Classificar a obra de Michel Foucault de acordo com uma determinada
corrente de pensamento é uma tarefa complicada e de resultados imprecisos,
sobretudo devido à resistência do filósofo contra rótulos e
mecanismos de poder que pretendem localizar uma pessoa, uma obra, um pensamento,
de maneira homogênea, dizendo o que ele é e do que ele precisa, ou seja, falando
em seu lugar. A própria ideia de “obra” é rejeitada por Foucault, pois esta
seria uma construção disciplinar, empreendida pelas ciências humanas, que anula
ou obscurece os pontos divergentes, incongruências, diferenças e
descontinuidades que acompanham a escrita de qualquer autor. Contudo,
tentarei neste post descrever algumas tentativas de classificar a obra de
Foucault em torno de um eixo, especialmente, às correntes teóricas estruturalista e
pós-estruturalista a partir da discussão suscitada no texto de Hayden
White chamado Foucault decodificado: notas do subterrâneo, publicado
originalmente em 1973.
White coloca Foucault dentro do movimento estruturalista francês ao
lado de Claude Lévi-Strauss, na etnologia, e Jacques Lacan, na psicanálise, por
partilhar com ambos o interesse pelas estruturas
profundas da consciência humana, sendo que o estudo de tais estruturas deve
começar através da análise da linguagem. A concepção de linguagem destes
autores está baseada no estruturalismo linguístico de Ferdinand de Saussure.
Isso quer dizer que “a distinção entre a linguagem, de um lado, e o pensamento
humano e a ação, de outro, deve ser eliminada se desejarmos compreender os
fenômenos humanos como eles de fato são, vale dizer, como elementos de um
sistema de comunicação” (WHITE, 1994, p. 253).
Hayden White (EUA, 1928) |
No estruturalismo francês os fenômenos humanos são considerados, em
primeira instância, fenômenos linguísticos porque a linguagem é a
possibilidade de chegarmos até eles para desempenhar qualquer tipo de estudo. Assim,
a psicanálise de Lacan não estuda diretamente os sonhos, por exemplo, mas
primeiro a linguagem com a qual o sonho foi codificado pelo “sonhador”. É
preciso deste modo olhar para a linguagem como um sistema próprio de signos
que obedecem a regras específicas cuja característica, antes de “significar” algo (nomear e
descrever alguma coisa), deve ser compreendida em suas estruturas particulares
de funcionamento que, por sua vez, não são as mesmas da realidade à qual
pretende se direcionar. É como se ela fosse uma “realidade” a parte, mas que
sua utilização nas relações políticas tivesse a pretensão de operar uma dobra de realidades na qual o signo e o
referente (a palavra e a coisa) passariam a ser o mesmo.
Para Lévi-Strauss, no âmbito da etnologia, “não basta saber como o homem
primitivo nomeia e utiliza, de
maneiras diferentes, as várias espécies de pássaros, plantas, animais etc.;
cumpre também determinar a modalidade de relações entre o mundo humano e o
mundo não-humano em que é efetivada essa operação de nomeação e utilização”.
Pois, “os homens sempre significam algo diferente do que dizem ou fazem, e
sempre dizem ou fazem algo diferente do que significam. Esse ‘algo diferente’ é dado na suposta
relação existente entre as coisas significadas na fala ou no gesto e os signos
usados para significá-las. Essa relação, por seu turno, é a ‘estrutura profunda’
que deve ser revelada antes que se possa realizar a interpretação daquilo que o
signo quer dizer para a pessoa que o está utilizando. E essa relação, por fim,
pode ser especificada pela identificação do modo linguístico em que foi vazado
o sistema de signos” (Idem, p. 254).
Assim, no estudo de uma sociedade indígena, por exemplo, o etnólogo
estruturalista antes de descrever e interpretar o que se passa ali: os acontecimentos,
os gestos, os hábitos, os costumes e rituais, procura compreendê-los como um
sistema de comunicação que faz sentido dentro da sociedade que os pratica,
investigando os modos linguísticos
através dos quais essas práticas ganham significado. Por exemplo, a ideia de
verdade e de mentira é abolida. Não cabe julgar se existe ou não um espírito
dentro das árvores como creem algumas sociedades indígenas, mas descrever as
modalidades linguísticas da comunidade (escritas, orais, imagéticas ou
gestuais) que tornaram possível que um espírito habitasse o interior das
árvores. Apenas desta maneira – isto é, descrevendo as regras particulares de
funcionamento da realidade de uma dada comunidade – é que o pesquisador poderá
compreender as relações sociais e culturais entre as pessoas que compõe a
sociedade pesquisada.
Gilles Deleuze (de perfil), Sartre (ao fundo) e Foucault |
No geral Foucault concorda com os postulados estruturalistas. O que
torna o filósofo um pós-estruturalista
(ou até mesmo um antiestruturalista) é que ele lança a teoria estruturalista contra ela
mesma, ao dizer que ela, assim como todo o saber ocidental, não passa de uma
constituição comunitária encarcerada nos seus próprios modos de discurso. Esta não seria portanto uma “realidade mais real” que a dos indígenas, mas apenas
diferente na medida em que possui outro modelo de funcionamento. “O estruturalismo, assinala,
na opinião de Foucault, a descoberta, por parte do pensamento ocidental, das
bases linguísticas de conceitos como ‘homem’, ‘sociedade’ e ‘cultura’, a
descoberta de que esses conceitos dizem respeito, não a coisas, mas a formas
linguísticas que não tem referentes específicos na realidade” (idem). Foucault expõe a fratura completa entre as
palavras e as coisas e procura investigar como as instâncias do poder na
modernidade inauguraram as ciências humanas para que estas funcionassem como
formas de controle e de governo de tudo que pensamos, dizemos e fazemos. Então,
o autor quer entender quais as regras de funcionamento da realidade que tornaram
possível a existência da própria realidade e de nós mesmos; e por isso utiliza
o método arqueológico como uma espécie de escavação dos enunciados inscritos
nos discursos feitos no passado, que constituem o "arquivo" do que pensamos,
dizemos e fazemos, ou seja, daquilo que somos. Para o filósofo, assim como acontece com os índios, a nossa realidade não é nada além daquilo que fazemos, dizemos e pensamos ser.
Foucault quer se afastar de um pressuposto da modernidade, surgido a
partir do século 16, segundo o qual a “ordem
das coisas” seria perfeita se encontrássemos a “ordem das palavras”. Esse pensamento acreditava que a linguagem
era um instrumento de representação da realidade de valor neutro, transparente e não-histórico.
O estruturalismo deu a possibilidade de as ciências humanas (como a ciência
política, a sociologia, a economia, a psicologia, a história etc.),
fundamentadas de acordo com esse pressuposto moderno, se atentarem para a
linguagem; percebendo-a agora como uma coisa dentre todas as coisas do mundo e
não mais acima delas e as significando (a linguagem possui, portanto, uma
história, uma fabricação humana com marcas e interesses). E o
pós-estruturalismo usou o estruturalismo contra ele mesmo, para dizer que as
regras da realidade que tornaram possível a formalização de um saber disciplinar
como este, é atravessado por modelos linguísticos que não estão ligados a uma
realidade acima de qualquer ficção inventiva da nossa própria sociedade. Por
outro lado, é a partir, e não apesar, destas “invenções de realidade” que novos
objetos, saberes e palavras podem surgir. Por isso o pós-estruturalismo dá um
passo adiante ao estruturalismo, pois enquanto o último compreende a sociedade
dentro de um sistema fechado de símbolos, o que de certa maneira nega a
possibilidade (ou liberdade) das pessoas e grupos criarem novas coisas e novas
modalidades de realidade, o primeiro pretende desconstruir a colagem das
palavras com as coisas para que outras
possibilidades de mundo e de existência sejam possíveis.
Mas pode-se dizer: partindo do pressuposto básico do
pós-estruturalismo de que as palavras não são as coisas, mas constituem níveis de
realidades distintos que somente se encontram devidos a estratégias de conceitualização operadas no campo do saber-poder,
então a obra de Foucault também não significa nada além do mundo
inventado por sua própria escrita, sendo ela autorreferente (aponta para si
mesma e não para o fora). Bom, talvez isso explique porque Foucault dizia em
entrevistas que escrevia ficção (assim como os outros saberes que
ele atacava). Contudo, sua ficção tinha um valor de utilidade preciso. A
negação da “realidade” de sua “teoria” só é possível se concordarmos que ela
estava correta, fazendo dela um paradoxo (uma implosão). Em contrapartida, se
concordarmos que a obra de Foucault é uma ficção, então todos os outros saberes
também o são (uma implosão que, também explode tudo a sua volta). E me parece que
era isso que o filósofo queria. Ele queria nos libertar da opressão do que é
dito sobre nós e sobre a realidade em que vivemos. Darmos conta de que tudo não
passa de uma invenção que quer nos aprisionar, determinar nossa existência, mesmo que nossa consciência acredite
tanto nisso que seja tão insegura quanto covarde para desacreditar.
Seus livros então seriam livros-bombas, não mais seriam utilizados para
virarem um arquivo cuja função cumpre de guardar uma verdade. Não mais seriam utilizados para
continuarmos a reproduzir esta realidade que colocam pessoas dentro de hospícios
e prisões. Esses livros cumpririam uma função específica de libertação no
momento de sua leitura e depois explodiriam junto com o nome do autor que os
escreveu; para que não façamos deste mais um deus entre tantos outros aos quais devemos
prestar subserviência e reverência.
Foucault (2006, p. 266) diz o seguinte sobre o papel de sua teoria: “O
ideal não é fabricar ferramentas, mas construir bombas, porque, uma vez
utilizadas as bombas que construímos, ninguém mais poderá se servir delas. E devo
acrescentar que meu sonho, meu sonho pessoal, não é exatamente o de construir
bombas, pois não gosto de matar pessoas. Mas gostaria de escrever
livros-bombas, quer dizer, livros que sejam úteis precisamente no momento em
que alguém os escreve ou os lê. Em seguida, eles desapareceriam. Esses livros
seriam de tal forma que desapareceriam pouco depois de lidos ou utilizados. Os livros
deveriam ser espécies de bombas e nada mais. Depois da explosão, se poderia lembrar às pessoas que esses livros
produziriam um belíssimo fogo de artifício. Mais tarde, os historiadores e
outros especialistas poderiam dizer que tal ou tal livro foi tão útil quanto
uma bomba, e tão belo quanto um fogo de artifício”.
Referências:
FOUCAULT, Michel. Diálogo sobre o poder. In:______. Estratégia, poder-saber: ditos e escritos, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
WHITE, Hayden. Foucault decodificado: notas do subterrâneo. In:______. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, p. 253-284.
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