Compartilho aqui um artigo meu publicado na
Revista Teoria da História da Universidade Federal de Goiás ano passado.
Trata-se de uma análise teórica sobre o conceito de acontecimento e seus
desdobramentos nas obras O queijo e os vermes (do historiador
italiano Carlo Ginzburg) e Eu, Pierre Rivière que degolei minha mãe,
minha irmã e meu irmão... (organizado pelo filósofo francês Michel
Foucault). Vou dividi-lo em quatro posts que podem ser lidos separadamente
conforme o interesse do leitor sobre cada tópico. Este é o primeiro: nele
exponho uma definição do conceito de acontecimento e faço um debate
introdutório a respeito de seu uso na historiografia.
*****
Ligado tanto ao tempo quanto ao espaço, o
acontecimento é implícita ou explicitamente uma peça-chave em qualquer pesquisa
e narrativa historiográfica. Embora não haja (ainda) historiadores defensores
de uma escrita da história totalmente desprovida de acontecimentos, os
profissionais desta área lidam de diferentes maneiras com estes. Para um aporte
teórico da análise aqui proposta, utilizo a definição conceitual de
acontecimento desenvolvida por Jacques Rancière:
“é a conjunção de um conjunto de fatos e de uma interpretação que designa esse conjunto de fatos como acontecimento singular. Em outras palavras, é a conjunção de um conjunto de fatos e uma subjetivação. Não há acontecimento sem sentido de acontecimento, sem subjetivação de acontecimento. Para empregar uma palavra má reputada, não há acontecimento sem “ideologia”, sem um alguém por quem e para quem ele tem sentido de acontecimento” (RANCIÈRE, 1995, p. 239).
Em linhas gerais, entre os pesquisadores de
história, é possível dizer que: alguns consideram o acontecimento como o objeto
de pesquisa próprio ao saber histórico, ou seja, aquilo que demarca o limite
fronteiriço da ciência ou da disciplina História em relação aos outros saberes
e o ponto a partir do qual ela se constitui (cf. VEYNE, 2008); alguns expressam
que o acontecimento é uma categoria conceitual imprescindível à pesquisa
histórica, todavia não pode ser o objeto de investigação desta, tampouco ocupar
seu centro de análise (cf. ARÓSTEGUI, 2006); enquanto outros preferem tratar o
acontecimento como elemento de menor importância, submetido a uma dada
configuração geral ou estrutural de longa-duração que causaria e,
concomitantemente, explicaria sua emergência (cf. BRAUDEL, 1990).
No início do século 19, período no qual a
História buscava reconhecimento institucional e afirmação de caráter
científico, o historiador prussiano Wilhelm von Humboldt escreveu um texto
programático ao ofício do historiador. Nele, o autor advertia que a tarefa
principal do historiador era a exposição do acontecimento. Contudo, por conta
do acontecimento poder ser observado somente em partes, caberia ao historiador
intuir, concluir e deduzir seu restante. Entretanto a prática historiográfica
não poderia se reduzir a isto; já que a “verdade essencial” não estaria nos
fatos que se passaram, estes apenas constituiriam a base e o material da
história. Por isso era também necessário que o pesquisador estabelecesse uma
conexão entre os acontecimentos expostos fabricando “um todo a partir de um
conjunto de fragmentos” (2010, p. 83). E para tal utilizava-se, assim como o
poeta, da intuição e da fantasia; porém, neste caso, ambas submetidas à
experiência e à investigação da realidade.
Outro historiador prussiano do século 19,
Leopold von Ranke, em contraposição aos conceitos especulativos da Filosofia –
que desprezava a necessidade da experiência para conceber a história adequando-a
a esquemas pré-estabelecidos –, escreveu sobre a importância dos eventos e
fenômenos particulares verificados através dos documentos. Embora advertisse a
respeito do dever que o historiador tinha de encontrar o nexo causal entre os
eventos concretos, Ranke (2010, p. 206) entendia que cada particularidade
comportava o infinito divino em seu interior e que, portanto, não precisava ser
apagada para que pudéssemos construir o todo da história. Assim, diferentemente
dos filósofos aos quais se contrapunha, ele asseverava que a operação da
História construía o contexto geral a partir da articulação entre
acontecimentos/indivíduos particulares e não o contrário, na qual os elementos
particulares, para serem verdadeiramente históricos, deveriam se encaixar num
modelo abstrato previamente intuído.
As atuações de Humboldt e Ranke estavam
permeadas por tensões institucionais e procuravam marcar uma distância de
saberes como a Teologia e a Filosofia para estabelecer uma legitimidade à
disciplina de História. Entre o final do século 19 e início do século 20, o
saber histórico é novamente pressionado por outras áreas do conhecimento,
emergentes no período. A Sociologia é a principal delas (cf. SILVA, 2005, p.
128). Mas se antes havia uma preocupação em responder a Filosofia através do
argumento de que a história só poderia ser escrita sob a mediação de documentos
e acontecimentos observáveis, agora a questão era defender-se contra a acusação
da Sociologia de que o saber histórico dava demasiada atenção aos
acontecimentos que, para alguns, não poderiam explicar a dinâmica humana,
tampouco fundamentar leis sociais, pois se ligavam ao contingente e ao(s)
indivíduo(s).
Sob este ângulo é possível compreender
a partir da década de 1930 as reações da Escola dos Annales contra a escrita da história praticada
no século 19. Entre tantas críticas, uma delas era a de que as escolas historiográficas
oitocentistas privilegiavam os acontecimentos e as ações individuais –
utilizando-se do termo histoire
événementielle (história acontecimentalista) para se referirem aos
trabalhos de tais historiadores.
Segundo Marc Bloch, um dos fundadores
dos Annales, a histoire événementielle seria praticada por aqueles que “dão
extrema importância a retraçar exatamente os atos, palavras ou atitudes de
alguns personagens, agrupados em uma cena de duração relativamente curta, em
que se concentram, como na tragédia clássica, todas as forças da crise do
momento: jornada revolucionária, combate, entrevista diplomática” (2002, p.
71). Pode-se perceber que a noção de acontecimento de Bloch ligava-se ao âmbito
político, tendo em vista que os “primeiros” Annales
se opuseram à história política em privilégio da história social e econômica ou
história-síntese e total. A proposta dos Annales
assentava-se sobre o fundamento de que a história das massas era a que
realmente importava (HOBSBAWM, 1998; REVEL, 2000). A tarefa exigia assim a
incorporação de um conjunto de noções e conceitos (como história-síntese,
sociologia histórica, mentalidades, estrutura) mais próximos da Sociologia, da
Antropologia e da Geografia do que da Filosofia e da Arte, como fazia a
historiografia do século 19. Conforme explica Silva, “Febvre e Bloch
inspiraram-se, em grande parte, na Revue
de Synthèse Historique, de Henri Berr, que também chamava pela síntese das
ciências humanas e por uma história global que articulasse as mais diversas
dimensões da vida social. A produção inicial dos Annales contribuiu para o declínio da história biográfica e
política, deu relevo aos aspectos econômicos, mentais e sociológicos, priorizou
a ‘longa duração’ e a história das estruturas mais do que a dos acontecimentos
isolados. A este respeito, Paul Ricoeur diagnosticou o ‘eclipse do
acontecimento na historiografia francesa’, iniciado antes mesmo da empreitada
braudeliana” (2005, p. 131).
Também respondendo aos sociólogos, um historiador
pertencente à segunda geração e diretor da revista dos Annales entre 1956 e 1969, Fernand Braudel divisou os tempos
históricos deixando claro que o período temporal de maior importância para a
História era a longa-duração (BRAUDEL, 1990). Para o autor, é estudando este
tempo que o historiador poderá compreender o movimento lento, quase imóvel, das
estruturas geo-históricas através das quais as conjunturas são formadas e os
acontecimentos eclodem. Metaforicamente, estes últimos “nada mais seriam do que
espumas que se formam na crista das ondas, estas mesmas impulsionadas por
correntes profundas” (BARROS, 2012, p. 09).
Ainda que as considerações dos Annales coincidissem com boa parte dos
elementos de análise de outro modelo historiográfico, o marxismo, consolidado
no século 20, houve uma ressaca no “mar de Braudel” a partir de meados dos anos
60. Acredita-se que essa ressaca resultou das tempestades trazidas pelo
processo de duas guerras mundiais, os totalitarismos, o Holocausto, o fracasso
do socialismo real, a ascensão de ditaduras, os conflitos entre Ocidente e
Oriente e etc. No âmbito da historiografia, a ressaca foi sentida com o
descrédito dos grandes paradigmas explicativos da história, acompanhada pela
crítica à razão instrumental (AVELAR, 2011). Vimos uma pluralização de abordagens
e perspectivas e o ressurgimento de conceitos e temas, entre os quais está o
acontecimento. As produções de Ginzburg e Foucault acompanham este movimento.
Ambas procuram, de certa maneira, descrever limites e fragilidades ou propor
soluções aos modelos historiográficos que homogeneízam as particularidades e as
diferenças presentes na dinâmica humana da História. É o que começaremos a ver
no próximo post.
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Referências:
ARÓSTEGUI, Júlio. O objeto teórico da
historiografia. In:______. A pesquisa
histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006.
AVELAR, Alexandre de Sá. Figurações da escrita
biográfica. Revista ArtCultura, UFU, Uberlândia-MG, v. 13, n. 22, p.
137-155, jan./jun., 2011.
BARROS, José D’Assunção. Fernand Braudel e a
geração dos Annales. Revista Eletrônica História em Reflexão,
UFGD, Dourados-MS, vol. 6, n. 11, p. 1-18, jan./jun., 2012.
BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o
ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1990.
HOBSBAWM, Eric. A história de baixo para cima.
In:______. Sobre história. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 216-232.
HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a tarefa do
historiador [1821]. In: MARTINS, Estevão de Rezende (org.). A história
pensada. São Paulo: Contexto, 2010, p. 82-100.
RANKE, Leopold von. O conceito de história
universal [1831]. In: MARTINS, Estevão de Rezende (org.). A história pensada.
São Paulo: Contexto, 2010, p. 202-215.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
REVEL, Jacques. Prefácio: a história ao
rés-do-chão. In: LEVI, Giovanni. A
herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 07-36.
SILVA, Fernando Teixeira da. História e
ciências sociais: zonas de fronteira. História,
São Paulo, v. 24, n. 1, p. 127-166, 2005.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4ª Ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
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