Em O medo à liberdade, de 1941, o psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980)
discute uma questão que continua extremamente atual. “Não haverá, igualmente,
além de um desejo inato de liberdade, uma aspiração instintiva à submissão?”. A
indagação de Fromm naquele período histórico, no meio da Segunda Guerra
Mundial, estava intimamente relacionada à escalada do nazi-fascismo em Alemanha
e Itália. Pensava-se que depois do fim da primeira grande guerra o mundo havia
conquistado a vitória definitiva da liberdade, haja vista que as democracias
existentes pareciam fortalecidas e outras novas estavam substituindo antigas
monarquias. No entanto, o que se viu logo mais foi o surgimento de novos
sistemas cuja essência negava o que os homens haviam criado em relação à
liberdade; sobretudo porque as nascentes formas de governo do período histórico
assumiram o controle de toda a vida social da população, submetendo todos a uma
autoridade irresistível.
Por mais que alguns cogitassem, na
época e até hoje, que todo este esquema do poder totalitário era produto de
alguns sujeitos com mentes doentias, os quais seriam rapidamente retirados pela
população de seus cargos; ou que tudo não passava de um truque de ilusão de
indivíduos, como Hitler, que usavam sua astúcia para manipular as massas a fim
de que estas assegurassem involuntariamente suas lideranças, pouco tempo depois
se percebeu que a coisa era mais grave. Segundo Froom:
“Fomos compelidos a reconhecer que milhões de alemães estavam ansiosos por abrir mão de sua liberdade do mesmo modo que seus pais o haviam estado por lutar por ela; que, em vez de desejarem a liberdade, eles buscavam meios de fugir dela; que outros milhões eram indiferentes e não julgavam valer a pena lutar e morrer em defesa da liberdade. Reconhecemos, outrossim, que a crise da democracia não é um problema peculiar à Itália ou à Alemanha, mas algo com que defronta todo Estado moderno. Tampouco importa quais são os símbolos escolhidos pelos inimigos da liberdade humana: a liberdade não se vê menos ameaçada quando é atacada em nome do antifascismo do que no do fascismo indisfarçado. Esta verdade foi tão convincentemente formulada por John Dewey que recorro a suas palavras: ‘A ameaça mais grave à nossa democracia não é a existência de Estados totalitários estrangeiros: é a existência, em nossas atitudes pessoais e em nossas instituições, das condições em que países estrangeiros asseguraram a vitória da autoridade externa, disciplina, uniformidade e dependência do chefe. O campo de batalha, por isso, também se acha aqui – dentro de nós mesmos e de nossas instituições’” (FROMM, 1977, p. 15).
Erich Fromm temia que a
insignificância e a impotência dos indivíduos em sua época propiciassem novos
fascismos e nazismos. Pautando sua análise através da psicologia, Fromm aponta
que quando se encontra num estado de insegurança e solidão o indivíduo utiliza
pelo menos dois mecanismos principais de fuga a fim de restabelecer os
“vínculos primários”: a submissão e o automatismo (conformismo). Os vínculos
primários são aqueles que dão conforto e segurança à criança antes de ela
separar-se simbolicamente dos pais e da natureza, ou seja, antes de reconhecer-se
como indivíduo apartado e existir como ser humano.
Fromm vincula, portanto, a
existência humana à liberdade. Não há uma sem a outra. A existência humana se
dá quando as ações descolam sob um certo limite dos instintos e a natureza vai
perdendo a coerção que exercia sobre o sujeito. Esta significa “liberdade de”,
a saber, uma liberdade negativa, no sentido de independência das coisas e dos
seres (p. 35-36). É claro que a tentativa de voltar a esta condição é
impossível, uma vez completo o processo de individuação. Contudo, em ação
impulsiva, o indivíduo inconscientemente prefere acreditar nesta autoilusão – o
que não resolve seus problemas, porém, pelo menos mitiga uma angústia
insuportável.
O automatismo ou “conformismo de
autômatos” é o mecanismo de fuga em que o indivíduo deixa de ser ele mesmo. É a
saída mais recorrida pelos sujeitos modernos para se protegerem da solidão e
impotência, aponta Fromm. O indivíduo adota inteiramente “o tipo de
personalidade que lhe é oferecido pelos padrões culturais e, por conseguinte,
torna-se exatamente como todos os demais são e como estes esperam que ele
seja”. Desta forma, assim como um animal que imita o ambiente para se proteger
do perigo externo, o indivíduo faz com que o contraste entre ele e o mundo seja
suprimido. O “autômato” perde sua individualidade, bem como sua liberdade, em
prol de uma suposta segurança (p. 150).
De modo semelhante ao automatismo,
o mecanismo de fuga da liberdade designado como “submissão” possui a tendência
de renunciar à independência do eu individual para fundi-lo com algo ou alguém
de acordo com o objetivo que visa garantir a força que aquele não possui. Este
processo identificado como um tipo de masoquismo tem causa em sentimentos de
inferioridade, impotência e insignificância individual. As análises
psicológicas advertem que apesar destas pessoas se queixarem, dizendo querer a
independência, inconscientemente existe uma força interior muito maior
alimentando o seu sentimento de insignificância e fraqueza. Sentem-se fracas e
incapazes e recusam o comando de suas próprias vidas, delegando esta função a
outros, pois se vêem sobremaneira dependentes de pessoas alheias, de
instituições ou da natureza (p. 119).
Em diálogo com Fromm, podemos ver
a recusa da liberdade e da autonomia pelos indivíduos contemporâneos em várias
situações. Diria que, aliás, hoje há um sincretismo destes dois mecanismos, um
acompanhando circularmente o outro. Existe uma necessidade de não assumir
responsabilidades, se apoiando em alguma autoridade, fazendo exatamente o que
esta ordena. E quando não há uma “voz imperativa”, a segurança do automatismo
dá lugar a um micro desespero indisfarçado. Meses atrás um ex-professor meu, em
forma de desabafo, resumiu bem tal aspecto no Facebook. Ele escreveu o seguinte:
“Chegando ao fim de mais um semestre [...], renovo, infelizmente, a minha decepção com o que a Universidade tem se tornado cada vez mais: um colégio para adultos infantilizados. Eu também era um “adulto infantil” na Universidade, na qual entrei com 17 anos, mas eu sentia que a Universidade me “forçava” a amadurecer, a tomar uma atitude mais responsável e intelectualmente mais autônoma. Hoje, os alunos parecem imunes aos incentivos à autonomia, resistem em assumirem responsabilidades (sobre si mesmos e a sua formação...) e tudo o que eles esperam do professor é a exposição de um conhecimento confortável, acessível ao seu entendimento imediato, ainda que seja simplório, enganoso e vulgar. Talvez sempre tenha sido assim e eu é que esteja nostálgico ou cansado. Mas é ruim. Não vejo a hora de acabar o semestre. Já gostei de dar aulas. Hoje, é mais um dos muitos ossos do ofício”.
Seguiu-se ao post uma série de comentários de “amigos virtuais” do professor.
Ousaram questionar (e alguns afirmaram) que isto se dava por conta da condição
social e escolar dos alunos do curso de História (sendo a maioria identificada
pelos interlocutores como pertencente a famílias de baixa-renda e egressa de
escolas públicas). Porém, o professor ressaltou que em seu entender não adviria
daí o problema, em razão de ele lecionar para turmas de outras graduações e
lidar com situação semelhante ou até mais grave.
Erich Fromm nos apresenta uma
avaliação do caráter ambíguo e contraditório da liberdade que pode ser
interessante para pensarmos uma possível “saída” deste estado de coisas. Uso
aqui o termo “saída” para remeter o termo (Ausgang)
que Kant procurara encontrar (segundo a leitura de Foucault) ao se propor
reflexionar sobre o “esclarecimento”.
Enfim, Fromm aponta que, a
despeito da comemoração referente à superação de “velhos inimigos da
liberdade”, os sujeitos modernos têm se preocupado pouco com o surgimento de
outros inimigos. Estes não seriam essencialmente compostos por restrições
externas, todavia, estariam ligados a fatores internos que “tolhem a realização
total da liberdade de personalidade”. Pode-se citar vários exemplos. Por um
lado a liberdade de culto como vitória sobre o Estado e Igreja; por outro, com
ela, surge a incapacidade de acreditar e ter fé em qualquer coisa que não seja
demonstrável pela ciência (quando muito!). Por um lado, a conquista da
liberdade de expressão, mote do liberalismo político; por outro, qual é a
importância de querer que ninguém intervenha naquilo que expresso, se o que
expresso não é diferente daquilo que os outros pensam e dizem? Ou seja, o
indivíduo moderno (ou pós-moderno, como queiram) não adquiriu “a capacidade de
pensar originalmente”. Se, por um lado, nos orgulhamos da libertação de
autoridades externas como reis e papas; por outro, menosprezamos o papel das
autoridades anônimas, como a da opinião pública e do “senso comum”, às quais
nos adequamos, por exemplo, quando adquirimos produtos da moda, a fim de
satisfazer as expectativas das pessoas sobre nós. Assim completa Fromm:
“[...] estamos fascinados pelo aumento da liberdade de poderes fora de nós e cegos para as nossas restrições, compulsões e medos interiores, que tendem a solapar o significado das vitórias alcançadas pela liberdade contra seus inimigos tradicionais. [...] Esquecemos que, apesar de cada uma das liberdades já conquistadas ter de ser defendida com o máximo vigor, o problema da liberdade não é só quantitativo, mas qualitativo; que só temos de conservar e aumentar a liberdade tradicional, porém que temos que obter um novo tipo de liberdade, aquela que nos habilita a realizar nosso próprio eu individual, a ter fé neste eu e na vida” (FROMM, 1977, p. 92).
Referências:
FROMM, Erich. O medo à liberdade. Tradução de Octavio Alves Velho. 10ª ed. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1977.
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