"A conquista do México", por Diego Rivera |
Com o acirramento da crise
política no Brasil começou a circular uma série de memes na internet cujos
conteúdos relacionam-se à história e a memória coletiva. Por mais que possa
parecer banal, é interessante refletir sobre alguns destes pois nos permitem
acessar e compreender determinadas “imagens da história” que habitam o
imaginário social (portanto o consciente e o inconsciente) não somente de
pessoas comuns, mas também e até mesmo de estudantes e pesquisadores de
história.
São inúmeras estas imagens da (ou
sobre a) história. Algumas, embora suficientemente problematizadas e inclusive
combatidas pelas teorias e técnicas de um profissional da área, pelo menos num
ambiente formal como a universidade, afloram em momentos de debate político
quando o objetivo de (con)vencer o outro substitui os argumentos racionais e
complexos pela eficácia, às vezes obtida pelas vias emocional ou moral. É o
caso da “história-essência”, evocada, por exemplo, no debate sobre a raiz
etimológica de uma palavra, que no presente possui um outro significado, para
desqualificar a fala do interlocutor. Temos assim a interdição da palavra
“mulato” para designar um indivíduo mestiço, já que sua raiz vem de “mula” e em
seu emprego original pretendia conotar pejorativamente alguém como “não puro”,
“híbrido”. Estranhamente as ressignificações não contam neste caso, mesmo que
tenha ocorrido isso com termos como “vadia” e “anarquista” (todos originalmente
pejorativos).
Outras duas destas “imagens da
história” recorrentes são a “história-cíclica” e a
“história-memória/história-exemplar”. A “história-cíclica” baseava-se numa das
concepções de tempo dos gregos antigos, assim, os homens mudavam, mas os
“eventos estruturais” se repetiam. Também por conta deste pensamento, a
história poderia servir como “mestre da vida”, uma espécie de manual para se
orientar e agir no presente/futuro. Lembrar torna-se um imperativo! Daí um dos
significantes possíveis para “verdade”, na Antiguidade Clássica, ser a palavra aletheia,
isto é, o não-esquecimento. O último dos historiadores reconhecidos a defender
a concepção de história cíclica foi o britânico Arnold J. Toynbee [1889-1975], diga-se,
em sua narrativa fundamentalmente apocalíptica de suicídio ou fim das
civilizações. Já a “história-exemplar” gozou de boa reputação durante séculos
até ser contestada a partir do século 18 principalmente por meio de métodos de
pesquisa advindos da filologia, como informa Koselleck (2006). Hoje vemos estas
“imagens” em voga quando as pessoas se preocupam com (ou usam como artifício
retórico) a repetição do Golpe de 1964, que precedeu a ditadura militar no
Brasil – inclusive lançando mão de comparações forçosas entre elementos do
contexto socioeconômico e de lideranças políticas de hoje e de outrora. “A
história é o poço inesgotável do qual a água do exemplo jorra, a fim de lavar
suas mazelas”, é a máxima que melhor caracteriza este exercício.
Seria ingênuo dizer que os
acontecimentos são únicos, não se repetem e que a futurologia é uma ciência
destinada ao fracasso? Estaria sendo óbvio demais se afirmasse aqui que a
história é um estudo sobre o passado e que sua narrativa somente pode ser
construída após os fatos? Fatos que, parafraseando Edward H. Carr (1996), não
estão como peixes em cima do balcão da peixaria. Por conseguinte só podem ser (re)constituídos
pelos pesquisadores quando acesso tiverem às fontes, qualificadas conforme sua
quantidade e diversidade, bem como de acordo com as questões e críticas que
podemos a elas fazer. Dito o básico, importa perceber que teoricamente a noção
que abrange as três “imagens da história” citadas no post está diametralmente
oposta à concepção que melhor caracteriza a história moderna, aquela de
movimento, de transformação e mudança. No caso da “história-essência” parece
mesmo que nada muda, vivemos como escravos de um eterno passado, atados ao mito
da origem. No caso da “história-cíclica”, embora os eventos se desenrolem, não
há nada de novo. Também estamos presos. E, por fim, na imagem da
“história-memória” como mestra da vida, o passado está mais presente do que o
próprio presente, é um trauma que nos impede de seguir adiante devido ao medo
da repetição da dor e do dano.
Dois dos memes que viralizaram
nestes últimos dias também nos remetem a imagens de imobilidade da história.
Ambos se referem ao processo da colonização portuguesa sobre o Brasil e sua
associação aos problemas do país. Um deles (extraído de um twitter) indica o caráter
de amaldiçoamento devido ao genocídio dos povos indígenas e, o outro (uma
legenda sobre o quadro “Desembarque de Cabral em Porto Seguro em 1500”), está
no âmbito do mito da origem, do passado que não passa, da inevitabilidade
histórica como bloqueadora de futuros. Apresento-os abaixo:
Cada um a seu modo me fez lembrar
de um texto que me marcou durante a graduação. Chama-se Os fantasmas da América Latina e foi escrito pelo sociólogo peruano
Aníbal Quijano [1928-]. Passo a escrever sobre este agora.
A colonialidade do poder
A partir do conceito de
“colonialidade do poder” já utilizado em trabalhos anteriores, Quijano defende
a tese segundo a qual a relação de des/encontro entre Europa e América Latina
permitiu constituir um novo tipo de poder cujo efeito até hoje é exercido sobre
o mundo inteiro. Em outras palavras, “a conquista” ou “o descobrimento” da
América pelos europeus alterou profundamente a dinâmica e o diagrama de poder
das civilizações que viviam cá nestas terras, na medida em que interrompeu suas
experiências históricas plurais. Bem óbvio. Mas além disso a configuração do
poder também foi alterada na Europa (a ponto da própria ideia de Europa
Ocidental fundar-se a partir daí!) e estendendo-se para o resto do globo. Todos
estão cientes de que, com o des/encontro, a América passou a ser dependente e a
Europa a possuir o controle. Porém a história baseada num ponto de vista
eurocêntrico distorce a função da América Latina neste processo em que realidades
históricas como “modernidade”, “globalidade” e “capitalismo mundial” foram
produzidas – obviamente a contragosto ou em detrimento dos chamados latino-americanos
mas sem os quais estas não teriam existido, segundo o sociólogo.
Desde então a América Latina é
vista como “atrasada” por não ter desenvolvido as potencialidades atribuídas a
algo essencialmente moderno. Tendo como pressuposto teórico a concepção de que
as civilizações possuem sentidos históricos distintos, a análise de Quijano
adverte que nosso “fracasso” se dá por duas razões: (1ª) nos foi imposta, eu
diria “vendida”, a ideia de que somos iguais aos europeus ou que deveríamos
seguir a trilha da evolução unilinear e homogênea por eles traçada, isto é,
seguir seu modelo de sociedade para finalmente obtermos o sucesso; (2ª) o modo
como foi produzida a versão da história hegemônica distorce a experiência histórica-social
dos latino-americanos, impossibilitando-os de enxergar os fantasmas de seu
passado e, mais do que isso, fazendo com que se vejam como inferiores em sua
natureza material e cultural e não como vítimas de um conflito de poder. Seria
necessário então convocar e lidar com nossos fantasmas para resolver os
problemas que nos assolam.
Feito o resumo do texto nos dois
parágrafos anteriores, passo a esmiuçar passagens que considero importantes.
Quijano aborda a pedra fundacional do nosso continente desvelando como outros o
seguinte: a produção histórica da América Latina foi a destruição de um mundo
histórico e isso precisa ser levado em conta quando pretendemos produzir o
sentido de nossa história. Para que o atual espaço social que vivemos pudesse
ser o que é hoje, a América Latina, uma trituradora de culturas desintegrou
padrões de poder e de civilização, exterminou em curto prazo mais da metade da
população vivente (em torno de 50 milhões), eliminou não apenas portadores mas
produtores de experiências daqueles povos: dirigentes, intelectuais,
engenheiros, cientistas, artistas foram literalmente soterrados. A repressão
material e subjetiva aos sobreviventes ao longo de séculos foi tamanha que os
transformaram em camponeses iletrados, então explorados pelo processo europeu.
Ao novo padrão de poder
produzido, a ideia de “raça” serviu como um elemento fundamental para seu
funcionamento. Esta é a parte sofisticada da colonização, aquela em que a
dominação necessita de sutilezas. A “raça” neste sentido tornou-se um modo de
naturalização das novas relações de poder impostas aos sobreviventes daquele
mundo em destruição. Como uma máquina de destruição de subjetividades, a toda a
população sobrevivente foi imposta a identidade “índios” – a despeito da
pluralidade existente. Ao contrário do que se pensa, não foram os “negros” as
primeiras vítimas da racialização, mas os “índios”; para separá-los do
“ibéricos” e ao mesmo tempo construir uma matriz homogênea de classificação em
escala global [clique para ler a citação]. Isto mesmo. Pois em torno da ideia de raça foram se redefinindo
e configurando outras instâncias de dominação já anteriores, como a de gênero.
Desta maneira o primeiro sistema de classificação social global da história
(“branco”, “índio”, “negro”, “mestiço”, etc.) foi produzido na América e imposto
ao restante do planeta, assim como a nova nomenclatura geográfica do poder. Ademais,
produziu-se também através da América Latina um novo sistema de exploração
social: o controle do trabalho, de seus recursos e produtos direcionados a um
mercado global, fazendo emergir o capitalismo mundial. Neste ponto há uma
íntima relação entre colonialidade e globalidade. Ninguém em nenhum lugar do
mundo poderia estar fora. Talvez mudar sua posição dentro do sistema, mas não
ficar exterior.
A posição de superioridade da
Europa é conquistada, de acordo com o sociólogo, devido à exploração desta
sobre a América Latina, integrando, por seu turno, capital e modernidade. “O
domínio colonial da América, exercido pela violência física e simbólica,
permitiu que os conquistadores/colonizadores controlassem a produção dos
minerais preciosos (ouro e sobretudo prata) e dos vegetais preciosos (no início
principalmente tabaco, cacau e batata), por meio do trabalho não-remunerado de
escravos ‘negros’ e de criados ou peões ‘índios’ e de seus respectivos
‘mestiços’”, escreve Quijano (2006, p. 70). Até a Revolução Industrial não se
produzia na Europa ocidental nada com significativa importância para o mercado
mundial, foi graças portanto ao processo de controle sobre a colônia e de
exploração sobre o trabalho de “índios” e “negros” que esta conquistou uma
posição destacada, como também concentrou benefícios comerciais e juntamente com
eles manteve em seus países a mercantilização da força de trabalho local.
Conforme a narrativa de Quijano, por
conta do aumento de poder da Europa ocidental e do processo de aburguesamento
da sociedade, como viu-se em Espanha pelo menos a partir da expulsão de judeus
e muçulmanos (para o autor a primeira “limpeza étnica” moderna), houve uma
intensa disputa de poder entre os conquistadores (por espaço, corações e
mentes) até mesmo contra a Igreja, mas também contra culturas locais-nacionais.
Daí resultou, como estratégia de luta, a auto-identificação da Europa
Norte-Central como “moderna”, representando aquilo que seria de mais avançado e
novo na civilização humana. Este fato implicou que a Europa seria para a
América o centro de desenvolvimento de capital e de modernidade/racionalidade, o
verdadeiro modelo histórico a ser seguido. Isto é, além de poder, uma
colonialidade do saber, de onde advém a principal perspectiva de produção do
conhecimento. Esta está, por sua vez, em desencontro com nossa experiência
histórica. Por quê? Ora, porque enquanto aqui até mil e quinhentos tínhamos uma
co-presença de tempos históricos e formas heterogêneas de existência social de
procedência histórica e geográfica distintas, a visão eurocêntrica de progresso
ligada à modernidade e ao capitalismo, tem mais a ver com um radical dualismo
(de civilização e barbárie) que se compõe de homogeneidade, continuidade,
evolução unilinear e unidirecional.
Então passemos logo a identificar
os fantasmas da história da América Latina: Identidade, Modernidade, Desenvolvimento,
Democracia e Unidade. Estes seriam portanto elementos do poder e do saber
impostos pelo lado mais potente da colonização e abraçados pelos
latino-americanos para seu próprio infortúnio. Para que possamos andar com as
próprias pernas precisaríamos deles nos livrar. E Quijano já verifica há algum
tempo conflitos em torno dos mesmos e novos rearranjos. Primeiro, nas lutas
antirracismo e o intercâmbio entre “cor” e “raça”. Em segundo, a tomada de
consciência de que “modernização” quis significar nada mais do que “ocidentalização”,
numa chave de leitura em que indígenas e africanos foram vistos como
pré-modernos ou primitivos. Terceiro, a resistência dos sobreviventes ao
defenderem o legado aborígene. Em quarto, o atrito relacional entre as várias
versões do europeu: latinicidade, pragmatismo, espiritualismo, etc. E em quinto
e último, movimentos indígenas e afro-latino-americanos colocando em questão a
versão europeia de modernidade e de racionalidade para afirmarem suas próprias,
bem como apresentando valores civilizacionais (por ex., reciprocidade, ética da
solidariedade, etc.) enquanto alternativas a tendências predatórias do
capitalismo atual.
Pitacos safados
A associação que fiz entre os
memes de imobilidade histórica e o texto de Aníbal Quijano tratou-se de uma
armadilha da memória (a minha mesmo). A impressão que havia ficado depois da
leitura realizada lá pelos idos de 2009 foi a de que o texto de Quijano era
extremamente pessimista e possuía uma “imagem da história” tão fatalista quanto
os memes a respeito da colonização europeia. Mas me enganei ao relê-lo. O que
há de comum entre as “imagens da história” apresentadas por ambos (memes e
texto) é talvez o diagnóstico de que nossos problemas estão inextrincavelmente
relacionados ao processo de colonização. Porém, enquanto subentende-se que os
memes não apontam saídas a não ser aquela de devolver a terra para os “índios”
e pedir desculpas (perspectiva que aliás nos coloca como “europeus”), Quijano
dá pistas para nos livrarmos do embaraço das estruturas mentais (se quiserem,
culturais) desenvolvidas e disseminadas pela colonialidade do poder.
A despeito de sua sofisticação
teórica, penso que o ponto fraco do texto seja o de construir uma espécie de
latino-americanocentrismo para digladiar com a perspectiva eurocêntrica da
história. Quer dizer, não há dúvidas de que a conquista da América Latina e
suas relações com a Europa contribuíram para constituir realidades históricas
até hoje vivenciadas por todos, além de garantir a posição de soberania europeia
por tanto tempo; porém, em alguns momentos, torna-se forçosa a apresentação de
algum tipo de modernidade e de capitalismo como condições socioeconômicas
irrealizáveis sem a América Latina (diga-se, sua exploração e as implicações
disso). O enfoque nos chamados fantasmas históricos (desenvolvimento, unidade,
identidade, modernidade e democracia) mostrando-os como vícios do capitalismo,
inclusive de governos socialistas, é brilhante. Mas, por outro lado, perde a
mão quando olha para um passado remoto buscando sepultar de vez tais fantasmas
ao apresentar (como saídas?) os modos de vida e de pensamento das civilizações
que aqui viviam quando chegaram os europeus. São mundos históricos infelizmente
soterrados para sempre. É típico dos estudos pós-coloniais este tipo de
perspectiva. Possui suas razões políticas e são legítimas. E neste sentido uma
coisa esta área pode ensinar aos produtores de memes: a história é uma
narrativa. Ninguém vai mudar o fato de que os europeus chegaram aqui por volta
de 1500, nem que uma série de conflitos foi desencadeada depois disso.
Entretanto a perspectiva para compreender estes eventos está aberta. Dentro desta
margem de liberdade, os tipos de “imagens da história” que escolhermos
construir vão nos fazer olhar para o futuro ou nos prendermos ao passado. O que
queremos?
Referências:
CARR, Edward H. O que é história? São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
KOSELLECK, Reinhart. Historia
magistra vitae – sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento.
In:______. Futuro passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. São Paulo: Contraponto/Ed.
PUC-Rio, 2006, p. 41-60.
QUIJANO, Aníbal. Os fantasmas da
América Latina. In: NOVAES, Adauto (org.). Oito
visões da América Latina. São Paulo: SENAC, 2006, p. 49-85.
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