Quando uma série inicia ao som de “Sweet Dreams”,
reproduzida pela voz abissal de Marylin Manson, você já pode ter ideia do que
vem por aí. Pois assim como o nome do referido cantor, The Following é uma mistura de dois clássicos, um da beleza e outro
da loucura assassina. Mais uma série de sucesso produzida nos EUA, sua
narrativa conta a história de Joe Carrol (interpretado por James Purefoy), um
professor que dava aulas de literatura numa universidade e que se torna um
serial killer. Como se isso não bastasse, ele realiza seus crimes em referência
a obra de seu ídolo, o escritor Edgar Allan Poe (1809-1849). Ryan Hardy (por
Kevin Bacon) é o policial mocinho da parada. Depois de ser afastado da polícia
por problemas de saúde (física e psicológica), Hardy é chamado para recapturar
o assassino do “verbo encarnado”. Isso mesmo! O primeiro episódio (vou narrar
trechos) mostra Joe Carrol fugindo da penitenciária, após ter matado uma dúzia
de agentes e fugir com as roupas e o carro deles, numa cena que lembra bastante
as ações de Hannibal. Esse evento acontece alguns dias antes da execução
marcada do psicopata, que havia matado até então 14 mulheres. Hardy prendera Joe
em 2004 e agora terá que fazer novamente.
O contraste entre os dois protagonistas é um ponto forte da série. Enquanto Joe é carismático, articulado, influente, sedutor e confiante, Hardy é... digamos, o Kevin Bacon. (Brincadeira!). Na verdade o policial parece ser o oposto do assassino. Tem dificuldades de se relacionar, sofre com o álcool em excesso e com o marca-passo no coração, é solitário, azarado, traumatizado e sem amigos. Não dá nem para chamá-lo de herói. Por mais sombrio e calculista que Joe Carrol seja, a falta de luz parece estar mesmo é do outro lado. E isso faz com que o público se simpatize mais pelo vilão do que pelo mocinho. Para além desta apresentação aos leitores do TS, a seguir pretendo comentar dois elementos centrais da série. O fenômeno dos seguidores de Joe Carrol e a relação da arte com a vida na teoria humanóide.
1. Assassinatos, literatura, polícia... E você que não é
espectador da série deve estar se perguntando o que afinal o título tem a ver
com a série. É que ele se refere aos “seguidores” de Joe Carrol (tradução
possível para “the following”). O carisma do algoz é tamanho que ele consegue
atrair uma porção de fãs, tudo graças à cobertura midiática sobre seu caso e,
sobretudo, a dois livros publicados, o de Carrol, fracasso de crítica e de
público antes de sua prisão e o outro, de Ryan, escrito após a resolução do
caso (o que torna o policial um especialista nas “táticas psicopatas” de Joe
Carrol). Além disso, dentro da penitenciária o homicida usa sua sagacidade para
acessar a Internet e recrutar seguidores, inclusive, um dos guardas, killer dog (tudo isso estará apenas no
primeiro episódio, prometo não estragar as surpresas!). Na cadeia, Carrol recebe
cartas e visitas de seus seguidores cujo fanatismo vai ao ponto de tirarem suas
próprias vidas em prol da “arte”. O método de recrutamento de Carrol é bastante
verossímil. Ele se aproveita de pessoas solitárias, fragilizadas, instáveis e
carentes; correspondendo-as com carinho, atenção e encorajamento; fazendo-as
acreditar serem fortes e iluminadas. A maneira de líderes de seitas religiosas
ou de outras ordens, o ex-professor arruma uma posição/função para seus fieis,
fazendo com que então passem a se sentirem acolhidos e dêem sentido a suas
existências diante do caos da vida e do mundo.
Estas são técnicas de persuasão comuns em partidos, grupos,
corporações e igrejas. Quem conhece o carisma de um pastor evangélico ao
acolher um fiel, compreendendo seu sofrimento e tocando-lhe na ferida, sabe bem
do que é feito o veneno/remédio de Joe Carrol. Igualmente permeado por ritos e
rituais, rodeado a palavras que querem ganhar vida, a iniciação de batismo à
seita do ex-professor, ao que parece, consiste em fazer o membro cometer um
homicídio e sentir o gosto de sangue abençoado pela arte de Poe. Assim é
construído o “comum”, tal qual uma linha que separa o “eles” do “nós”. A
técnica desse recrutamento pode servir também para compreensão do contexto no
qual a obra se insere enquanto produção fílmica.
Não é de hoje que os estadunidenses possuem um interesse
desmedido por serial killer. É só
contar a quantidade de séries e filmes que envolvem esse tema. Inclusive é
possível traçar uma série das séries dos assassinos em série. Deixo para vocês
fazerem esse trabalho! O que quero destacar aqui é o raciocínio segundo o qual
liga a insegurança de uma sociedade a suas produções fílmicas. Enquanto o
teórico Fredric Jameson destaca, sobre o filme Tubarão, que esse tipo de produto cultural é composto por um fator
positivo responsável pelo consumo do público, que é a promessa de redenção
utópica sob o signo do final feliz, o filósofo Gilles Lipovetsky e o cineasta
Michael Moore salientam que este tipo de produção visa estimular ainda mais a
insegurança e o medo. O objetivo é claro. Com a população fragilizada e
insegura é possível aprovar uma centena de leis absurdas de segurança nacional.
Inclusive aquela que, mesmo sem provas factíveis, o acusado de terrorismo fica
automaticamente sob custódia. Além do mais, a insegurança alimenta a indústria
de segurança interna e externa. Tanto vendendo armas, alarmes, câmeras e cercas
elétricas, como incitando a espontânea contribuição financeira às forças
armadas. É sabido que um fator de insegurança e fragilidade tomava conta do
Estado alemão antes da eleição do partido nazista. Não à toa Hitler exaltava a
força e apresentava o destino glorioso do povo alemão. Os escolhidos! Deu-se o
encantamento, combustível para o motor daquela tragédia. Em 1964, o golpe de
Estado no Brasil usou de um método parecido. Alardearam ao máximo o perigo da
implantação forçada do comunismo no país e a repetição das atrocidades da URSS
até que a sociedade civil apoiasse a intervenção militar. Houve resistência
“comunista” em 64? Nenhuma! Onde estavam os vermelhos perigosos? Não importa. A
mentira já estava plantada. Fiquem atentos, pois, a história se repete... só
que diferente.
2. Na bibliografia ocidental é recorrente a relação entre
arte e vida ou da ética como estética. A proposta da série é explorar a obra de
Edgar Allan Poe como expoente mais extremo desta relação, a que leva a um fim
macabro. Enquanto para Nietzsche a vida se confundia com a arte e a dobradinha
Deleuze-Foucault, de inspiração nietzschiana, exaltava a vida como obra de arte
e defendia uma estética da existência, Poe compreendia a insanidade como arte e
via como possível a equivalência entre morte e beleza. Reconhecido como
inventor do conto policial, Poe é o tipo de escritor que, ao percorrer as zonas
mais obscuras da mente humana, deixa o leitor angustiado até o final. Ou até
depois. Ao menos nestes dois quesitos a série faz jus à referência do autor. Joe
Carrol, ao tomar Poe como Bíblia, comete os assassinatos sem classificá-los
como crime, para ele trata-se tão somente de arte. Mas a diferença entre a
leitura que a série faz de Poe e as concepções da tradição nietzschiana é mais
do que questão de grau. A segunda pensa a (est)ética relacionada a uma
subjetivação, é um efeito de relação de força que o indivíduo provoca em si
mesmo; diferente da moral, coletiva e coercitiva, trata-se de “um conjunto de
regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo
de existência que isso implica”, escreve Deleuze. Este processo se utiliza das
chamadas “técnicas de si” (que Foucault foi buscar nos gregos antigos) para produzir
modos de vida, estilos de existência que não são imutáveis. Tal técnica artística,
ao contrário de Poe, multiplica vidas dentro de uma única existência, enquanto
a leitura de Poe por Joe Carrol é uma arte que tem como suporte não exatamente
a si próprio, mas o corpo e a vida alheios. É no outro que é produzido o quadro
no qual o artista fúnebre desenha. A fixação pelos olhos, “as janelas da alma”
para Poe, é trabalhada na série: as vítimas geralmente têm os olhos perfurados.
No entanto, cabe mencionar que, a despeito das diferenças das concepções
filosóficas, os dois pólos de “vida/assassinato como arte” têm um ponto em
comum: o suicídio: uma ação do indivíduo sobre si mesmo.
Ainda a respeito da relação entre vida e arte, outro
paralelo possível é a questão da narrativa como uma ficção produzida pela
imaginação artística. No primeiro episódio da série, Joe Carrol “convida” Ryan
Hardy para escreverem um novo livro. Mas não é um convite para se sentarem
juntos em volta de uma mesa ou de um computador. A narrativa deste livro não
será outra coisa senão os próprios acontecimentos dos assassinatos-artísticos que
envolvem os dois personagens, herói e vilão. Isto é, não só os homicídios são
obras de arte em si mesmas, mas o conjunto serial desses, a tentativa de
resolução e captura dos criminosos fazem parte de uma trama maior. Tem-se então
a descrição do próprio formato do que é a produção fílmica de uma “série
continuada”. Ou seja, em cada capítulo narra-se uma estória da qual o público
possa no mínimo acompanhar e compreender sem necessariamente saber de tudo o
que aconteceu antes e que acontecerá depois. A evolução destes capítulos, com
nó e desenlace, produz uma história que só pode ser compreendida em “longa-duração”,
uma totalidade das partes em o todo fundamentado em princípio, meio e fim.
Conhecido pela proposta de analisar a Historiografia através
de estruturas literárias, Hayden White acredita que um mecanismo parecido com
uma produção artística é colocado a campo quando o historiador pretende contar
uma história. Partindo da não oposição entre ficção e realidade, mas de
complemento, ele acredita que a história faz a mediação entre acontecimentos
neutros ou caóticos (reais) e as estruturas de enredo previamente reconhecidas
numa dada cultura (ficção). O objetivo seria então tornar familiar aquilo que
era estranho. Ao articular acontecimentos numa totalidade formal, já conhecida,
o historiador produz sentido. Um filme recente foi mais longe. Com o título de Mais Estranho Que a Ficção, a comédia conta
a história de um homem comum que tem sua vida narrada por alguém de fora. Tudo
vai bem até que ele escuta o escritor de sua vida dizer que ele vai morrer em
breve. Então ele corre para descobrir quem é o autor e convencê-lo a lhe deixar
vivo. Para mim, o melhor da obra é propor o seguinte questionamento: se nossa
vida for um destino escrito, qual é seu gênero ficcional? Romance, tragédia,
comédia, epopéia, sátira, etc. Para White, isso vai depender do valor maior ou
menor que atribuímos a determinados eventos.
Agora que já dei tantas voltas e que usei a série como desculpa
para falar sobre história, filosofia e teoria é hora de acabar o post. A segunda temporada de The Following estréia em terras tupiniquins na próxima sexta-feira,
amanhã (31/01). Fica a indicação. Apesar de a obra deixar a desejar, por perder
a verossimilhança em algumas cenas (algo comum em filmes e séries de suspense),
creio que o enredo é interessante e válido como entretenimento para as
bucólicas tardes de domingo. Abaixo vou deixar um link para o download da
primeira temporada. Hasta luego!
Referências e
recomendações:
DELEUZE, Gilles. A vida como obra de arte. In:______. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992,
p. 122-130.
JAMESON, Fredric. Marcas do
visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
FOUCAULT, Michel. História
da sexualidade, vol. 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o
individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2005.
MOORE, Michael. Tiros em
Columbine. Estados Unidos, 2002. 1 (105 min.), DVD, son., color., documentário,
legendado.
WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário.
In:_____. Trópicos do discurso:
ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994, p. 97-116.
MAIS Estranho Que a Ficção. Direção de Marc Forster.
Produção de Lindsay Doran. Estados Unidos: Columbia Pictures, 2006. 1 (113
min.), DVD, son., color. Legendado.
The Following
(download):
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