O texto que se
segue é uma continuidade de “Naturalmente anarquista: uma iniciação ao pensamento de Proudhon” e compõe a segunda parte de um artigo que publiquei na
revista eletrônica Ágora de Cerro Grande (RG). O anarquista russo
Piotr Kropotkin, além de filósofo, foi geógrafo e etnólogo. Notadamente
inspirado pelo positivismo científico de sua época, além de escrever diversos
textos panfletários, também produziu obras teóricas importantes e apresentou
conferências e palestras sobre literatura russa. Em vida, sua produção escrita
sobre anarquismo se estendeu de meados da década de 1870 até sua morte em 1921.
As ideias políticas
de Kropotkin possuem algumas diferenças às de Proudhon. Enquanto o último é
defensor da posse individual sobre os meios de produção e da transação
comercial como comunicação entre os homens, trocando um produto por outro de
valor igual, o primeiro acredita que no ideal final da sociedade anarquista
deverá haver uma livre distribuição dos produtos de consumo e a abolição de
qualquer tipo de propriedade ou de posse sobre os meios de produção.[1] O
russo afirma que a anarquia é,
portanto, sinônima de comunismo. Mas
não significa que seja um comunismo autoritário e centralista que pretende
tomar o Estado e instaurar um suposto governo revolucionário até a dissolução
completa das classes sociais.[2] A
completa supressão do Estado e de qualquer tipo de governo político
representativo se dará assim que a revolução, como necessidade histórica de
transformação social, estiver concluída.
Entretanto, assim
como Proudhon, Kropotkin acredita que a sociedade procura naturalmente ou
instintivamente a ordem social na anarquia, que significa ausência de coerção e
de autoridade externa, como também expressão da presença de solidariedade e de cooperação entre os membros do coletivo.
Para o autor, a anarquia não é somente um princípio filosófico, mas também a
visão dinâmica e completa dos fatos sociais do processo histórico da humanidade,
que exprimem as verdadeiras causas de seu progresso. Sobre sua compreensão da
anarquia, ele diz o seguinte:
“A ideia anarquista teve de combater todos os preconceitos sociais, impregnar-se a fundo de todos os conhecimentos humanos a fim de poder demonstrar que suas concepções condiziam com a natureza fisiológica e psicológica do homem, e observavam as leis naturais, enquanto a organização atual estava estabelecida contra toda lógica, o que faz com que nossas sociedade sejam instáveis, transtornadas por revoluções que são, elas próprias, ocasionadas pelos ódios acumulados daqueles que são esmigalhados por instituições arbitrárias” (KROPOTKIN, 2007, p. 70).
Assim, a busca da
sociedade anarquista seria, como para Proudhon, a assistência às necessidades
naturais dos seres humanos que são integrados num organismo social ordenado.
Todavia, apesar de estável, a sociedade no anarquismo não seria imutável, pelo
contrário, sua flexibilidade, reajustamento e mudança atenderiam o equilíbrio
de múltiplas forças e influências conforme o conjunto da vida orgânica, de
maneira natural, sem que nenhuma dessas forças atuantes recebesse a proteção do
poder estatal (KROPOTKIN, 1987, p. 20). Essa proposição é bastante importante
para o autor, pois ela é básica para assegurar que no anarquismo-comunista haverá o pleno desenvolvimento da
individualidade de todos, tendo em vista que é pelo grau de sociabilidade e
pela exiguidade de intervenção coercitiva que o indivíduo demonstra plenamente
suas qualidades.
A espontaneidade
individual que luta contra o autoritarismo em favor de sua completa libertação
é descrita desde os primeiros relatos da História humana. Kropotkin adverte que
todas as revoltas na antiguidade e no medievo expressam a luta histórica pela
anarquia (1987, p. 23). Mas nem só de revolta vive o princípio histórico do
anarquismo. O primeiro momento é sim de negação
e de força contra o autoritarismo, porém existe determinado aspecto ligado à afirmação da vida e à sobrevivência
social que constitui também um exercício do anarquismo-comunista: o instinto natural
de ajuda mútua entre os seres vivos.
Para dar conta da
compreensão desse princípio básico de comunidade e da tentativa de comprová-lo
empiricamente, Kropotkin escreveu, em 1902, uma obra teórica bastante interessante
(Ajuda mútua: um fator de evolução) onde
o autor passa a observar o comportamento das espécies animais desde os menores
seres vivos até os homens nas sociedades primitivas, medievais e modernas. O
russo vai contra as teses dos darwinistas que afirmavam que a competição é o
principal fator de evolução das espécies e, por tabela, contra Hobbes que (segundo
sua leitura) defendeu a necessidade do contrato social instaurador do Estado
baseado na justificativa da natureza iminentemente perversa do homem em
sociedade.[3] De
acordo com o anarquista, o fator determinante para a manutenção das espécies e
também da vida em comunidade é a cooperação.
Neste sentido, ele lutará contra as teses que defendiam a natureza competitiva
do homem:
“[...] quando as relações entre o darwinismo e a sociologia me chamaram a atenção, não pude concordar com nenhuma das obras e panfletos escritos sobre esse tema tão importante. Todos eles tentavam provas que os seres humanos, devido à superioridade de sua inteligência e de seus conhecimentos, podiam mitigar entre si a dureza da luta pela vida. Mas, ao mesmo tempo, todos eles concordavam que a luta pelos meios de subsistência, a luta de todo animal contra seus semelhantes, e de cada ser humano contra todos os outros, era uma “lei da Natureza”. Eu não podia aceitar esse ponto de visa, porque estava convencido de que admitir uma implacável guerra interna pela vida no seio de cada espécie – e ver nessa guerra uma condição de progresso – era admitir algo que não só não havia sido provado, como também não fora confirmado pela observação direta” (KROPOTKIN, 2009, p. 12, grifos do autor).
Enquanto para
Proudhon o sentimento humano de simpatia e de equidade é gerado pela
sociabilidade, ou seja, é algo cultural quando lhe é espontaneamente
apresentado às condições de seu desenvolvimento cognitivo através da anarquia,
para Kropotkin a solidariedade e a cooperação é da natureza do homem em favor
de sua própria sobrevivência, independentemente das condições sociais.
Em torno deste
enunciado, Kropotkin, em vez de construir um estado de natureza hipotético do
homem, empreendeu a observação e a descrição do comportamento de “sociedades
tribais” para demonstrar a cooperação nas formas sociais conhecidas como
primitivas para os pesquisadores da época. Em diversos pontos do globo
terrestre são conhecidos povos (como os bosquímanos e os hotentotes africanos,
os esquimós e os aleutas nas regiões de frio intenso, os papuas na Indonésia e
os daiaques na Oceania) que mesmo numa vida rudimentar buscaram a sobrevivência
no apoio mútuo. Inclusive era raro nessas sociedades, segundo Kropotkin,
existir uma chefia suprema ou haver a constituição de um corpo estrutural que se
parecesse com nosso Estado. Geralmente, quando existiam, as lideranças apenas
expressavam os costumes dos membros do grupo. Contudo, o interesse do autor em
fazer este estudo não foi para dizer de onde partimos e para onde devemos
voltar, mas para mostrar que a
cooperação é o fator de evolução que manteve os diferentes grupos humanos
vivos durante tanto tempo.[4]
Assim, ele descreverá igualmente nas sociedades modernas o mesmo fator
evolutivo.
Para Kropotkin, não
há, absolutamente, nenhum instinto que desencadeia batalhas sangrentas entre os
membros de uma determinada comunidade. As guerras são concatenadas pelos
líderes políticos e intelectuais que manipulam os participantes dos exércitos,
enquanto o povo não toma parte em nada. Aliás, diante das desgraças em batalhas
históricas, muitas pessoas, como enfermeiros e cidadãos comuns, ajudaram os
chamados “inimigos de sua nação”, socorrendo-os, sem fazer distinção entre um e
outro (KROPOTKIN, 2009, p. 7). O autor não acredita que estes fatos sejam a
generosidade cultural humana, diante do infortúnio dos outros, porém o instinto
de sobrevivência da espécie em atuação:
“Não é o amor por meu vizinho – que muitas vezes nem conheço – que me induz a pegar um balde de água e correr em direção a sua casa quando vejo pegando fogo; é um sentimento ou instinto muito mais amplo de solidariedade humana que me mobiliza. O mesmo acontece com os animais. Não é o amor, nem mesmo simpatia (compreendida em seu sentido literal), o que leva um rebanho de ruminantes ou de cavalos a fazer um círculo a fim de resistir ao ataque dos lobos; ou lobos a formar uma alcateia para caçar; ou gatinhos ou cordeiros a brincar; ou os filhotes de uma dezena de espécies de aves a passarem os dias juntos no outono. [...] É um sentimento infinitamente mais amplo que o amor ou a simpatia pessoal – é um instinto que vem se desenvolvendo lentamente entre os animais e entre seres humanos no decorrer de uma evolução extremamente longa e que ensinou a força que podem adquirir com a prática da ajuda e do apoio mútuos, bem como os prazeres que lhe são possibilitados pela vida social” (KROPOTKIN, 2009, p. 14; grifos nossos).
É importante salientar
que comumente diversos autores e historiadores do anarquismo buscaram o germe
da anarquia nas filosofias, nas revoltas e nos movimentos sociais mais antigos
ao longo de todo curso da História humana escrita.[5]
Contudo, da maneira empreendida por Kropotkin nenhum outro autor o fez tão bem,
pois o russo não se reduziu a pensar o comportamento humano em sua cultura
social, mas procurou comprovar cientificamente, ao seu modo, como o princípio
da anarquia e da cooperação está presente na natureza de todos os animais e tem
atuado por toda a história no convívio com os mesmos de sua espécie. Desta
maneira, o comunismo anarquista de Kropotkin, não é uma proposta política
inovadora que pretende manipular metodicamente as estruturas da organização
societária, porém é somente a adequação à natureza humana e social. Em última
instância, é a defesa de uma sociedade que formará agrupamentos espontâneos de
baixo para cima de acordo com seus hábitos sociais e naturais, agora
intrínsecos.
Pitacos safados!
Obviamente, é necessário
considerar que os postulados de Proudhon e de Kropotkin são produtos de um
discurso ideologicamente conduzido em favor de suas bandeiras políticas.
Entretanto, qual discurso não é ideológico? Foucault (2010) afirma que todos o
são, até mesmo, e inclusive, os científicos e historiográficos. A importância
das proposições expostas por estes dois pensadores está justamente no desafio
de pensarmos o quanto algumas verdades “prontas” nos chegaram e, de certa
maneira, se encontram atualmente cristalizadas e inquestionáveis. Um exemplo:
nas escolas brasileiras, as teses darwinistas sobre a competição inerente ao
progresso humano e animal são apresentadas como comprovadas empiricamente acima
de qualquer objeção, não havendo questionamento ou abertura para o debate
divergente. Kropotkin e outros cientistas contrários a estas ideias são
esquecidos. Do mesmo modo, a constituição do Estado moderno é narrada diversas
vezes através de uma verdade que se apoia numa justificativa supostamente indubitável
(“o homem é lobo do homem”). Neste sentido, podemos pensar em que medida estes
discursos representam interesses ideológicos e políticos, independentemente de
serem verdadeiros ou falsos. Quanto eles foram historicamente uteis para
assegurar uma determinada verdade histórica?
Texto publicado originalmente em:
ALVES, M. P.
Natureza e anarquia: aspectos entre natureza e história na filosofia política
anarquista de Proudhon e Kropotkin. Ágora
Revista Eletrônica. Ano VIII, n. 16, p. 31-42.
Referências:
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2010.
KROPOTKIN, P. A ajuda mútua: um fator de evolução.
São Sebastião: A Senhora Editora, 2009.
KROPOTKIN, P. A conquista do pão. Rio de Janeiro:
Edição da Organização Simões, 1953.
KROPOTKIN, P. O princípio anarquista e outros ensaios.
São Paulo: Hedra, 2007.
KROPOTKIN, P. Palavras de um revoltado. São Paulo:
Imaginário, 2005.
NETTLAU, M. História da anarquia: das origens ao
anarco-comunismo. São Paulo: Hedra, 2008.
[1] A máxima “de cada um
segundo suas capacidades e a cada um segundo suas necessidades” criada pelos
socialistas, entre o final do século 18 e início do século 19, recebeu a crítica
de Proudhon, que entendia que comunidade não sabia o quanto cada indivíduo
poderia trabalhar e consumir, sendo impossível uma lei ou uma autoridade
(individual ou coletiva) neutra que fosse justa. Por outro lado, Kropotkin
retoma e defende essa máxima, acreditando que o próprio indivíduo terá
consciência e responsabilidade sobre o quanto pode trabalhar para a sociedade
libertária e o quanto necessita consumir.
[2] Respondendo aos
comunistas marxistas, Kropotkin diz que o governo revolucionário é um
contrassenso, pois todos os governos, sejam de um indivíduo ou de um grupo são
despóticos e autoritários, não combinam com revolução, no máximo querem fazer
um remendo da concepção burguesa de sociedade. Assim que toma o poder político
o grupo ou o partido deixa de ser revolucionário para ser reacionário e conter
através da força tudo aquilo que vai contra seus interesses particulares
(KROPOTKIN, 2005, p. 185-188).
[3] Kropotkin condena
as visões pessimistas da humanidade, as caracterizando como superficiais e
insuficientes. O autor escreve o seguinte: “Essa foi a posição adotada por
Hobbes. Embora alguns de seus seguidores do século 18 tenha se empenhado em
provar que, em nenhuma época de sua existência – nem mesmo na mais primitiva –,
a humanidade viveu num estado de guerra perpétua, que os seres humanos foram
sociáveis mesmo no ‘estado de natureza’ e que foi a falta de conhecimento, e
não a má índole natural humana, a
responsável por levá-los a todos os horrores da história [...]. Mas a
filosofia hobbesiana ainda tem muitos admiradores; e ultimamente surgiu uma
tendência que, adotando a terminologia de Darwin, e não suas ideias principais,
construiu um argumento em favor da visão de Hobbes sobre o homem primitivo e
conseguiu até mesmo dar-lhe uma aparência científica” (KROPOTKIN, 2009, p. 73).
O autor se dirige especificamente a Thomas Henry Huxley e também a Herbert
Spencer, defensores de uma tendência chamada de “darwinismo social”.
[4] Pois apesar do
surgimento no século 20 de uma determinada vertente primitivista no anarquismo,
que ataca a civilização moderna e prega a volta às “origens”, a proposta de
Kropotkin não é essa. Muito pelo contrário, em outros escritos ele diz que a
observação das chamadas sociedades “selvagens” era apenas para mostrar o apoio
mútuo em diversos âmbitos de organização social. O russo defende que “o homem
não é um ser que possa viver exclusivamente para comer, beber e procurar
abrigo”. Então, assim que tiver conseguido realizar essas necessidades sua vida
buscará a sofisticação e o luxo. A busca pela revolução social é em primeiro
lugar para assegurar o pão a todos, contudo, não sendo mais explorado no
trabalho e tendo o pão assegurado, o homem disponibilizará de tempo necessário
para promover seus dotes artísticos, suas capacidades intelectuais e científicas
(KROPOTKIN, 1953, p. 44-46).
[5] Max Nettlau, por
exemplo, um reconhecido historiador anarquista do começo do século 20, procura
em suas análises uma determinada essência da anarquia desde a filosofia de
Zenão, outros ainda veem no roubo do fogo por Prometeu (para dar aos homens) na
mitologia grega como a primeira tendência de revolta “anarquista”. Nettlau
(2008) assegura que as revoltas no passado e as filosofias antiautoritário, no
entanto, não tinha a completa consciência da ideia anarquista, pois logo que
conseguiam seus objetivos voltavam a impor novas ordens autoritárias para
assegurar tais conquistas, por isso, foi somente no século 19 que a consciência
de uma sociedade fundada sobre a base da anarquia se tornou clara na cabeça de
alguns homens e movimentos sociais.
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