terça-feira, 28 de outubro de 2014

Conexão tempo: o teatro das eleições presidenciais 2014 no Facebook

Nos dois meses anteriores, sobretudo, no último, percebi o significado mais profundo das palavras “conectado” e “desconectado” – quando estas se referem às redes sociais. Fiquei a maior parte deste tempo desconectado do “tempo” chamado Facebook. Por curiosidade voltava em alguns momentos para saber o que estavam falando. Então tinha vontade de comentar e curtir posts. Porém uma espécie de voz oculta, tal qual aquela que rege o método do pesquisador positivista, recomendava me desligar novamente daquele mundo. Um mundo de ficção surrealista que, no entanto, em vez de fugir do comum e do real, tinha com ele uma estranha relação de proximidade tão pontual quanto ambígua. 

O Facebook tinha se transformado, da cabeça aos pés, da imagem à grafia, do rosto ao livro, num teatro de inúmeros personagens em torno de uma peça única: as eleições. Colado ao tradicional princípio de máscaras do teatro, o público se confundia com os personagens. Mas tratava-se de uma catarse diferente. Pois o público também compunha o elenco. Cada um dele era um personagem específico. Milhões de personagens! O que quer dizer que, no sentido exclusivo do termo, ninguém assistia a apresentação. E, ao mesmo tempo, todos a assistiam se assistindo. Todos participavam das cenas, contudo e misteriosamente, nenhum dos personagens sabia o desfecho que eles mesmos produziriam. Havia antagonistas e protagonistas, heróis e vilões. Polarização. Esta que, segundo uma das personagens principais, Marina Silva, estragava o espetáculo. E estragou. Polarização da qual a própria personagem, no decorrer da narrativa, se rendeu e foi (mais uma) vítima.

Eu, que não era exatamente alguém do elenco, de relance, olhava pela fresta da porta as encenações do público-personagens. E me espantava. Em tempos de redes sociais, a militância, em favor de um personagem principal e contra outro, nunca foi tão similar ao militarismo. Exércitos de soldados. Felizmente as armas usadas não mataram. Afinal, era “só” um teatro. Mas feriram. E disseminaram ódio entre o próprio elenco. Ódio que pode vir a matar, transformando futuramente o teatro num reality show: com seus campos de concentração e paredões.

Espantei-me mais ainda quando vi o grau de confusão causado pelo jogo de máscaras. Gente que, antes, usava seu “mural” para postar selfies, fotos de gatos e piadas de humor duvidoso, estava agora falando de política como quem saboreia um pacote de bolacha no lanche da tarde. Algumas análises eram tão profundas quanto às de determinados comentaristas de futebol da Copa que nem ideia faziam do que era um escanteio. Professores universitários que geralmente se mantinham insípidos às discussões políticas (e nunca faziam críticas aos governos) começaram a se posicionar de modo nunca visto, às vezes como crianças birrentas diante da ameaça de ter seu brinquedo tirado de si. Eu que tento postar reflexões e provocações sobre política durante o ano inteiro, me vi completamente “desconectado”. É que me sentia pouco a vontade com a “polarização” (mais forçada do que verossímil) entre os dois últimos personagens principais da cena. Desconfiado com a democracia que tem no voto o alfa e o ômega, e concordando com o que postou meu primo João Gabriel, não via à hora de acabar esta peça para começarmos a discutir novamente sobre política. (Estes homônimos também fazem parte do baile de máscaras).

Algo positivo em todo este teatro é ver a sociedade brasileira debatendo temas e projetos do quais se alienou durante a maior parte da história. Mas tenho uma hipótese que aponta para o lado negativo. A acentuação das discussões em torno da política no período pré-eleitoral é inversamente proporcional a indiferença que a mesma provoca na população fora deste espaço de tempo. Infelizmente este último é o que faz toda a diferença, já que um mandato nos moldes do nosso sistema é exercido durante quatro anos e não durante os dois ou três meses que os pretensos representantes do povo aparecem continuamente na TV.

Usaram a metáfora das torcidas de futebol para descrever o comportamento dos eleitores brasileiros nas redes sociais, então, pode ser interessante compararmos este eleitor, que só se interessa por política ou expõe publicamente suas opiniões durante a eleição, com aquele torcedor que só se relaciona com seu time de coração quando vai para a final. Durante o campeonato e, sobretudo, quando a equipe vai mal, ele simplesmente se esquece de “torcer”. Não incentiva, portanto, seu time a conquistar algo. Entretanto, diferente de um time de futebol, que para obter bons resultados depende essencialmente apenas de seus atletas, na democracia a situação se torna mais delicada, pois sem participação geral ela tende a enfraquecer e até se dissipar. Num post recente, a professora de filosofia Camila Jourdan chamou atenção para este fato. No atual cenário político que vivemos, a pressão de inúmeros vetores faz muito mais diferença do que eleger o candidato A ou B. Entre estes vetores está a população – que não necessariamente coincide com banqueiros, grandes empresários, latifundiários e etc. Setores estes para os quais o PT tem cedido cada vez mais para se manter no governo e dos quais historicamente o PSBD tem sido aliado.

Como apontou Eliane Brum em O longo dia seguinte, a tônica do debate eleitoral no Brasil foi politicamente esvaziada em prol de uma retórica que garanta a manutenção do poder. Prova disso se fez quando Aécio prometeu continuidade aos programas sociais – como o Bolsa Família, alvo de crítica da maioria dos opositores ideológicos do PT. E ficou mais destacado quando militantes petistas, ao mesmo tempo, ao dizerem que esta era uma mentira cabeluda (como se pudessem prever o futuro), usavam-na como verdade para tentar convencer eleitores de Aécio a não votar nele, partindo do suposto de que o candidato não acabaria com as “Bolsas”. No fundo, mostrou-se o medo de perder o poder. Afinal o que seria do PT se aparecesse um governo que mantivesse todas as conquistas sociais durante estes anos na presidência? Isto é, qual argumento iria usar para se mostrar “melhor” que outro partido? Nesta celeuma, ficou claro que boa parte da população está insatisfeita com o PT, porém, talvez mais com o modelo de governabilidade brasileiro. Modelo este que, diga-se de passagem, nem nos sonhos mais malucos se alteraria com um governo do PSBD. Seria, sim, tão-somente uma outra forma de administrar o mesmo modelo. Talvez mais catastrófica para aqueles que ficam com a menor fatia do bolo ou aqueles que, embora façam parte do elenco, sequer são cogitados para uma eventual festa de premiação do espetáculo.  

É óbvio que as Jornadas de Junho aconteceram como exigência de mudança. Não só na presidência. Mas nos governos estaduais, nas prefeituras e nas câmaras legislativas onde não existia só PT, mas PSDB, PMBD, DEM, etc. Porém diante da falta de opções, seguiu-se com o mesmo para não abraçar algo talvez pior: por medo. Um personagem deste eleitorado vi de forma mais clara fora do teatro das redes sociais. Um taxista, já bem senhor, que conhecia de perto o PSDB e seus aliados aqui em Uberlândia-MG. Chegara a trabalhar por anos para um dos ex-prefeitos da cidade. Desiludido com a política institucional nos perguntou contra quem votaríamos no domingo. Ele votaria contra o Aécio. Bastava. Disse para agradecermos a chuva que caia naquele dia. Era tudo o que importava. O resto foi coragem de abstenção e de voto nulo.

Ao fim do espetáculo, parte do público-elenco não gostou nada nada do desenlace final da narrativa. Especialmente porque o clímax sinalizou outro fim, talvez mais surpreendente, sem dúvidas. Mas nesta confusão de máscaras pode se dizer que até o previsível surpreendeu. O elenco já dividido, antagonizado, desde então, agora troca as máscaras. Mas elas parecem continuar se contrastando e se opondo como os uniformes de dois times rivais. Vermelho versus Azul. Pobre versus Rico. Petralha versus Coxinha. Terrorista contra Playboy. Sul contra Nordeste. Brasil contra Brasil. O tempo contra nós. Derrota inevitável? A vitória de Dilma foi só o gol de empate. Para ganhar este jogo precisamos inventar novos personagens. Ou, melhor, outro tempo, no qual possamos nos “reconectar”.   
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terça-feira, 5 de agosto de 2014

Em 1926: a presença de Gumbrecht

Qual é o sentido de estudarmos História? Por que esta área do conhecimento privilegia determinadas datas, contextos e acontecimentos em detrimento de outros? Por exemplo, por que a historiografia brasileira produziu tantos livros dando destaque a certos anos como os de 1822 e 1964? E, indo mais a fundo, que importância tem o aluno de História saber sobre o triunvirato da antiga república romana ou sobre as guerras médicas? Mudará sua vida acaso ele saiba como se dava a divisão de classes durante a Idade Média? De maneira direta ou indireta, um dos livros de Gumbrecht inevitavelmente suscita indagações como estas. O autor escolheu abordar a simultaneidade histórica de uma maneira muito particular. Produziu um livro sobre o ano de 1926. Mas, de acordo com a historiografia em geral, o que diabos aconteceu de tão importante neste ano? Nada.

Alemão, que reside há tempos nos EUA onde dá aulas na Universidade de Stanford, Hans Ulrich Gumbrecht (1948-) é um teórico literário que se inspira em historiadores como Reinhart Koselleck, Hayden White e Paul Zumthor. Considera-se um autor pós-moderno, mas deixa claro que este rótulo só serviria num sentido negativo, dentro da (já enfadonha) batalha acadêmico-ideológica em prol da preservação dos valores “modernos” ou “modernistas” contra os “pós-modernos”, o que garante ser, desde já, uma causa perdida. Sua postura pós-moderna é referente à tentativa de não pensar a História como um movimento homogêneo e totalizante, à argumentação em favor de uma concepção “fraca” de subjetividade e a seu fascínio por superfícies materiais (GUMBRECHT, 1999, p. 14). Publicado, em 1997, pela editora de Havard (dois anos antes da versão brasileira), a obra Em 1926: vivendo no limite do tempo é sem dúvidas um livro de história. Só que incomum. Mas o inusitado não está somente em tratar de um ano que pouco importa segundo nossos marcos cronológicos. É, também, um livro de história não-linear e não-sequencial – pelo menos não do modo como estamos acostumados. O enredo fala sobre 1926, mas não possui começo, meio e fim. Aliás, ousaria dizer que só tem meio.

Antes de começar o livro propriamente dito (ou ele já teria começado?), há um manual de instrução para o leitor. Ali Gumbrecht diz que este não é um livro para ser começado do início. Isto porque ele não tem início. Os 51 capítulos (se é que assim podemos chamar) são verbetes no formato de crônicas sobre 1926. Estão divididos em três seções: “dispositivos”, “códigos” e “códigos em colapso”. Porém o leitor escolhe por onde começar. Ao término da crônica a qual o verbete dá nome, o leitor encontrará uma lista para escolher entre os diversos verbetes relacionados ao que ele acabou de ler. E assim por diante, até concluir o livro, ou até desistir dele antes de ler mais ou menos 500 páginas. Quer saber do que tratam os verbetes? São descrições gerais sobre fatos e configurações do ano de 1926 (na política, cultura, artes, esportes, etc.), o que o autor chama de “percepções de superfície dominante e visões de mundo dominante”. Mostro um exemplo a seguir.

A relação de Gumbrecht com o Brasil é, de alguma forma, próxima. Em 1926 há notícias e referência a autores brasileiros, como aos historiadores Sérgio Buarque de Holanda e Nelson Werneck Sodré. No verbete “individualidade = coletividade (líder)” da seção “códigos em colapso”, o autor aborda a falsa dicotomia entre individualidade e coletividade que aparece, especialmente, na figura do líder. Apontando casos no mundo todo que se relacionam a discussão, ele apresenta uma entrevista do Jornal do Brasil a respeito da relação entre Mussolini e a nação italiana, segundo a qual existia uma mútua subordinação entre ambos, já que o líder fascista, em vez de guia, era conduzido pelas forças que ele parecia conduzir e, caso um dia ele resolvesse parar, o povo o obrigaria a seguir. Apresenta também a opinião de Adolf Hitler sobre o tema, a partir de seu livro Minha luta, publicado em 1926. Hitler contraria completamente a tese anterior, negando a reciprocidade entre líder e liderados. “Para ele, a política se caracteriza por uma polaridade quase hostil entre o gênio do Líder e a inércia das massas. Como ele não vê necessidade de aprovação coletiva para as decisões do líder, ele abomina a ideia de uma relação não-hierárquica entre o Líder e a população”, escreve Gumbrecht (1999, p. 435). Ao concluir o capítulo, para corroborar com a tese que diz que “a tarefa mais importante do líder é manter as massas em movimento”, o autor faz referência à marcha da Coluna Prestes no Brasil, que teria começado como manobra estratégica incorreta durante uma guerra civil e depois se tornado um símbolo da resistência política e uma missão para educar o povo brasileiro. Em todo caso, Gumbrecht parece caçoar desta última afirmação (extraída de um livro de José Augusto Drummond), dizendo que em 1926 não se viu nada além do ziguezaguear dos soldados no território nacional, mas que já seria o suficiente para a liderança, posto que “enquanto Prestes mantiver os seus seguidores em movimento, eles não perguntarão aonde ele os está levando” (p. 436).

Em todo caso, Gumbrecht diz não querer impor sua voz individual na seção dos verbetes, nem fazer interpretações profundas ou contextualizações diacrônicas. O que quer mesmo é promover pela escrita uma simultaneidade histórica, de maneira superficial, como se estivéssemos no ano dos acontecimentos. Por isso ele nega fazer qualquer explicação que seja baseada em pensamentos e visões posteriores ou anteriores ao ano que é seu objeto de estudo. O objetivo principal é fazer o leitor acreditar na ilusão de que está (vivendo) em 1926. Para isso, Gumbrecht tenta fazer aquilo que deu título a um de seus livros, Produção de presença. Embora, na verdade, “a produção de presença” se refira mais especificamente ao processo espacial que faz com que um objeto tenha algum impacto sensível sobre as pessoas (2010, p. 12), ela também acompanha a ideia de representação para o autor, ligada ao tempo, que é fazer o ausente tornar-se presente (1999, p. 10). 



Gumbrecht
Acompanhando o citado processo de produção de presença, seu laboratório de pesquisa ao escrever Em 1926 é algo que chama atenção. Gumbrecht coletou toda informação que pudesse ter sobre tal ano e a levou a seu escritório para a confecção da narrativa. Leu livros, revistas e jornais, ouviu músicas e assistiu repetidas vezes filmes em preto e branco produzidos em 1926. Durante o trabalho, até seu calendário era de 1926. Foi um verdadeiro mergulho no objeto. Coisa muito distinta da que normalmente fazem os historiadores quando vão pesquisar sobre um dado período. Isto é, a tentativa da historiografia em geral é se afastar do objeto para atingir um grau de objetividade, para não se deixar “contaminar” com o mesmo ou não ser mordido pelo vampiro que se está entrevistando (ao contrário do filme). Usa-se o método do distanciamento (entre sujeito e objeto) para a análise e compreensão, tal como um etnógrafo (da linha mais “positivista”) quando ia descrever uma tribo indígena. Já o autor tem pouco interesse sobre os conceitos de compreensão e interpretação. Para ele ambos se relacionavam “com uma topologia [da hermenêutica] na qual a ‘superfície’ precisava ser penetrada para se alcançar uma profundidade – que seria supostamente um aspecto da Verdade”. Este método garantia ser superior à percepção do sujeito (1999, p. 470). Sabe-se que a hermenêutica, bem como o modelo epistêmico seguido pelas Humanidades privilegia o “sentido” (extraído pela interpretação), enquanto Gumbrecht volta sua atenção à “presença”.

Mas afinal de contas, o que motivou Gumbrecht a escrever história desta forma? Além do “manual de instrução ao leitor”, esta resposta é dada de maneira satisfatória no penúltimo capítulo do livro (ou seria já posfácio?) intitulado “Depois de aprender com a história” que, junto ao último capítulo (“Estar-nos-Mundos de 1926”) e diferentemente dos verbetes, foi escrito de maneira argumentativa em direção aos acadêmicos interessados nos pressupostos teóricos, nos processos de pesquisa e escritura do livro e outros usos da obra além da re-presentificação de 1926.

Em resumo, o autor partiu de um pressuposto um tanto quanto pessimista, eu diria. Como sugeri no primeiro parágrafo, ele acredita que não há mais o que aprender com a História. Melhor dizendo, que abandonamos a esperança de aprender com a História no sentido de uma narrativa didática. Primeiro porque, pragmaticamente, descobrimos na modernidade que não é possível utilizar a história como exemplo ou guia de ação ao presente, pois, já que o tempo está em permanente mudança e não há leis históricas, o presente sempre será diferente e imprevisível. Segundo porque aprendemos com Hayden White que as regras que regem a composição de um texto historiográfico não são as mesmas que supostamente governariam a história. Então Gumbrecht se questiona o que podemos fazer com nosso conhecimento sobre o passado. Um primeiro passo seria aparentemente o que o autor fez Em 1926, o de tentar usar maneiras não-narrativas de pensar e representar o passado. Mas ele aponta uma questão mais essencial. A de saber o que é o passado antes de buscar formas possíveis de representá-lo (1999, p. 11).

Esse argumento reprisa passagens de autores pós-modernos (como Ankersmit e Munslow) que me incomodam um pouco. Até considero corriqueiro quando este pressuposto vem de um pensador “construtivista” que, no limite, defende a existência de um passado único, mais verdadeiro, mais real e límpido e do qual precisamos nos informar para reconstruí-lo fielmente, a despeito de todas as apresentações que foram feitas dele. Trata-se de uma noção baseada num essencialismo que pode se tornar uma aporia para o historiador, haja vista que não temos acesso ao passado senão pelas fontes (que são representações!) produzidas dentro de um jogo de poder e cultura específica e, que portanto, não são transparentes (sobretudo porque a linguagem é opaca). A questão aqui não é refutar a existência de uma realidade histórica fora da subjetividade e dos discursos, como o autor crítica aos novos historicistas. Esta certamente existe. A questão é que, do ponto de vista pragmático, só temos acesso a realidade através dos discursos e de nossas subjetividades. Contudo, a originalidade de Gumbrecht e sua proposta historiográfica vêm daí mesmo, de um certo paradoxo inovador, digamos niilista-existencialista. O autor concorda que a representação (tornar o passado de fato presente) é impossível, mesmo fazendo apologia do “contato direto do passado” por meio da imersão do sujeito em contato a uma espécie de atmosfera da época composta por objetos antigos – coisa que ele fez consigo mesmo em seu “laboratório”. Entretanto ele diz que a repreensão dos historiadores da chamada Nova História aos historiadores modernistas, sobre a impossibilidade de acesso ao passado integral, não passa de um recalque. De um desejo (in)contido de ser onisciente, apreendendo todo o passado, de ser onipresente, vivenciando plenamente o período de que estuda e de viver a eternidade, este tempo simultâneo, sem passado ou presente.

De alguma forma, a proposta do autor é tentar satisfazer este desejo (divino?) que, vou confessar para vocês, acredito que é mais dele do que de qualquer outro. Neste sentido, Gumbrecht parece mais preocupado com o que é o passado para nós (e para ele) de uma maneira mais próxima da arte do que da ciência. Quando diz que seu livro é um experimento que visa atingir nossos impulsos pré-conscientes fazendo a gente se sentir em 1926, ele talvez esteja tentando instigar uma experiência estética (próxima ao sublime), aquela em que apreendemos o que é algo (o que é o passado) através da imaginação ao contemplar uma obra de arte (ou, no caso, ao ter contato com objetos materiais da época ou, vou além, sentir a “presença” de Deus ao entrar numa catedral medieval). Neste caso, a coragem de sua tentativa inovadora só não seria maior do que sua pretensão.
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Dica: Além de conhecedor de alguns acontecimentos e aspectos da história e da literatura nacional, Gumbrecht fala português fluente e já veio ao Brasil algumas vezes. Ele estará novamente em terras brasileiras fazendo a conferência de abertura do Oitavo Seminário Brasileiro de História da Historiografia. Quem quiser prestigiar o pesquisador é só “produzir sua presença” (trocadilho inevitável) no dia 18 deste mês, na Universidade Federal de Ouro Preto, campus localizado em Mariana-MG. Eu sei que ninguém perguntou mas eu também estarei lá, apresentando trabalho sobre Stirner e a historiografia do anarquismo. Se Deus quiser. Amém!

Referências:
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010. 
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quinta-feira, 31 de julho de 2014

Liberdade para Bakunin (!)

A liberdade do outro estende a minha ao infinito.
 Mikhail Bakunin


Há muitos significados que dão conteúdo ao vocábulo “História”. Mas eu gosto particularmente de um que é apresentado por Jacques Rancière (1994). Ele diz que a história é feita na medida em que palavras e noções antigas (às vezes soterradas) são novamente postas em circulação no presente, provocando uma redistribuição dos papéis sociais ao alterar nossas maneiras de ver, sentir e enunciar o mundo e as coisas. Significa que história é uma coisa rara. Que não se trata de uma sucessão de fatos que pode servir às narrações. Nem de um determinado contexto conjuntural ou estrutural que pode servir às descrições. A história sob este sentido tão particular refere-se, antes, a um entrecruzamento de temporalidades e não a uma continuidade. Um pedacinho de passado submerge no presente, interagindo com este e tornando-o (tão mais) vivo e diferente. É como se tivessem enterrado uma lanterna 1876 e, 138 anos depois, nós a desenterrássemos, agora, em 2014; e ela emitisse uma luz, que é do passado, mas que ilumina coisas do presente, mostrando-as de uma forma que nunca as vimos antes. Esse é o entrecruzamento de temporalidades produtor de história.

Usei este trololó filosófico todo para falar da atualidade de Bakunin e do anarquismo. Circula pela imprensa do país que a polícia incluiu o nome de Bakunin no inquérito contra ativistas (alguns anarquistas!) no Rio de Janeiro. Pelo visto esta é uma homenagem da polícia brasileira ao bicentenário do nascimento do anarquista russo. No próximo novembro, haverá um Colóquio Internacional no Brasil cuja temática é a Associação Internacional dos Trabalhadores e Mikhail Bakunin. Não sou da organização, mas estão todos convidados. Bakunin costuma receber bem os amigos... e até os inimigos. Isto se deve ao fato de ter sido ele hóspede de tantos anfitriões desde que partiu fugido da Rússia, em 1839, para morar na Alemanha e depois percorrer toda a Europa tentando espalhar revolução por onde passava.

Nascido no extremo oeste russo, em 1814, Mikhail Aleksandrovitch Bakunin era um dos sete filhos de uma família aristocrata proprietária de terras. Seu pai era doutor em filosofia e admirador das ideias liberais, embora apoiasse o czarismo. Na infância Mikhail recebeu uma educação de nobre, aprendendo pelo menos quatro idiomas. Foi enviado para o exército quando jovem. Mas sua indisciplina e seu amor pelos livros não encontraram conciliação com a carreira militar. Após fingir uma doença, finalmente conseguiu ser dispensado, conforme conta George Woodcock (2007, p. 165). Foi Aleksandr Herzen quem introduziu Bakunin ao radicalismo político da filosofia e foi também ele quem lhe emprestou dinheiro para sua viagem a Alemanha. Lá concluiu seus estudos filosóficos e conheceu as obras de Weitling e Proudhon (importantes filósofos para sua formação intelectual, bem como, anteriormente, Hegel e Fichte). A partir de 1848, com emergência da Primavera dos Povos, Bakunin se integrou às frentes de luta política que ocorriam por toda a Europa. A época vivia um ambiente de agitação política relacionado à grande depressão industrial de 1840. Após uma das rebeliões (em Dresden em 1849), Bakunin foi preso e rodou cadeias da Saxônia e da Áustria até ser mandando para a famosa fortaleza russa de Pedro-e-Paulo, onde contraiu escorbuto e perdeu seus dentes. Conseguiu exílio do czar em 1857, e até 1961 ficou na Sibéria, quando então fugiu em direção ao Japão num navio americano. Daí foi para Londres. O exílio e as prisões debilitaram a saúde de Bakunin, mas suas ideias permaneciam ainda mais fortes, era o que ele mesmo dizia. Estava de volta à luta revolucionária! Na Europa passou uma longa fase na Itália participando de ligas e círculos de luta política; e amadurecendo suas ideias, que se tornariam anarquistas a partir de meados da década de 60 (a isto se deve também seus muitos encontros com Proudhon, em Paris, pouco antes do parceiro anarquista morrer). Em 1868, Bakunin é integrado à Associação Internacional dos Trabalhadores. Já em 1864, Marx havia lhe convidado pessoalmente a participar, contudo, a importância de tal associação se deu somente depois do segundo congresso, ocorrido em 1867, e da greve geral do ano posterior em Genebra. Dentro da AIT é que se desenrolarão os conflitos entre socialistas libertários (de onde sairão futuramente conhecidos como “anarquistas”) e socialistas marxistas (chamados de “autoritários” por aqueles). Conto parte destas disputas em Cartas contra Bakunin [clique no azul para ler].

Bakunin morre em 1876. Com o envelhecimento precoce nas prisões, o cansaço e a desilusão das lutas políticas, ele havia se “aposentado” três anos antes. Na carta que enviou a federação que participava, ele dizia: “Não me sinto mais com as forças necessárias para a luta: seria, pois, no campo do proletariado, um estorvo, não uma ajuda. [...] Continuarei seguindo com ansiedade fraterna todos os vossos passos e saudarei com alegria cada um dos vossos novos triunfos. Até a morte serei vosso” (citado por GUILLAUME, 2006, p. 34). Coitado! Ele pensava que era só até morte. É sabido que Bakunin não foi um grande teórico do anarquismo. Era um homem muito mais prático. Talvez lhe faltasse concentração. Talvez o preocupasse o fato de estar escrevendo no momento em que a revolução se irrompesse. Tem-se escrito que ele era um homem de ímpeto. Um gigante, muito alto e gordo, que nem tinha tempo de preocupar-se com sua aparência, porque era mesmo afobado, imediatista. Que convencia os outros mais pela imponência e pela oratória do que pela argumentação elaborada. Mas, neste último caso, se comete alguma injustiça. Bakunin, embora não tenha produzido uma obra teórica, nos deixou escritos fundamentados e inteligentes. Tanto é que seu legado vive até hoje. Aproveito este espaço para discorrer brevemente sobre um dos conceitos mais interessantes em Bakunin, a liberdade.

Rejeitando a metafísica, a liberdade para Bakunin é sempre coletiva, social, partilhada e construída através das condições materiais do ser humano e de seu ambiente. A noção de liberdade em Bakunin é produzida em contraponto a Jean-Jacques Rousseau. Haja vista que o russo discorda deste quando afirma que não há liberdade no suposto estado de natureza (do qual muita gente crê que representa fielmente a anarquia. Pois bem, pode ser que se refira a um certo sentido de anarquia, mas não a “anarquia” segundo anarquistas como Bakunin). Não há liberdade no estado de natureza simplesmente porque neste momento não há humanidade, não há ainda sociedade, a espécie humana em solidão não passa de um animal, um macaco que sequer possui linguagem. A liberdade é necessariamente uma positividade. Ela está envolvida numa relação de elementos culturais que se somam e se expandem. Ao vincular pensamento e palavra, o filósofo diz que as palavras são produzidas pela comunicação que naturalmente só pode ser feita entre dois ou mais indivíduos. Desta forma, um indivíduo solitário, isto é, sem contato com os demais, não tem a possibilidade de realizar sua humanidade, culturalmente falando, e, tampouco, sua liberdade no mundo, uma vez que suas faculdades intelectuais e morais são interrompidas. Para ser livre o homem precisa, primeiro, conhecer a natureza que o criou, para também, conhecer a si mesmo.

Ao se conhecer, o ser humano se torna livre se emancipando e emancipando (se necessário, instigando revolta e crítica) os outros homens e mulheres, seus irmãos. Aqui aparece outro aspecto da liberdade em Bakunin, a igualdade social. Não é possível que eu seja livre em uma sociedade que não é livre, onde há pessoas que não são livres. O indivíduo só se conscientiza de sua humanidade e conquista sua liberdade através dos esforços de todos os membros passados e presentes de sua sociedade, completando-se com outros indivíduos que o cercam, graças ao trabalho (no sentido de todas as realizações materiais que transformam a natureza) e força coletiva. A sociedade não diminui ou limita, pelo contrário, cria a liberdade dos indivíduos. A liberdade do outro estende a minha ao infinito, aponta Bakunin (1975, p. 14).

O anarquista disserta sobre as dependências sociais inerentes as quais o homem está ligado. O homem “não nasceu livre, mas acorrentado, produto de um meio social particular criado por uma longa série de influências passadas, por desenvolvimentos e factos históricos. Está marcado pela região, o clima, o tipo étnico, a classe a que pertence, as condições econômicas e políticas da sua vida social e, finalmente, pelo local, cidade ou aldeia, pela casa, pela família e vizinhança, em que nasceu” (1975, p. 12-13). Ademais, ele aponta que este é um tipo de pressão quase imperceptível, pois, desde o nascimento, bastante contínua e sutil. Para que o indivíduo se revolte contra estas condições ele terá que revoltar-se, em parte, contra ele próprio, contra suas tendências, aspirações materiais, intelectuais e morais, já que ele é um produto da sociedade. Mais do que isso, é importante conhecer as pessoas que te cercam, tendo em vista que a sua individualidade está relacionada à deles. “Mesmo que eu queria ser livre, não posso, porque a minha volta ainda nenhum homem quer ser livre e não o querendo, eles transformam-se contra mim, em instrumentos de opressão” (1975, p. 21).

De todo modo, Bakunin não vê problema na característica da sociedade exercer coerção, não havendo sentido em se revoltar contra seu formato, assim como não faz sentido se revoltar contra a natureza. O alvo de transformação são as instituições dentro do tecido social (como a Estado, a Igreja e o sistema econômico) que produzem o culto divino, a autoridade, a mentira, o privilégio, a exploração, a corrupção e outros males. É preciso primeiro moralizar a sociedade, ele diz (p. 21). E para isso acontecer, somente com uma revolução social. A atual configuração da sociedade produz os crimes em vez de reprimi-los, impele os indivíduos a serem imorais e autoritários. Enquanto uma sociedade anárquica, organizada de baixo para cima, federalizada, criará condições propícias para, ao contrário do que ocorre, os indivíduos serem cada vez mais solidários e livres. É por esta razão que Bakunin não vê problema no fato de uma sociedade exercer coerção sobre seus membros, a questão é que tipo de coerção. Assim ele escreve: “A única autoridade grande e toda-poderosa e ao mesmo tempo natural e racional, a única que nós podemos respeitar, será a do espírito coletivo e público duma sociedade fundada na igualdade e na solidariedade, assim como na liberdade e no respeito humano e mútuo de todos os seus membros” (p. 19). Importante atentar para a palavra “natural”, pois os anarquistas do séc. 19 repisam o argumento de que a anarquia é uma adequação à natureza e, por isso, querem o fim do Estado e de instituições que exercem influências “artificiais” e que são intermediárias entre os indivíduos.

Ressalto ainda que Bakunin não gosta nem um pouco da ideia de “contrato social” que, segundo Rousseau, retiraria uma parcela de liberdade dos indivíduos para garantir seu restante. Isto porque a liberdade para Bakunin é radical e integral ou não é nada. O máximo que o contrato pode fazer é produzir segurança em detrimento da liberdade. Pois este “pouco” de liberdade que ele retira é essencial. Seria um contrassenso tentar proteger a liberdade restringindo-a. Atualmente temos assistido a prisão de ativistas aparecendo lado a lado com discursos de defesa dos “interesses coletivos da maioria” (pois os manifestantes não representariam o povo), de que “não há motivos para se protestar num Estado democrático de direito” e de que “protesto se faz nas urnas”. Para os emissores destes discursos, Bakunin escreve com uma atualidade implacável: “Mas o Estado, dir-se-á, o Estado democrático, baseado no sufrágio livre de todos os cidadãos, não poderia ser a negação da liberdade destes. E porque não? Isso dependerá absolutamente da missão e do poder que os cidadãos delegarem ao Estado. Um Estado republicano, baseado no sufrágio universal, poderá ser muito despótico, mesmo mais despótico do que o Estado monárquico, logo que sob o pretexto de representar a vontade de toda a gente, ele esmague a vontade e o movimento livre de cada um dos seus membros, com todo o peso do seu poder coletivo. É em nome desta ficção a que se chama, tantas vezes, interesse coletivo, direito colectivo ou vontade e liberdade colectivas, que os absolutistas jacobinos, os revolucionários da escola de J.-J. Rousseau e de Robespierre, proclamam a terrível e desumana teoria do direito absoluto do Estado” (1975, p. 27).

Para finalizar, gostaria de voltar à contemporaneidade do anarquismo. O esgotamento do marxismo, acompanhado pela derrocada do socialismo estatista, as seguidas depressões e crises sofridas pelo capitalismo pós-industrial e o descontentamento da população mundial com as atuais formas de governo e de representação política não são senão as previsões de futuro que os anarquistas desde o século 19 alardeavam. No plano teórico o anarquismo é hoje um importante referencial para se compreender a sociedade, os poderes, os indivíduos e as instituições. É verdade que os autores ainda pareçam por demais otimistas e ingênuos a nossos olhos (contaminados de realismo pessimista) quando apresentam suas propostas de um mundo diferente. Mas como ferramenta de crítica, eles são quase impecáveis. No plano prático, depois de a crise mundial de 2008, pipocam no mundo todo inúmeros grupos que se distanciam cada vez mais do formato do partido e de militância hierarquizada antes tão comum. E com esta nova realidade aparece a dificuldade da repressão atuar. Isso ficou nítido no processo contra os ativistas que participaram das manifestações desde junho do ano passado no Brasil. Não há um centro ou uma liderança. Algumas pessoas, que a justiça brasileira insiste em aglutinar em uma organização, nem ao menos se conhecem. E ainda sobre esse inquérito, se engana quem pensa que o nome do anarquista aparece como inspiração política ou instrução tática às manifestações, ele é um dos suspeitos mesmo. E, convenhamos, Bakunin é culpado. É ele (e tantos outros) que alimenta os sonhos de gerações que acreditam que uma sociedade mais livre e igual é questão de vontade. Com efeito, o maior crime do russo Mikhail Bakunin foi esse, o de ter nutrido em nós a esperança de um mundo melhor.

Lembram do que eu disse sobre um certo significado de “História” no início do post? Lembram do objeto que utilizei na metáfora? Pois é. “A Lanterna” era o nome também de um jornal anarquista que circulou na primeira metade do século 20, aqui no Brasil. Quem sabe o anarquismo seja uma lanterna que acabamos de desenterrar e que nos ajudará a enxergar de maneira nova o presente, iluminando o caminho para novos horizontes. A força desta luz é a possibilidade da história ser feita. Talvez assim Bakunin possa finalmente descansar em paz ao, assim que realizado aquele objetivo com sua ajuda, darmos então o sentido mais comum ao vocábulo “História”, aquele de honrar os mortos escrevendo uma narrativa redentora. Enfim o russo poderá ser livre. E nós também. Já que a sua liberdade estende a nossa até o infinito.

Referências:
BAKUNINE. Conceito de liberdade. Tradução Jorge Dessa. Porto, Portugal: Edições RES limitada, 1975.
BAKUNIN, Mikhail. Textos anarquistas. Notas e seleção de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, 2006.
RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da história: um ensaio de poética do saber. São Paulo: EDUC/Pontes, 1994.
WOODCOCK, George. História das ideias e dos movimentos anarquistas, vol. I: a ideia. Porto Alegre: L&PM, 2007.  
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