No
prefácio do livro O que resta de
Auschwitz de Giorgio Agamben, Jeane Marie Gagnebin ressalta que o
acontecimento dos campos de concentração marca, de maneira extrema, a separação
entre a política idealizada da “polis de Aristóteles” e a biopolítica
contemporânea, na qual o estado de exceção se torna regra. A lei (nomos) não é mais feita para integrar,
conviver, discutir e decidir, mas para excluir e, ainda, controlar a vida e
produzir a morte. Em O que resta de Auschwitz, Agamben
atravessa uma infinidade de questões tentando compreender ou, paradoxalmente,
escancarar a dificuldade de compreensão do nazismo. O autor busca, através dos
relatos da literatura produzida pelos sobreviventes dos campos de concentração,
traçar proposições sobre a linguagem, a política e a ética, mais do que
recortar as circunstâncias históricas relativamente clarificadas pelos
historiadores. Portanto, podemos dizer que seu livro é um trabalho filosófico-histórico,
porque, para além da constatação dos fatos, procura compreender o que ainda não
foi compreendido (ou não queremos enxergar). Respeitando a densidade da obra, tentarei
resenhar somente o primeiro capítulo d’O
que resta de Auschwitz, visando, também, estimular o interesse pela leitura
integral do livro.
Nos
livros escritos pelos sobreviventes encontram-se algumas justificativas sobre o
desejo destes em continuarem vivos após a experiência que passaram nos campos
nazistas (Lager). Dentre elas estão: o anseio de se tornarem uma
testemunha, isto é, a série de pretextos que só mostram o intuito em permanecer vivo a
qualquer preço e o desejo de vingança, de contar ao mundo tudo o que viu e
experimentou nos campos. Contudo, na dificuldade e na vergonha de justificar sua
sobrevivência alguns simplesmente se calaram após a libertação, já outros não
conseguiram parar de falar sobre o assunto. Primo Levi (um italiano-judeu
deportado para Auschwitz) é um desses últimos. Ele conta em seus livros que
toda situação era propícia para narrar o que lhe acontecera. Depois começou a
escrever sobre o assunto durante a noite. Primo Levi não queria deixar morrer a
testemunha que existia dentro de si. Podia sentir-se envergonhado por ter
sobrevivido, mas não por ter testemunhado.
No
entanto, aparece um primeiro problema no caso do testemunho. A experiência em
Auschwitz (e em outros campos) foi única, inédita, em tese, “inacreditável”.
Os próprios soldados nazistas inclusive diziam que ninguém acreditaria nas
poucas provas que, por ventura, restassem do evento, por conta do nível de
absurdo ali vivenciado. Mais do que isso, as
verdadeiras testemunhas são os que tocaram o fundo, que experimentaram do
início ao fim todo o processo de concentração e extermínio. Quer dizer, estão
mortas e por isso não podem testemunhar. Primo Levi coloca que as verdadeiras
testemunhas seriam os muçulmanos. Esse
nome era usado pelos judeus para designarem seus companheiros de concentração
que chegaram num estágio cultural altamente degradante em Auschwitz. Tanto que
perderam os “valores humanos” e a posse da linguagem, ou seja, voltaram a uma
espécie de vida nua (zoé), vida animal. Tal condição os
impede de narrar, e configura a impossibilidade do testemunho em Auschwitz, tendo
em vista que eles morreram (humanamente) antes de terem uma morte corporal.
Hurbinek, um menino que foi levado ao campo com pouco mais de um ano de idade (e
permaneceu lá até os três anos), não aprendeu a falar. O ambiente não
proporcionava tal possibilidade. O som que o garoto emitia a noite (mass-klo ou matisklo) é uma palavra que ninguém no campo sabia o que
significava (mesmo tendo várias nacionalidades e idiomas ali presentes) e
talvez seja a palavra inventada, quer dizer, o testemunho que ainda é uma
não-língua e descreve aquela situação. Disso não podemos precisar, pois
Hurbinek (nome atribuído ao garoto) morreu três dias após sua libertação pelos
soviéticos. Por essas razões, o testemunho de Levi nunca se esgota, porque não
encontra palavras suficientes para descrever o ocorrido, caminha muito mais na
direção de um testemunho sobre a impossibilidade de testemunhar.
Agamben
aponta a existência de dois termos em latim para a palavra “testemunha”. O
primeiro é testis, que é um terceiro sujeito colocado para resolver uma
situação (numa disputa, num processo) entre dois envolvidos. O segundo é superstes,
que descreve aquele que viveu algo do princípio ao fim e pode, por isso, dar
testemunho do evento ocorrido. Primo Levi é o segundo. E isso significa, por
extensão, que seu testemunho não tem a ver com o estabelecimento dos fatos
tendo em vista um processo jurídico, pois ele não é “neutro” para tal, não é um
testis.
Por isso, não é o julgamento que lhe importa, tampouco o
perdão. Ele diz que não tem autoridade para tal. Só lhe interessa o que torna
impossível o julgamento, a “zona
cinzenta” onde as vítimas se tornam carrascos, e os carrascos vítimas. “É sobretudo
a respeito disso que os sobreviventes estão de acordo: ‘vítima e carrasco são
igualmente ignóbeis; a lição dos campos é a fraternidade de abjeção’” (AGAMBEN,
2008, p. 27). Chama atenção o cuidado que Levi tem de não excluir os muçulmanos
dos seus relatos (diferentemente do que fizeram outros sobreviventes) e nem de
julgar os que participaram da execução, de não dizer que eles não eram humanos,
de não dizer que eles eram monstros e também de não aceitar que sua
sobrevivência tenha sido uma escolha divina. Essa é ética de Levi, de não
excluir ninguém e não misturá-la com o Direito.
Giorgio Agamben, filósofo italiano (1942) |
Agamben
vê que o Direito causou um problema na compreensão do nazismo porque ao emitir
um julgamento quis esvaziar a questão. Ele acredita que esse fato ocorreu por
uma confusão cultural entre categorias éticas e jurídicas, ou teológicas e
jurídicas. É necessário, portanto, a compreensão de que a questão factual não
pode ser reduzida à questão jurídica. Pois,
a finalidade da norma é produzir julgamento; este, porém não tem em vista
nem punir nem premiar, nem fazer justiça nem estabelecer a verdade. O
julgamento é em si mesmo a finalidade, ou seja, autorreferente. O julgamento é o
produto de um processo construído por provas, testemunhos e evidências
(acumulados e validados) que constituem sua própria história, sua própria
verdade; fora disso nada mais há. “Por isso [dentro do processo que tem
natureza autorreferencial] execução e transgressão, inocência e culpabilidade,
obediência e desobediência se confundem e perdem importância” (p. 28); estas
estão para além da pena emitida (ou como extensão) do/pelo julgamento.
Eichmann (1906-1962) |
O
filósofo reitera que responsabilidade e culpa são termos jurídicos e que
historicamente migraram para o terreno
da ética, gerando uma confusão sem tamanho. “O verbo latino spondeo, do qual deriva nosso termo ‘responsabilidade’,
significa ‘apresentar-se como fiador de alguém (ou de si mesmo) com relação a
algo perante alguém’. Sendo assim, na promessa de matrimônio, pronunciar a
fórmula spondeo significa para o pai
empenhar-se em oferecer ao pretendente, como mulher, a própria filha (que, por
isso era chamada sponsa) ou em
garantir uma reparação se isso não acontecesse” (p. 31). Responsabilidade não é
um gesto nobre e luminoso, nem ético, mas simplesmente o fato de poder atribuir
culpa a alguém que não saldou uma dívida jurídica. Por isso, no direito romano
não existe imputabilidade a respeito de si, somente a outrem. Sob essa
confusão, Adolf Otto Eichmann, tenente-coronel da SS (esquadrão da elite
militar no nazismo), durante o julgamento que desencadeou seu enforcamento, assumiu
sua culpa perante Deus, mas não à lei; porque lhe parecia um gesto eticamente
nobre. O suicídio de alguns soldados nazistas configura um ato similar, no qual
buscam fugir ou isentar-se da culpa jurídica. Entretanto, assumir a
responsabilidade por um ato cometido só tem sentido no âmbito jurídico, pois a
ética, como diria Spinoza é a doutrina
da vida feliz, que não conhece nem culpa, nem responsabilidade.
Todavia,
num gesto oposto ao de Nietzsche (além do bem e do mal), Levi deslocou a
ética para um lugar aquém donde estamos a pensá-la: para a zona cinzenta. Onde o sub-homem
nos interessa mais do que o além-do-homem.
Após a experiência dos campos não dá mais para entender a ética nos limites da velha
dignidade, de um caráter indefectível, de uma coerência irreparável, tampouco
tangenciada pelo nomos que rege a polis. A lei de Auschwitz era ao mesmo tempo
rígida e aleatória, os vagões que levavam os deportados abriam duas portas, uma
para os campos de trabalho, outra para as câmaras de gás. Não havia informação
e nem separação dos “melhores” neste momento. Os que ousavam entender o que
acontecia ali ou enfrentavam com coragem heroica a situação assoladora ou morriam
antes de obter respostas e resultados. Talvez daí venha o sentimento de
vergonha de Primo Levi e de outros sobreviventes que escolheram e resistiram
conviver com o lado mais cruel do humano que também estava neles – estava nessa
zona cinzenta que une os carrascos e as vítimas.
A
figura extrema da zona cinzenta é o Sonderkommando. Um grupo de judeus,
escolhidos pelos agentes da SS, encarregados da execução de seus
companheiros. “Eles deviam levar os prisioneiros nus à morte nas câmaras de gás
e manter a ordem entre os mesmos; depois arrastar para fora os cadáveres,
manchados de rosa e de verde em razão do ácido cianídrico, lavando-os com jatos
de água; verificar se nos orifícios dos corpos não estavam escondidos objetos
preciosos; arrancar os dentes de ouro dos maxilares; cortar o cabelo das mulheres
e lavá-los com cloreto de amônia; transportar depois os cadáveres até os fornos
crematórios e cuidar de sua combustão; e, finalmente, tirar as cinzas residuais
dos fornos” (AGAMBEN, 2008, p. 34). Ter organizado o Sonderkommando foi o delito mais demoníaco do nazismo, pois
embaralhou o papel das vítimas e dos algozes, mostrando o sub-humano em cada um
de nós.
Um
dos sobreviventes que participou do “Esquadrão Especial da Morte” em Auschwitz
conta que, durante uma pausa do trabalho, assistiu a uma partida de futebol
entre os soldados da SS e os membros
do Sonderkommando. Para Agambem essa
partida não foi uma pausa de humanidade em frente aos portões do inferno, mas
pelo contrário, esse momento de normalidade é o extremo horror do campo de
concentração e extermínio. Essa “partida nunca terminou, é como se continuasse
ainda, ininterruptamente. Ela é o emblema perfeito e eterno da ‘zona cinzenta’
que não conhece tempo e está em todos os
lugares’. Dela provém a angústia e a vergonha dos sobreviventes [...]. Mas
dela também provém a nossa vergonha, de nós que não conhecemos os campos e que,
mesmo assim, assistimos, não se sabe como, àquela partida que se repete em cada
partida dos nossos estádios, em cada transmissão televisiva, em cada
normalidade cotidiana. Se não conseguirmos entender aquela partida, acabar com
ela, nunca mais haverá esperança” (p. 35).
Referência:
AGAMBEN, Giorgio. A testemunha. In:______. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 25-48.