Em
1844, Max Stirner publica seu primeiro e, verdadeiramente, único livro: intitulado O
único e a sua propriedade (em alemão: Der
Einzige und sein Eigentun). É graças a ele que o nome de
Stirner aparece na história da filosofia mais do que um mero integrante dos
“jovens hegelianos” ou um amigo de Bruno Bauer. A importância de seu livro se deu muito em função das críticas
feitas por Marx e Engels n’A ideologia alemã.
Porém não se pode dizer que esta seja a principal causa responsável por sua
lembrança ainda nos dias de hoje. E o exemplo é Bruno Bauer – como tantos
outros que ficaram no rodapé da filosofia marxiana sem de lá não saírem mais.
Creio, aí sim, que a apropriação tardia de seu livro, feita por escritores e
ativistas anarquistas tenha a maior contribuição para que Stirner não caísse
numa espécie de buraco negro do esquecimento.
O principal responsável pela
popularização póstuma da obra de Stirner foi o escocês, radicado na Alemanha,
John Henry Mackay. Escritor e poeta anarquista-individualista, Mackay publicou
uma biografia de Max Stirner em 1897, ainda sem tradução para o português. Tive
acesso a uma versão em inglês da mesma, de 2005, e por de não haver tradução
para nosso idioma, publico este post
que faz um resumo e alguns comentários sobre a obra, divulgando a biografia
para o público lusófono.
Em 1887, numa visita ao Museu
Britânico, Mackay ficou sabendo da existência da obra de Stirner ao ler uma
passagem do livro História do
materialismo, de Friedrich Lange. Identificado com a filosofia stirneriana,
o poeta anarquista procurou mais informações a respeito do autor e ficou
frustrado ao perceber que ele havia sido esquecido. Daí lhe surgiu um desafio:
reconstruir a memória de Stirner, escrevendo uma biografia. Mackay sabia que
não ia ser fácil encontrar informações a respeito de seu biografado, mas parece
que não pensou que seria tão difícil. Ele enviou cartas a inúmeros jornais
alemães requisitando notícias, fotos, correspondências, qualquer coisa que
pudesse enfim servir de fonte para seu trabalho. Mas ficou decepcionado com as
respostas (isto é, com as que vieram). Diante disso, seu livro demorou muito
tempo para ficar pronto e foi publicado com várias lacunas. Mackay diz que
inicialmente não conseguia compreender por que os alemães haviam “abandonado”
Max Stirner. Porém, ao cabo, começou a construir algumas hipóteses.
A primeira destas parece mais algo
em que um biógrafo apaixonado por seu objeto de pesquisa quer acreditar.
Stirner seria exatamente a expressão de sua filosofia, um egoísta, independente
do resto do mundo. As outras três são menos poéticas mas não deixam de ter a
ver com a primeira pressuposição: o isolamento em que viveu Stirner durante
muitos anos de sua vida, sobretudo em seu período final; as mudanças na vida pública da Alemanha após
as revoluções de 1848 e a forte reação que houve contra intelectuais
radicalistas; e o caráter tipicamente fechado do biografado, que não possuía
amigos íntimos ou herdeiros que pudessem dar qualquer tipo de informação sobre
sua vida (MACKAY, 2005, p. 05-07).
A biografia de Mackay repete um
lugar-comum e divide a vida de Stirner em três fases: nascimento, ascensão e
queda. A primeira vai de sua infância e juventude até o fim de seu período como
estudante (1806-1844). A segunda se refere à publicação de O único e sua recepção (1844-1846). E a terceira descreve o período
de esquecimento e solidão, até sua morte (1846-1856).
Johann
Kaspar Schmidt (nome original de Stirner) nasceu em 25 de outubro de 1806, na
cidade de Bayreuth, situada no Reino da Baviera, sudeste da atual Alemanha. Era
filho único do casal Albert Schmidt e Sophia Eleonora, e continuou sendo, já
que seu pai, um fabricante de flautas, morreu quando Johann ainda era muito
pequeno. Sua mãe casara-se novamente com o gerente de uma farmácia. Há poucas
informações desta época, contudo, Mackay registra que a família se mudou para
Kulm logo após o casamento, em 1809. A causa desta mudança é imprecisa. Mas
sabe-se que no ano em que nasceu Johann, Bayreuth, que estava sob o domínio da
Prússia, havia sido devastada pelas guerras napoleônicas. E que, depois disso,
ela passara para as mãos dos franceses, período em que a fome e a inflação se
acentuaram na região. Pouco tempo depois Johann regressa a cidade natal e faz
estadia na casa de um padrinho, de onde só sai de novo para ir à faculdade.
Após passar oito anos frequentando
o liceu clássico de Bayreuth, Johann Schmidt
ingressou, em 1826, na Universidade de Berlim. Segundo a descrição de Ludwig Feuerbach,
esta instituição parecia um reformatório se comparada às “cervejarias reais”
(outras universidades) do resto da Alemanha. Schmidt se matriculou no curso de
Filosofia e teve aulas com Karl Ritter, Schleiermacher e Hegel. Neste período
estudou teologia; simbolismo da Igreja, história da Igreja e do cristianismo
primitivo; história e filosofia da Grécia Antiga; geografia da Grécia e de
Roma. Depois, em 1828, foi para a Universidade de Erlangen (cidade natal de sua
mãe). Lá assistiu apenas a alguns seminários e palestras e interrompeu seu
trimestre de estudos para fazer uma viagem percorrendo boa parte da Alemanha.
No outono de 1829 se inscreveu na Universidade de Konigsberg, mas logo voltou
para Enlanger a fim de resolver assuntos familiares (o biógrafo não sabe
quais). Só voltaria a Universidade de Berlim em 1833, somando cinco anos
afastados. Logo mais, em março do ano seguinte, Schmidt retirou seu nome dos registros da mesma universidade. Daí
solicitou a realização de exames para habilitá-lo no ensino de línguas antigas,
alemão, história, filosofia, religião e outras matérias, sendo estas em séries
escolares inferiores. Tratava-se de um pedido incomum, anota Mackay, porque era
bastante extenso. Mas a razão possa ter a ver com as dificuldades financeiras
de Schmidt.
Para a avaliação foi exigido
tradução de um texto de Tucídides, aulas e apresentações orais e a produção de
um artigo sobre as leis da escola. Schmidt
teve muitas dificuldades em cumprir os prazos devido a problemas de saúde e
também o início da doença mental de sua mãe, diagnosticada com uma patologia
chamada “ideia-fixa”. Isso interferiu em sua avaliação. O resultado não foi
excelente e ele não conseguiu habilitação em todas as áreas que pretendia. O
que significava que ele não teria facilidade na procura de um emprego como
professor. As coisas se complicaram quando em 1837 seu padrasto morreu. Louca e
sem parentes, Sophia Eleonora, mãe de Schmidt,
só tinha o filho para cuidar dela. Sua herança era pequena e ficara ao controle
do tesoureiro da cidade. Neste mesmo ano Schmidt
se casou com uma jovem parteira de 22 anos. Mas o revés volta a bater em sua
porta. Sua esposa morre, ironicamente, durante o parto daquele que seria
primeiro filho do casal, em 1838. No ano seguinte, 1839, Schmidt começa a trabalhar numa escola
particular para moças da “boa sociedade”, instituição que é dirigida também por
mulheres. Bem quisto por todos do lugar, ele leciona história e alemão durante
cinco anos. Só sai, por conta própria, após a exposição de sua figura depois da
publicação de O único.
Em
1841 a vida intelectual de Schmidt dá uma guinada. É neste ano que ele se
aproxima do círculo de pensadores da esquerda hegeliana, “Os Livres” (Die Frein). O grupo que se encontrava
numa cervejaria de Berlim, de Jacob Hippel, era frequentado por diversos homens
insatisfeitos com as condições políticas e sociais da época, contra as quais
lutavam relativamente em público. Havia diversidade e flutuação de assuntos no
grupo, que estava longe de ser uma organização e recebia visitas sazonais de
muitos intelectuais. Eles se reuniam em torno de Bruno Bauer, que era conhecido
com um polêmico crítico da Bíblia. Muitos dos “membros” se envolviam em rixas
internas no círculo intelectual da Alemanha. Bauer, por exemplo, foi demitido
da Universidade de Bonn após publicar o artigo “A trombeta do Juízo Final
contra Hegel, o ateu”.[1]
Foi durante o contato com “Os Livres” que Schmidt foi apelidado de Max Stirner,
que significa “Max, o testudo”. Depois disso ele passou a adotar como
pseudônimo para seus escritos e também, com ele, assinou seu livro.
Mackay
faz uma descrição física e da personalidade de Stirner. Era discreto, magro, se
vestia simples, porém elegante como um professor. Era educado, atencioso e
prestativo. Não tinha inimigos pessoais, mas também, por outro lado, não tinha
nenhum amigo íntimo. Para o biógrafo ele foi o mais progressista de seu tempo,
pois estava ao lado dos homens mais progressistas e, ainda assim, os criticava.
“Um ser humano como poucos, feito para ser um homem livre entre os livres, e
amaldiçoado por ser um elo na cadeia de senhores e escravos”, escreve John
Henry Mackay (p. 89).
Ao
contrário do biógrafo, Jean Barrué escreve que Stirner vivia uma vida dupla. E
esta foi mesmo uma instituição discursiva através da qual a historiografia,
sobretudo com Max Nettlau, construíra sua classificação com anarquista. Deste
modo, cotidianamente, era Johann Schmidt, um professor exemplar e querido, um
cidadão calmo, sereno, introvertido, sem muitos gostos especiais e que possuía
um tom de voz baixo que pouco era usado. Nos escritos, parecia outro, não à toa
usando o codinome Stirner, transformava-se num autor terrivelmente ácido e
crítico, combativo e erudito (BARRUÉ, 2001, p. 33-34). Mas por mais que
possamos achar muito diferente a descrição da vida e da personalidade de
Stirner e seu personagem o “único” ou o “egoísta”, Mackay tenta coincidir os
dois. Ele diz que Stirner dá vida ao seu próprio personagem. Não há nele
contradições, é simples, puro e grande. Possui o conhecimento da
autopreservação. Não tem desprezo nem ódio pelos outros, porém, tampouco amor
ou piedade. Ele não pede amor ou admiração barulhenta de ninguém, mas é
impossível não amá-lo, por vê-lo seguir suas leis e afirmar a si mesmo. É um
ser simpático entre os diferentes (MACKAY, 2005, p. 90).
Depois
de participar d’Os Livres Stirner passou a escrever para jornais da Alemanha.
Mackay conta um total de 27 artigos que versavam sobre questões do cotidiano da
época. Foi numa das reuniões d’Os Livres que Stirner conheceu aquela que viria
a ser sua segunda esposa e para quem ele dedica O único: Marie Dänhardt. Companheiros de cervejas e discussões
políticas, os dois se casaram em 1843 numa cerimônia bastante simples e
peculiar. Contam que um amigo do casal foi quem “celebrou” o evento e nem
alianças os dois tinham comprado. Improvisaram de última hora anéis de latão.
Depois do casamento, Dänhardt herdou uma significativa quantia de dinheiro
deixada pelo seu falecido pai há anos (p. 120-121).
Os
anos que se seguiram foram bastante atribulados na vida de Stirner. A
publicação de seu livro entre 1844 e 1845 gerou muitas consequências, positivas
e negativas. Inicialmente houve um confisco da obra na Saxônia, região sede da
editora. Contudo, o confisco foi suspenso dias depois pelo Ministério do
Interior que ao julgar o caso expusera que o conteúdo do livro era muito
absurdo para ser considerado perigoso. Mackay diz que isto foi intencionalmente
planejado pelo autor, que usara esta estratégia para que a obra fosse circulada
livremente. Entretanto, na Prússia, onde a censura era mais rígida, a obra foi
banida, assim como ocorreu em outros Estados germânicos. O que não significava
que ela não seria lida, porque, na época, as obras proibidas eram as mais
procuradas.
O
biógrafo aponta que a recepção inicial da obra foi sensacional. Era muito lida
entre os jovens. Mas se sucedia a uma série de reações. Alguns o chamavam de
gênio, outros simplesmente jogavam o livro no lixo após a leitura. Liberais,
políticos, socialistas e humanistas ficaram fulos com a obra. A despeito da boa
recepção e das várias críticas que apareceram, bem como as réplicas do autor, O único foi esquecido pouco tempo
depois. Os ventos da revolução sopravam lá fora. E de alguma maneira dissiparam
o período de sucesso de Stirner.
Desde
1846 seu casamento, frágil interiormente, começara a se deteriorar. O
relacionamento com aquela que era considerada uma emancipada para época, uma
possível companheira de jornada filosófica, teria como desfecho o abandono,
depois de seguidas brigas e dívidas. Isto porque apesar de Dänhardt gozar de
uma situação financeira estável, os dois, ao abrirem uma empresa de
armazenamento e distribuição de leite, foram à falência devido à inexperiência
e má-sorte na administração. Com a derrocada econômica, se separaram em 1846 e
Marie foi embora para Londres. Já “Os Livres” cessaram os encontros em 1848.
Universidade de Berlim no século 19 |
Referências:
BARRUÉ, Jean.
Da educação. In: STIRNER, Max. O falso
princípio da nossa educação. Tradução: Plínio Augusto Coelho. São Paulo:
Editora Imaginário, 2001.
MACKAY, John Henry. Max
Stirner: his life and his work. Translated from
the third german edition by Hubert Kennedy. Concord-CA/USA: Peremptory
Publications, 2005.
[1] Além de
Bruno Bauer, os que mais frequentavam Os Livres eram: Edgar Bauer, irmão de
Bruno; Ludwig Buhl (filósofo); Carl Friedrich (professor de ginástica); Koppen
(professor ginasial); Eduard Mayern (filósofo, filólogo e professor de
literatura); Friedrich Sass (jornalista); Herman Maren (jornalista); Adolf
Rutemberg (cunhado de Bruno Bauer e colunista de jornais); Arthur Miller
(editor de jornal); tenente Saint-Paul (censor enviado para observar a Gazeta Renana que virou amigo dos Frein); Ludwig Eichler (tradutor);
Gustav Lipke (advogado e futuro membro do Reichtag). Este é o círculo mais
assíduo. Já o círculo mais amplo, em que aparece inclusive Marx e Engels, é
gigantesco, diz Mackay (p. 66).