sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O (des)embaraço da ciência em Lyotard

Para que a ciência seja aceita em sociedade é preciso que ela possua uma legitimidade, a qual será base para a construção e o funcionamento de inúmeras instituições como, por exemplo, os locais de ensino e de pesquisa. Porém, a ciência não pode construir sua legitimidade a partir de si mesma, porque seus jogos de linguagem são diferentes daqueles que constroem o discurso de legitimidade. Lyotard diferencia o discurso científico do discurso narrativo da seguinte forma: os enunciados do primeiro são necessariamente denotativos, apenas informam, descrevem condições e objetos, enquanto os do último são (especialmente) prescritivos, nele estão contidas as ideias do saber-fazer, do saber-viver, do saber-escutar. O saber narrativo ultrapassa a determinação e aplicação do critério único de verdade – ao qual o discurso científico se restringe –, ele é relativo à determinação e aplicação dos critérios de eficiência, de justiça, de felicidade, de beleza sonora e cromática, etc. (2009, p. 36).

Se o discurso científico é “seco”, “indiferente”, “sem emoção”, “amoral”, ou seja, positivo[1]; o discurso narrativo é um relato que não tem compromisso com a observação empírica utilizada para confirmá-lo ou refutá-lo, ele vincula-se à ordem dos costumes. Podem ser “histórias” populares de sucesso ou de fracasso que instruem ou orientam como devem ser os comportamentos dentro de determinada sociedade, se constituem como consensos[2] (e não verdades) para um povo e uma cultura. Estes sucessos ou fracassos relatados “dão sua legitimidade às instituições da sociedade ou representam modelos positivos ou negativos de integração às instituições estabelecidas” (p. 37). A tragédia do Rei Édipo servirá como um exemplo aqui, mesmo se tratando de um relato ficcional, ela representa como um cidadão grego daquela época deve se portar à instituição-família. No caso, o protagonista tendo matado seu pai, Laio, e se casado com sua mãe, a rainha Jocasta, sem saber que o fazia, após descobrir o fato, teve a nobreza de arrancar seus próprios olhos como forma de punição ou purificação ao incesto e ao parricídio. Esse exemplo é apenas para demonstrar uma obra de arte já baseada em consensos presentes no saber narrativo de uma cultura, e que se expressam, ainda que implicitamente, na linguagem oral.

O saber científico nada tem a ver com o “bom” ou “mau” (adequado ou inadequado) comportamento de alguém; hipoteticamente, no caso de Édipo, se a ciência fosse utilizada pelo Direito, no máximo ela poderia constatar que Édipo possuía filhos com sua mãe fazendo um teste de DNA nas crianças assim apresentadas (claro, se esse recurso fosse possível na época), mas não poderia expressar como verdade o incesto, já que existem técnicas de reprodução sem sexo – tudo a mais que isso entraria na ordem da possibilidade e da verossimilhança (logo, do consenso) e não da “verdade denotativa”. Por mais que Édipo tenha assumido os “crimes” de incesto e parricídio, nem ele mesmo poderia provar o que fez, mas apenas aceitar o consenso da moral (segundo a qual diz que devemos falar a verdade – ainda que não possamos prová-la cientificamente).

Não foi sem propósito que fiz essa longa digressão no texto para voltar à questão da legitimação. Esta “encontra-se, desde Platão, indissoluvelmente associada à da legislação do legislador. Nesta perspectiva, o direito de decidir sobre o que é verdadeiro não é independente do direito de decidir sobre o que é justo, mesmo se os enunciados submetidos respectivamente a esta e àquela autoridade forem de natureza diferente. É que existe um entrosamento entre o gênero de linguagem que se chama ciência e o que se denomina ética e política: um e outro procedem de uma mesma perspectiva ou, se se preferir, de uma mesma ‘opção’, e esta chama-se Ocidente” (LYOTARD, 2009, p. 13). Ou seja, há um embaraço das linhas dos dois tipos de saberes, o científico e o narrativo, pois o narrativo que é prescritivo fornece as condições de produção de verdade para o científico, grosso modo, dizendo o que ele precisa possuir para ser verdadeiro e, logo, ser aceito na comunidade científica.

Este é o ponto que nos interessa neste texto, como já havíamos sinalizado no post anterior, para que a ciência constitua sua legitimação ela entra num paradoxo, pois precisa reconhecer um saber que não considera “verdadeiro” ou “científico”, porém um relato, uma narrativa, uma fábula não-verificável. Assim escreve Lyotard: “[...] o discurso platônico [nos Diálogos] que inaugura a ciência não é científico, e isto à medida que pretende legitimá-la. O saber científico não pode saber e fazer saber que ele é o verdadeiro saber sem recorrer ao outro saber, o relato, que é para ele o não-saber, sem o qual é obrigado a se pressupor a si mesmo e cai assim no que ele condena, a petição de princípio, o preconceito. Mas não cairia também nisto valendo-se do relato? (p. 53)”. A questão da legitimação do saber científico é igualmente resolvida na República de Platão através de um relato: a alegoria da caverna. Esta conta por que e como os homens querem os relatos (as trevas) e não reconhecem o saber (a luz). Por outro lado, esta está intimamente relacionada à questão da autoridade sociopolítica, já que o legislador é o rei, que não por acaso é um filósofo.

Os relatos modernos de legitimação do saber científico

Lyotard (1924-98)
Lyotard descreve dois tipos de relatos de legitimação da ciência produzidos no século 19. Estes tiveram uma influencia considerável sobre as universidades e o funcionamento dos saberes a partir desse período. 1º) Sob um viés mais político, o sujeito do primeiro relato é a humanidade: a heroína da liberdade. Entende-se aqui, humanidade como um conceito que engloba todos os povos, divididos em nações e épocas, agora reunidos numa história universal que marcha rumo ao progresso. Neste relato, defende-se que todos têm direito à ciência, se o povo não é o sujeito do saber científico é porque padres e tiranos impediram-no. Por isso, é necessário reconquistar esse direito. Esse discurso ainda é usado atualmente e justifica a intervenção militar no que Todorov (2012) chamou de “guerra humanitária” – quando, por exemplo, um governante ocidental se coloca como libertador da tirania de um governo teocrático no oriente através da defesa dos direitos humanos “universais”. No plano prático das instituições universitárias, esse relato cuida de “produzir as competências administrativas e profissionais necessárias à estabilidade do Estado” (p. 58) a custo de ignorar que no relato das liberdades o Estado não recebe a legitimidade de si mesmo, mas do povo. Pelo menos em tese, o povo ou a nação, neste relato, fazem os papéis de legisladores da legitimação e de sujeitos do saber científico. Sendo assim, o Estado toma o papel da formação do povo e sua orientação no caminho do progresso; e através da difusão dos saberes autoriza a nação a conquistar sua liberdade.

2º) O segundo relato foi concebido quando o conselheiro do ministério da Prússia, Wilhelm von Humboldt, escreveu o relatório de fundação da Universidade de Berlim em 1810. Segundo o relator, a ciência obedece às suas próprias regras e a instituição científica não possui finalidade determinada, contudo acrescenta que a universidade deve enviar seu material (a ciência) à formação espiritual e moral da naçãoBildung, em alemão. Lyotard questiona este embaraço da ciência com os fins políticos e morais: “O Estado, a nação, a humanidade inteira não são indiferentes ao saber considerado em si mesmo? Com efeito, o que lhes interessa é, como declara Humboldt, não o conhecimento, mas o ‘caráter e a ação’” (p. 59).

Um conflito maior é instaurado nesse relato: a diferença entre o conhecer e o querer. O primeiro está ligado aos enunciados denotativos que emanam do critério de verdade e o segundo orienta a prática ética, social, política através de decisões e obrigações, quer dizer, sob enunciados prescritivos, dos quais não se espera que sejam verdadeiros, mas justos - pois não emanam do saber científico. No entanto, a unificação destes dois tipos de discursos é essencial à Bildung, pois não só espera-se a aquisição de conhecimentos, mas a formação de um sujeito legitimado do saber e da sociedade (p. 60). A este sujeito "universal" Humboldt confere a categorização de Espírito, o qual sintetiza o conhecimento científico e o ideal ético e social numa única Ideia: [...] “assegurando que a pesquisa das verdadeiras causas na ciência não pode deixar de coincidir com a persecução de justos fins na vida moral e política” (p. 60). Um pitaco: não é difícil observar que ainda pautamos nossas condutas muito em cima desses pressupostos que embaraçam a moral à ciência, imbricando-as. Quando o pastor Silas Malafaia diz que a homossexualidade é um comportamento e que ninguém nasce homossexual, nada mais está ele afirmando que a moralidade da tradição cristã é científica. Por outro lado, a resposta do geneticista a ele não foge de uma linha similar, algo assim: “a ciência afirma que cérebros de mulheres homossexuais são mais parecidos aos cérebros de homens heterossexuais do que aos de mulheres heterossexuais; conclui-se, portanto, que a homossexualidade pode ser comprovada pela ciência e por isso moralmente aceita.

Neste tipo de relato do idealismo alemão, o sujeito do saber científico não é o povo, mas o espírito especulativo.  É ele quem conferirá a legitimidade do saber. A filosofia deste relato deve unir os conhecimentos dispersos sob uma totalidade globalizante, num sistema, que foi expresso na Enciclopédia de Hegel na qual cada momento do conhecimento faz parte do devir do Espírito. Esse projeto acaba fazendo um retorno do saber narrativo, que Lyotard chama, neste caso, de metanarração racional. “A enciclopédia do idealismo alemão é a narração da ‘história’ deste sujeito-vida [o Espírito]”. Este sujeito não pode ser verificável, como se disse, ele é especulativo. É como se fosse uma roupa vestida pela humanidade, durante a história universal, e que com o passar do tempo histórico e do nível “cultural” do povo/nação a vestimenta vai se aperfeiçoando através da Bildung. Pode-se considerar o Espírito um metassujeito. “Este relato não justifica a pesquisa e a difusão do conhecimento por um princípio em uso. [...] O idealismo alemão recorre a um metaprincípio que simultaneamente fundamenta o desenvolvimento ao mesmo tempo do conhecimento, da sociedade e do Estado na realização da ‘vida’ de um Sujeito que Fichte chama ‘Vida divina’ e Hegel ‘Vida do espírito’” (p. 62). Aqui o saber encontra sua legitimidade sobre si mesmo, mas isso só é possível quando ele muda do seu jogo de linguagem, ou seja, deixa de ser conhecimento positivo do seu referente e passa a ser o saber dos saberes, por isso, especulativo. “Sob o nome de Vida, de Espírito, é a si mesmo que nomeia” (p. 63).

Dentro deste, agora os discursos de conhecimento sobre os referentes não possuem valor de verdade de imediato, mas somente valor em uma posição dentro da trajetória histórica do Espírito. “Nesta perspectiva, o verdadeiro saber é sempre um saber indireto, feito de enunciados recolhidos e incorporados ao metarrelato de um sujeito que assegura-lhe a legitimidade. [...] Os enunciados são tomados como autônomos deles mesmos, e colocados num movimento onde se admite que eles se engendrem uns aos outros: tais são as regras do jogo de linguagem especulativo. A universidade, como seu nome o indica, é a sua instituição exclusiva (p. 63)”. Esse discurso de legitimação pode ser encontrado, por exemplo, na historiografia, quando se descrevem num percurso histórico as obras que estudaram o mesmo assunto. Entretanto, ele não é restrito à historiografia, pois trabalhos “científicos” do Direito ou até mesmo das ciências exatas constroem uma narrativa falando do tema desde os tempos mais primórdios (partindo do suposto que ciência precisa da justificativa da tradição em totalidade ou realmente seja um Espírito em plena evolução e aperfeiçoamento).

A condição da ciência na “pós-modernidade” para Lyotard

O autor sinaliza que enquanto a legitimação através do relato especulativo, que rege a maioria das instituições universitárias, se encontra abalada devido à fragmentação de sua unidade, sobretudo porque o sujeito não é mais depositário do saber e a tendência é cada vez mais isso diminuir conforme a tecnologia se expande, a primeira versão do relato ganha novo vigor. Em vez do saber encontrar sua validade em si mesmo (como no idealismo alemão) ou no sujeito que se desenvolve atualizando suas possibilidades de conhecimento, agora legitima-se num sujeito prático, que é a humanidade. Em vez da autolegitimação, o princípio de movimento é a autogestão ou a liberdade em sua autofundação. O sujeito é concreto e não mais metafísico, sua epopéia é a da emancipação em relação a tudo aquilo que impede de governar a si mesmo (p. 64). Aposta-se numa ética dos legisladores, não numa exterioridade. Acredita-se que o legislador não é outro senão aquele que como cidadão está submetido à lei e enquanto tal deseja que a lei faça justiça. Tal jogo de linguagem privilegia os enunciados prescritivos.

Lyotard afirma que atualmente não há preocupação em legitimar (somente) os enunciados denotativos, mas especialmente os prescritivos, os que expressam justiça. Assim, “a ciência positiva não tem outro papel senão o de informar ao sujeito prático da realidade na qual a execução da prescrição deve se inscrever. Ele lhe permite circunscrever o executável, o que pode se fazer. Mas o executório, o que se deve fazer, não lhe pertence. Que um empreendimento seja possível é uma coisa; que ele seja justo, outra. O saber não é mais sujeito, ele está a seu serviço; sua única legitimidade (mas ela é considerável), é permitir que a moralidade venha a ser realidade” (p. 65). Por outro lado, os cientistas podem se recusar a prestar serviço ao Estado que considerarem injusto – que não é fundamentado sobre a autonomia da sociedade civil. Ou podem mostrar que esta autonomia não é realizada na sociedade e no Estado. Então, retoma-se a função crítica do saber, mas é necessário considerar que ele não tem outra legitimidade que não seja a de servir aos fins visados pelo sujeito prático que é a coletividade autônoma. Tal saída se mostra interessante, pois ela separa os papéis na tarefa de legitimação, desconstruindo a totalização ou a unificação feita por um metadiscurso que engendrou os distintos jogos de linguagem, do dever e do saber, como se eles fossem um só.

Referências:

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
TODOROV, Tzvetan. Só a ficção nos salva: entrevista com Bruno Garcia. Revista de História, 1/1/2012. Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/tzvetan-todorov.



[1] Refiro-me aqui ao sentido de positivismo, de existência, desvinculada de qualquer paixão, moral e ética. E não ao positivo no sentido de que é bom como oposição ao negativo, o ruim. 

[2] Podem ser nomeados como “opiniões comuns” (no grego, doxa).

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