O conceito de memória é definido por Jacques Le Goff (2003,
p. 419) “como propriedade de conservar certas informações, que remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode
atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas”. O tipo de memória do maior interesse do historiador se liga necessariamente
a uma linguagem e, por isso, está voltada para o social, tendo em vista que a
linguagem é um utensílio culturalmente criado e utilizado dentro de um coletivo
(HALBWACHS, 2006). Nesse sentido, a linguagem participa do ato de lembrar-se,
pois quando queremos representar um acontecimento ou um dado do passado que não
está (obviamente) presente temos que nos reportar a um conjunto de informações que
já está armazenado em nossa memória como numa espécie de arquivo – e é
através da linguagem que reconstruímos e atribuímos sentido a tais
acontecimentos, o que significa também que a memória é uma releitura do passado.
Entretanto, o processo de “lembrar-se” não é tão
simples quanto parece. Além da memória específica,
que se refere à fixação dos comportamentos de espécies animais e que, portanto,
está ligada a mecanismos biológicos; no âmbito cultural, temos a memória étnica, que assegura a
reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas; e a artificial, que assegura, sem recurso ao instinto ou à reflexão, a
reprodução de atos mecânicos encadeados. As duas últimas estão relacionadas à
transmissão de memória através da linguagem oral, imagética ou escrita, e
colocam um problema crucial para o historiador, a possibilidade de manipulação
consciente ou inconscientemente da memória coletiva.
Para Le Goff, a partir dos anos 50, os psicólogos e
psicanalistas insistiram nas manipulações da memória individual de acordo com o
interesse, a afetividade, o desejo, a inibição e a censura. “Do mesmo modo, a
memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornar-se senhores
da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes,
dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de
manipulação da memória coletiva” (p. 422).
Através do pressuposto de que o ato de memória não é
a recordação do passado tal qual acontecera, mas uma releitura processada
através do arquivo linguístico que, por sua vez, é afetado pela mudança no
sentido das palavras e por nossos desejos, interesses, interdições individuais
e sociais no presente; e que também, está ligada a uma construção social
atravessada por manipulações, edições, apagamentos como instrumentos de luta
pelo poder político para que determinadas coisas sejam lembradas e outras não;
ou ainda pior, para que lembranças sejam artificialmente inculcadas, como os
mitos de nacionalidade e de identidade coletiva; então cabe ao pesquisador
compreender esses jogos de poder, pela disputa da memória e esquecimento, desvendando
seus mecanismos de funcionamento,
seus eixos de construção e os interesses dos atores sociais envolvidos na
batalha pela lembrança
Tom Zé (Irará - BA, 1936) |
Vou citar o exemplo de uma pesquisa que conheço
relativamente de perto para deixar mais claro como o historiador pode trabalhar
com a questão da memória. Minha amiga Aline Romano procura entender como e por
quais motivos se deu o processo de esquecimento
midiático do cantor Tom Zé em relação ao tropicalismo. O músico ficou
conhecido nacionalmente por volta de 1968 quando venceu um festival de música
organizado pela tevê Record. Sua figura foi vinculada ao tropicalismo que é
descrito no senso comum como um movimento cultural, artístico e comportamental,
eclodido numa época de forte repressão ditatorial. Considera-se que os artistas
do movimento absorviam elementos culturais estrangeiros e os misturavam aos
nacionais, o chamado antropofagismo
(digestão e regurgitação), além de trabalharem com a poesia concretista e da arte
pop.
O tropicalismo reuniu diversas áreas artísticas, a
música (de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão,
Rogério Duprat), a poesia (de Torquato Neto e Capinam), as artes plásticas (de
Hélio Oiticica), o teatro (encabeçado por José Celso), o cinema (chamado Cinema Novo de Glauber Rocha), entre
outros. Tom Zé integrou o disco Tropicália
ou Panis et Circenses que reunia os cantores já citados como pertencentes
ao movimento. Entretanto, em nível de discussão teórica da história, o
tropicalismo é questionado enquanto movimento por falta de sua coesão. Essa é a
posição de Marcos Napolitano (1998), que infere que o tropicalismo pode ocultar
um conjunto de opções nem sempre convergentes, podendo ser sinônimo de uma
série de atitudes e estéticas que nem sempre partiram das mesmas matrizes ou
visavam os mesmos objetivos. Nessa abordagem, o tropicalismo seria uma
construção tardia empreendida por historiadores e por protagonistas da
efervescência cultural do período – como Caetano Veloso que escreveu o livro Verdade
tropical e o próprio Tom Zé em Tropicalismo lenta luta.
Capa do disco "Panis et Circenses" |
Atualmente, a memória do tropicalismo se encontra
naturalizada – ou seja, é uma “verdade indiscutível”, ele simplesmente existiu
e pronto. Contudo, caso o pesquisador não queira aderir a uma vertente do
positivismo de Durkheim (1981), não se trata mais de analisar os fatos sociais
como coisas, mas entender porque eles se tornaram coisas – monumentos. Essa é a
defesa de Pollack (1989), cujo trabalho se aplica a memória coletiva, buscando
compreender os processos e atores sociais que interferiam na constituição e
formalização da mesma. Neste sentido, é importante que o historiador analise as
narrativas de jornalistas, críticos, teóricos, historiadores para verificar a
consistência das formações discursivas
que “inventaram o tropicalismo” enquanto movimento cultural e artístico.
Todavia, o foco principal do trabalho de Aline Romano
é entender porque após uma fase de popularização, durante o período que ficou
conhecido como o surgimento do tropicalismo, a música de Tom Zé foi esquecida
pela grande mídia, enquanto outros artistas, especialmente Gil e Caetano
continuaram fazendo sucesso. Durante a década de 70 e 80, Tom Zé viveu um
período de ostracismo e só foi “redescoberto” nos finais de 80 por David Byrne,
um músico inglês (ex-membro da banda Talking Heads) que lançou sua obra nos
EUA, colocando o brasileiro novamente no cenário mainstream. Quais fatores
preponderaram para que a música de Tom Zé tenha sido esquecida durante um
período? Por que, ainda hoje, ele é enxergado como um artista marginal dentro
do movimento tropicalista? Mais adiante, por que os nomes de Caetano e Gil são
lembrados quando se fala em tropicalismo e raramente aparece o de Tom Zé? Seu
processo de esquecimento está ligado às preferências e aos interesses da
chamada Indústria Cultural, que
envolve não só grandes gravadores, mas também as emissoras de rádio e tevê
brasileiras? Se sim, por quê? Sua música é politicamente mais crítica que as dos
demais ou tem baixa comercialização? Essas são algumas das problematizações que
podem ser levantas na pesquisa historiográfica.
Ricoeur (1913-2005) |
O conceito de esquecimento ligado ao apagamento de rastros em Paul Ricoeur (2008)
permite ao historiador um instrumento teórico para analisar o abuso do
esquecimento diretamente ligado ao campo das relações de poder, de interesse na
lembrança, de rememoração e da imposição de uma memória sobre as demais. Pois, “o
que lembramos com o nome de acontecimentos fundadores são essencialmente atos
violentos legitimados posteriormente por um Estado de direito precário,
legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por sua vetustez. Assim,
os mesmos acontecimentos podem significar glória para uns e humilhação para
outros” (p. 95). Sob esta perspectiva, é possível que os enunciados de Ricoeur
sejam estendidos para o estudo das narrativas que marcam o tropicalismo e seus
principais expoentes, haja vista que na narrativa existe a impossibilidade de
recuperação total da memória e, portanto, ali nela constarão os filtros de seleção
de acontecimentos e de explicações que favorecem
mais uns que outros.
Referências:
DURKHEIM, Émile. Sociologia. Org. da coletânea
José A. Rodrigues. São Paulo: Ática, 1981.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003.
NAPOLITANO, Marcos. Tropicalismo: as relíquias do
Brasil em debate. Revista Brasileira de
História. São Paulo, vol. 18, nº 35, online, 1998.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol. 02, nº 03, p. 03-15, 1989.
RICOEUR, Paul.
A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.
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