sexta-feira, 22 de maio de 2015

Historiografia e acontecimento: introdução ao debate (1/4)

Compartilho aqui um artigo meu publicado na Revista Teoria da História da Universidade Federal de Goiás ano passado. Trata-se de uma análise teórica sobre o conceito de acontecimento e seus desdobramentos nas obras O queijo e os vermes (do historiador italiano Carlo Ginzburg) e Eu, Pierre Rivière que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... (organizado pelo filósofo francês Michel Foucault). Vou dividi-lo em quatro posts que podem ser lidos separadamente conforme o interesse do leitor sobre cada tópico. Este é o primeiro: nele exponho uma definição do conceito de acontecimento e faço um debate introdutório a respeito de seu uso na historiografia.  

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Ligado tanto ao tempo quanto ao espaço, o acontecimento é implícita ou explicitamente uma peça-chave em qualquer pesquisa e narrativa historiográfica. Embora não haja (ainda) historiadores defensores de uma escrita da história totalmente desprovida de acontecimentos, os profissionais desta área lidam de diferentes maneiras com estes. Para um aporte teórico da análise aqui proposta, utilizo a definição conceitual de acontecimento desenvolvida por Jacques Rancière:


“é a conjunção de um conjunto de fatos e de uma interpretação que designa esse conjunto de fatos como acontecimento singular. Em outras palavras, é a conjunção de um conjunto de fatos e uma subjetivação. Não há acontecimento sem sentido de acontecimento, sem subjetivação de acontecimento. Para empregar uma palavra má reputada, não há acontecimento sem “ideologia”, sem um alguém por quem e para quem ele tem sentido de acontecimento” (RANCIÈRE, 1995, p. 239).

Em linhas gerais, entre os pesquisadores de história, é possível dizer que: alguns consideram o acontecimento como o objeto de pesquisa próprio ao saber histórico, ou seja, aquilo que demarca o limite fronteiriço da ciência ou da disciplina História em relação aos outros saberes e o ponto a partir do qual ela se constitui (cf. VEYNE, 2008); alguns expressam que o acontecimento é uma categoria conceitual imprescindível à pesquisa histórica, todavia não pode ser o objeto de investigação desta, tampouco ocupar seu centro de análise (cf. ARÓSTEGUI, 2006); enquanto outros preferem tratar o acontecimento como elemento de menor importância, submetido a uma dada configuração geral ou estrutural de longa-duração que causaria e, concomitantemente, explicaria sua emergência (cf. BRAUDEL, 1990).

No início do século 19, período no qual a História buscava reconhecimento institucional e afirmação de caráter científico, o historiador prussiano Wilhelm von Humboldt escreveu um texto programático ao ofício do historiador. Nele, o autor advertia que a tarefa principal do historiador era a exposição do acontecimento. Contudo, por conta do acontecimento poder ser observado somente em partes, caberia ao historiador intuir, concluir e deduzir seu restante. Entretanto a prática historiográfica não poderia se reduzir a isto; já que a “verdade essencial” não estaria nos fatos que se passaram, estes apenas constituiriam a base e o material da história. Por isso era também necessário que o pesquisador estabelecesse uma conexão entre os acontecimentos expostos fabricando “um todo a partir de um conjunto de fragmentos” (2010, p. 83). E para tal utilizava-se, assim como o poeta, da intuição e da fantasia; porém, neste caso, ambas submetidas à experiência e à investigação da realidade.

Outro historiador prussiano do século 19, Leopold von Ranke, em contraposição aos conceitos especulativos da Filosofia – que desprezava a necessidade da experiência para conceber a história adequando-a a esquemas pré-estabelecidos –, escreveu sobre a importância dos eventos e fenômenos particulares verificados através dos documentos. Embora advertisse a respeito do dever que o historiador tinha de encontrar o nexo causal entre os eventos concretos, Ranke (2010, p. 206) entendia que cada particularidade comportava o infinito divino em seu interior e que, portanto, não precisava ser apagada para que pudéssemos construir o todo da história. Assim, diferentemente dos filósofos aos quais se contrapunha, ele asseverava que a operação da História construía o contexto geral a partir da articulação entre acontecimentos/indivíduos particulares e não o contrário, na qual os elementos particulares, para serem verdadeiramente históricos, deveriam se encaixar num modelo abstrato previamente intuído.

As atuações de Humboldt e Ranke estavam permeadas por tensões institucionais e procuravam marcar uma distância de saberes como a Teologia e a Filosofia para estabelecer uma legitimidade à disciplina de História. Entre o final do século 19 e início do século 20, o saber histórico é novamente pressionado por outras áreas do conhecimento, emergentes no período. A Sociologia é a principal delas (cf. SILVA, 2005, p. 128). Mas se antes havia uma preocupação em responder a Filosofia através do argumento de que a história só poderia ser escrita sob a mediação de documentos e acontecimentos observáveis, agora a questão era defender-se contra a acusação da Sociologia de que o saber histórico dava demasiada atenção aos acontecimentos que, para alguns, não poderiam explicar a dinâmica humana, tampouco fundamentar leis sociais, pois se ligavam ao contingente e ao(s) indivíduo(s).

Sob este ângulo é possível compreender a partir da década de 1930 as reações da Escola dos Annales contra a escrita da história praticada no século 19. Entre tantas críticas, uma delas era a de que as escolas historiográficas oitocentistas privilegiavam os acontecimentos e as ações individuais – utilizando-se do termo histoire événementielle (história acontecimentalista) para se referirem aos trabalhos de tais historiadores.

Segundo Marc Bloch, um dos fundadores dos Annales, a histoire événementielle seria praticada por aqueles que “dão extrema importância a retraçar exatamente os atos, palavras ou atitudes de alguns personagens, agrupados em uma cena de duração relativamente curta, em que se concentram, como na tragédia clássica, todas as forças da crise do momento: jornada revolucionária, combate, entrevista diplomática” (2002, p. 71). Pode-se perceber que a noção de acontecimento de Bloch ligava-se ao âmbito político, tendo em vista que os “primeiros” Annales se opuseram à história política em privilégio da história social e econômica ou história-síntese e total. A proposta dos Annales assentava-se sobre o fundamento de que a história das massas era a que realmente importava (HOBSBAWM, 1998; REVEL, 2000). A tarefa exigia assim a incorporação de um conjunto de noções e conceitos (como história-síntese, sociologia histórica, mentalidades, estrutura) mais próximos da Sociologia, da Antropologia e da Geografia do que da Filosofia e da Arte, como fazia a historiografia do século 19. Conforme explica Silva, “Febvre e Bloch inspiraram-se, em grande parte, na Revue de Synthèse Historique, de Henri Berr, que também chamava pela síntese das ciências humanas e por uma história global que articulasse as mais diversas dimensões da vida social. A produção inicial dos Annales contribuiu para o declínio da história biográfica e política, deu relevo aos aspectos econômicos, mentais e sociológicos, priorizou a ‘longa duração’ e a história das estruturas mais do que a dos acontecimentos isolados. A este respeito, Paul Ricoeur diagnosticou o ‘eclipse do acontecimento na historiografia francesa’, iniciado antes mesmo da empreitada braudeliana” (2005, p. 131).

Também respondendo aos sociólogos, um historiador pertencente à segunda geração e diretor da revista dos Annales entre 1956 e 1969, Fernand Braudel divisou os tempos históricos deixando claro que o período temporal de maior importância para a História era a longa-duração (BRAUDEL, 1990). Para o autor, é estudando este tempo que o historiador poderá compreender o movimento lento, quase imóvel, das estruturas geo-históricas através das quais as conjunturas são formadas e os acontecimentos eclodem. Metaforicamente, estes últimos “nada mais seriam do que espumas que se formam na crista das ondas, estas mesmas impulsionadas por correntes profundas” (BARROS, 2012, p. 09).

Ainda que as considerações dos Annales coincidissem com boa parte dos elementos de análise de outro modelo historiográfico, o marxismo, consolidado no século 20, houve uma ressaca no “mar de Braudel” a partir de meados dos anos 60. Acredita-se que essa ressaca resultou das tempestades trazidas pelo processo de duas guerras mundiais, os totalitarismos, o Holocausto, o fracasso do socialismo real, a ascensão de ditaduras, os conflitos entre Ocidente e Oriente e etc. No âmbito da historiografia, a ressaca foi sentida com o descrédito dos grandes paradigmas explicativos da história, acompanhada pela crítica à razão instrumental (AVELAR, 2011). Vimos uma pluralização de abordagens e perspectivas e o ressurgimento de conceitos e temas, entre os quais está o acontecimento. As produções de Ginzburg e Foucault acompanham este movimento. Ambas procuram, de certa maneira, descrever limites e fragilidades ou propor soluções aos modelos historiográficos que homogeneízam as particularidades e as diferenças presentes na dinâmica humana da História. É o que começaremos a ver no próximo post.

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Referências:

ARÓSTEGUI, Júlio. O objeto teórico da historiografia. In:______. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006.
AVELAR, Alexandre de Sá. Figurações da escrita biográfica. Revista ArtCultura, UFU, Uberlândia-MG, v. 13, n. 22, p. 137-155, jan./jun., 2011.
BARROS, José D’Assunção. Fernand Braudel e a geração dos Annales. Revista Eletrônica História em Reflexão, UFGD, Dourados-MS, vol. 6, n. 11, p. 1-18, jan./jun., 2012.
BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
HOBSBAWM, Eric. A história de baixo para cima. In:______. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 216-232.
HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a tarefa do historiador [1821]. In: MARTINS, Estevão de Rezende (org.). A história pensada. São Paulo: Contexto, 2010, p. 82-100.
RANKE, Leopold von. O conceito de história universal [1831]. In: MARTINS, Estevão de Rezende (org.). A história pensada. São Paulo: Contexto, 2010, p. 202-215.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
REVEL, Jacques. Prefácio: a história ao rés-do-chão. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 07-36.
SILVA, Fernando Teixeira da. História e ciências sociais: zonas de fronteira. História, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 127-166, 2005.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

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