Dando continuidade ao texto anterior em
que iniciei um debate sobre as concepções e usos do conceito de acontecimento
na historiografia, neste post apresento as obras citadas no título e desenvolvo
discussão sobre o “uso da ordem” e a “individualidade do personagem histórico”
em tais. Em edição brasileira, os respectivos trabalhos de Ginzburg e Foucault,
intitulam-se O queijo e os vermes: o
cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição, publicado
em 1976, na Itália, e Eu, Pierre Rivière,
que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... um caso de parricídio no
século 19, edição original de 1973, na França.
O livro escrito por Ginzburg trata-se de uma
história sobre a trajetória de vida de um moleiro (Domenico
Scandella, vulgo Menocchio) que passou por um processo inquisidor da Igreja
Católica, durante a Contra-Reforma, no século 16, por ser acusado de heresia e
ligação a seitas de bruxaria. Conforme o historiador italiano, a pesquisa sobre
um indivíduo comum, ainda que não representativo de sua comunidade, permitiu a
descrição da fisionomia de sua cultura e do contexto no qual ele se moldou e,
mais, uma hipótese geral sobre a cultura camponesa da Europa pré-industrial
(GINZBURG, 1987, p. 12).
Em contrapartida, a obra de Foucault
não se trata da narrativa de um único autor. Foucault é o organizador e
apresentador de um conjunto de documentos que compõem um dossiê do inquérito
que apura um triplo assassinato cometido por um jovem camponês (Pierre
Rivière), no século 19. O dossiê é composto por relatórios policiais e
jurídicos, depoimentos de testemunhas, interrogatórios, notícias de jornais
sobre o caso, relatórios médicos sobre a sanidade mental do acusado, pareceres
médicos-legais de reconhecidos profissionais da medicina da época (Marc, Orfila
e Esquirol) e, sobretudo, pelo memorial escrito por Rivière, quando preso,
narrando seu crime e suas motivações. Foucault assina a apresentação inicial da
obra e um dos sete artigos que são escritos ao término. Os outros seis são
produções do grupo de pesquisadores do seminário no Collège de France onde Foucault lecionava nos anos 70.¹
Posto isso, a análise teórica do acontecimento na obra centrar-se-á sobre a
apresentação e o artigo intitulado “Os assassinatos que se conta” no qual
Foucault comenta o caso.
Ambas as obras centralizam sua organização em
torno de acontecimentos ligados a instâncias jurídicas, o primeiro ligado à
Inquisição promovida pela Igreja Católica no século 16 e o segundo, à justiça
criminal francesa do século 19. Nos dois casos, os personagens principais das narrativas
morrem na prisão. Rivière se suicida, Menocchio é punido com a execução. As
duas obras partem de análises do cotidiano ou do microcosmo para extrair
conclusões referentes ao contexto ou à estrutura social e política. Ambas lidam
com escritas de uma vida, ou, pelo menos, com fragmentos de uma vida que, em
certa medida, servem não só às obras historiográfica e filosófica como também
aos processos judiciários pesquisados por elas. Contudo, a despeito destes,
entre outros pontos de encontro, é possível perceber nas produções diversos
pontos de dessemelhança, dos quais recorto apenas quatro para compreender as
características a partir das quais os autores articulam a noção de
acontecimento.
As
fontes documentais: o uso da ordem
Os materiais escritos que servem de documentos
ao trabalho de Ginzburg são partes do processo inquisidor encontrado nos
arquivos da Cúria Episcopal da cidade de Udine, na Itália. Na narrativa, são
usados como referências os interrogatórios do moleiro, os testemunhos de
pessoas que moravam na aldeia em que o acusado vivia e a lista de livros
considerados “heréticos”, encontrados na casa de Menocchio. Durante os anos 70,
o historiador pesquisava sobre seitas heréticas e crenças camponesas durante o
processo da Inquisição católica e acabou chegando por acaso em Menocchio.
Ginzburg diz que devido a “uma farta documentação, temos condições de saber
quais eram suas leituras e discussões, pensamentos e sentimentos: temores,
esperanças, ironias, raivas, desesperos” (1987, p. 12).
Neste sentido, podemos perceber uma primeira
característica no uso de fontes por Ginzburg. Há uma valorização na quantidade
delas e a confiança de que, sendo assim, documentos oficiais de uma instituição
ou não possam servir como meios para enunciar as maneiras de pensar e de sentir
de uma pessoa que viveu no século 16. Entretanto, isso não se dá de forma
simplista, pois, conforme o historiador:
“A ideia de que as fontes, se dignas de fé, oferecem um acesso imediato à realidade ou, pelo menos, a um aspecto da realidade, me parece igualmente rudimentar. As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer fonte implica já um elemento construtivo” (GINZBURG, 2002, p. 44).
Assim, implicitamente, podemos compreender que
munido de ferramentas teórico-metodológicas garantidas por uma formação
profissional, o historiador terá os instrumentos necessários para formar a
realidade através deste “espelho deformante”, selecionando e organizando essa
massa de materiais desorganizados e disformes, o conhecimento histórico é
construído. Ao que nos interessa neste trabalho, conseguirá ele explicar adequadamente
o acontecimento e reconstruir a realidade.
Enquanto Ginzburg defende que, mediada pelos
recursos técnicos e teóricos do saber historiográfico, o uso da ordem no
contato aos documentos possibilita a compreensão e explicação do acontecimento,
Foucault em vez de organizar as informações contidas nos documentos para
construir uma narrativa, realiza, no máximo, apenas uma organização externa a
partir da cronologia e os expõe integralmente. Dispondo num plano horizontal o
processo jurídico de Rivière (contendo dados biográficos, testemunhos,
interrogatórios, etc.) os relatórios médicos, os anúncios de jornais e o
memorial que tentam explicar o acontecimento (os assassinatos), o filósofo
pretende exacerbar o conflito de sentidos e a batalha discursiva entre eles
(FOUCAULT, 2007, p. XIII), revelando assim, a fragilidade epistemológica na
qual os saberes se apóiam ou a impossibilidade de uma única explicação para o
acontecimento. Escreve Foucault:
“[...] um acontecimento em torno do qual e a propósito do qual vieram se cruzar discursos de origem, forma, organização e função diferentes: o do juiz de paz, do procurador, do presidente do tribunal do júri, do ministro da Justiça; do médico de província e o de Esquirol; o de aldeões com seu prefeito e seu cura. Por fim o do assassino. Todos falam ou parecem falar da mesma coisa: pelo menos é ao acontecimento do dia 3 de junho que se referem todos esses discursos. Mas todos eles, e em sua heterogeneidade, não formam nem uma obra nem um texto, mas uma luta singular, um confronto, uma relação de poder, uma batalha de discursos e através de discursos” (Idem, p. XII).
Apoiados em instituições sociais distintas,
cada documento almeja estabelecer uma ordem necessária entre os eventos para
fundamentar a lógica de sua argumentação e chegar a uma conclusão sobre o
acontecimento. Querem produzir um fim. Mas na medida em que diferentes saberes,
narrativas e interpretações são reunidas pelo autor, a impossibilidade da ordem
é o que se apresenta. As distintas conclusões se anulam. Assim como Ginzburg,
Foucault usa os documentos a contrapelo, porém não os interpreta, não os lê
como se quisesse dar novo significado a eles, tampouco neutraliza, através de
uma crítica interna, o que eles enunciam para determinar se dizem a verdade
(FOUCAULT, 2010, p. 07). O filósofo, como um positivista,²
toma a verdade que cada um constrói e apresenta e, a partir disso, a
possibilidade de confrontá-las e chocá-las verificando seus antagonismos.
Enquanto Ginzburg desenvolve uma análise e depois uma crítica problematizada
aos documentos para chegar a uma síntese conclusiva sobre a maneira que
Menocchio pensava e se expressava, Foucault não faz síntese alguma; em vez de
integrar e extrair uma verossimilhança através dos documentos e do contexto, o
filósofo separa os discursos e as interpretações a respeito das motivações e
sentimentos de Rivière.
A
individualidade do biografado
Nas tentativas de explicação do acontecimento,
nos dois casos é levada em conta a individualidade do biografado, isto é, as
formas próprias através das quais os personagens principais das produções
exprimem seus sentimentos, seus pensamentos e suas ações. Contudo, isto é feito
de maneira distinta pelos autores.
Ginzburg expõe uma rede de relacionamentos
composta por pessoas da classe superior que eram críticas a determinados preceitos
da Igreja (e que tiveram contato com o acusado) e procura reconstruir as
experiências de leitura de Menocchio, como também desenterra tradições e
crenças populares da era pré-cristã, algumas ainda vivenciadas em rituais
secretos neste período, para compreender as particularidades do sentir, do
pensar, do dizer e do agir do acusado, já que ele era um homem bastante
distinto do que poderíamos chamar de “indivíduo-representativo” de sua aldeia.
O historiador utiliza o conceito de “circularidade cultural” de Mikhail Bakhtin
para designar a comunicação entre as culturas popular e erudita, um processo
dialético que seria responsável pela constituição da personalidade do moleiro.
A profissão de Menocchio era propícia às trocas culturais interclassistas,
tendo em vista que o contato direto com pessoas das classes superiores era
bastante comum durante a prestação de serviços do ramo. Assim, para Ginzburg,
embora a individualidade de Menocchio não negasse seu pertencimento à classe
subalterna, ela era formada pelo resultado do entrecruzamento da cultura da
popular à erudita, pois permeada por elementos contrários aos preceitos
católicos, que foram trazidos por uma tradição oral e popular, milenar, e por
livros e pensamentos da cultura erudita fortemente ligada à conjuntura recente
da época que englobava a Reforma Protestante e a invenção da imprensa.
Ainda que o objetivo de Foucault não fosse o
de explicar por que Rivière matou seus familiares, o autor recorre ao memorial
escrito pelo assassino para compreender aspectos de sua individualidade. A
suposta loucura que teria levado Rivière a cometer os crimes apresentava-se
paradoxalmente sob uma lógica elaborada. O assassino havia desenvolvido seu
plano com antecedência.³
Nele, crime e narrativa não se separavam, sequer tinham uma sucessão
cronológica definida, podiam tanto ser provas de sua racionalidade como de sua
desrazão. Foucault diz que os contemporâneos aceitaram com facilidade o jogo
que Rivière armou para ser num único gesto duplamente autor, do crime e da narrativa
(2007, p. 212).
Mais do que isto, não parece a esmo a
existência de uma coincidência entre a personalidade do assassino e a
contingência da irrupção do acontecimento na história – que Foucault quer
mostrar ao relatar as múltiplas interpretações dos saberes sobre a realidade ou
as tentativas de capturar a realidade através dos mecanismos de saber-poder. O
interesse e o encanto do filósofo questionador da episteme moderna sobre as ações de um indivíduo que desconjunta os
saberes jurídicos e médicos e coloca seus discursos em relação antagônica, não
são menos informativos do que os de um historiador egresso do Partido Comunista
que escolhe contar a história de vida de um integrante das classes populares
que desafia uma instituição autoritária e conservadora por considerar que a
opressão social brotava dela (cf. GINZBURG, 1987, p. 57). Apesar de se
utilizarem de diferentes maneiras da individualidade dos personagens
históricos, os autores exprimem, através da escolha destes, suas subjetividades
e seus interesses acadêmicos e políticos.
A personalidade de Menocchio agride qualquer
modelo historiográfico que pretenda reduzir as pessoas aos aspectos gerais de
sua classe, ressalta o acontecimento-vida na história e exprime uma
significativa liberdade de atuação, ainda que articulada a conjunturas e
estruturas. Por outro lado, os refugos, as voltas e as descontinuidades no
memorial escrito de Rivière denunciam o caráter precário dos saberes
homogeneizantes e deterministas quando querem apreender o sujeito e a realidade.
Demonstram a atuação do acaso na história. Afinal, quem imaginaria ser possível
um camponês planejar um assassinato como uma obra de arte, contar a própria
história para se incriminar, em vez de se defender, matar a mãe para proteger o
pai, se justificando através do Velho Testamento e ainda, por fim, possuir uma
inteligência letrada?
Referências:
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010.
FOUCAULT, Michel. Os assassinatos que se
conta. In: ______ (coord.). Eu,
Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... um caso de
parricídio no século XIX. 8ª edição. Tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 2007, p. 211-221.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica e prova. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. 4ª Ed.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
Artigo publicado originalmente em:
¹ Logo
após o sumário encontramos a seguinte informação: “este dossiê foi organizado,
estudado e anotado em um trabalho coletivo realizado por: Blandine
Barret-Kriegel, Gilbert Burlet-Torvic, Robert Castel, Jeanne Favret, Alexandre
Fontana, Michel Foucault, Georgette Legée, Patrícia Moulin, Jean-Pierre Peter,
Philippe Riot, Maryvonne Saison” (FOUCAULT, 2007, não-paginado).
² Designação atribuída por Paul Veyne (2008, p. 239). Segundo o autor, Foucault é
o primeiro historiador a ser completamente positivista. O adjetivo é
justificado porque Foucault instaura um método de pesquisa que analisa as
práticas e os discursos em suas raridades, em vez de acreditar que uma palavra,
um conceito ou uma fórmula possam ser aplicados para a explicação de toda ou de
grande parte da história ainda que se usem expressões idênticas para descrever
sujeitos e realidades históricas. Quer dizer, em Foucault, o tempo, o espaço e
a dinâmica humana são tratados, ao máximo, em suas singularidades.
³ Foucault disse que, na construção do texto memorial, Rivière abandona dois
projetos iniciais de escrita e assassinato. O primeiro deveria rodear o
assassinato, no cabeçalho constaria sua participação no crime, depois, a biografia
de seu pai e sua mãe e, por fim, os motivos de seu crime; assim que este texto
estivesse pronto, o assassinato finalmente seria cometido. No segundo projeto,
o crime seria exterior ao texto. Num escrito dirigido a todos ele abordaria a
vida de seus pais e, depois, faria um escrito secreto relatando o assassinato,
então cometeria o crime. No plano realmente levado a cabo, os escritos de
Rivière apenas foram produzidos após o assassinato, pois, segundo o próprio, um
“sono fatal impediu-o de escrever”. Assim, o projeto é matar, deixar-se
prender, fazer suas declarações e depois morrer. Entretanto, ele acaba vagando
nos campos durante um mês até ser preso, depois emite declarações mentirosas e
só então escreve; e se escreve muito, deixa claro que era porque o manuscrito
já estava em sua mente. “[...] daí as palavras maldosas e inutilmente
mortíferas que aí se encontram ainda endereçadas às suas vítimas, apesar do
assassinato já ter sido cometido” (FOUCAULT, 2007, p. 213).
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