma hegemonia às
avessas, pois: “se para Gramsci a hegemonia em uma ordem social capitalista era
a ascendência moral dos proprietários sobre as classes trabalhadores,
garantindo o consentimento dos dominados à sua própria dominação, no lulismo,
os dominados haviam invertido à fórmula, obtendo o consentimento dos dominantes
para sua liderança da sociedade, apenas para ratificarem as estruturas de sua
própria exploração” (ANDERSON, 2011, p. 40-41). A comparação mais apropriada
aqui é com os governos sulafricanos de Mandela e Mbeki, onde o regime de apartheid havia terminado, os donos da
sociedade eram negros, porém os domínios do capital e suas misérias continuavam
os mesmos de outrora. E se o começo do artigo de Anderson começa com uma
saudação a Lula, o fim já demonstra uma desconfiança a sua proposta social de
governo, sobretudo porque o presidente gosta de utilizar a frase segundo a qual
ele diz que “é fácil cuidar dos pobres”. As medidas políticas de Lula têm pouco
ou nenhum custo para os ricos, por isso aparece uma percepção de que a
desigualdade social e econômica em vez de ter diminuído, tem sido mascarada.
Por fim, questiona Anderson, afinal que projeto é esse de distribuição sem
redistribuição e de progresso sem conflito?
Referências:
ANDERSON, Perry. O Brasil de Lula. Revista Novos Estudos, nº 91, nov. 2001, p. 23-52.
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final
do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV/Edur, 2007.
Bacana a análise. Só uma observação: tanto a Economist quanto o Financial Times são londrinos.
ResponderExcluirObrigado pela observação, Léo. Passou batido essa. Vou consertar.
ExcluirAbraços!