sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Política vira religião no país em que tudo entra pela “porta dos fundos”

O fascismo é fascinante e deixa a gente ignorante fascinada ♫
Humberto Gessinger


Como dito no post anterior, Papai Noel à fogueira, fiquei de comentar sobre um recente acontecimento que alimenta a atual discussão entre “religiosos” e “ateus” nas redes sociais do Brasil. O ensaio de Lévi-Strauss sobre o suplício de Papai Noel, ocorrido em 1951 na cidade de Dijon, incentivado pelo clero católico e também apoiado, naquela ocasião, pelos “evangélicos” franceses, me levou a pensar sobre a repercussão do vídeo “Especial de Natal” do grupo humorístico Porta dos Fundos, divulgado no YouTube, em semana de véspera natalina do ano de 2013. O texto que se segue é, portanto, uma espécie de artigo de opinião sobre o espectro político que envolve o assunto em terras tupiniquins.

Não é a primeira vez que, no Brasil pós-Internet, o humor gera polêmica e divide a opinião pública. O próprio grupo Porta dos Fundos já foi objeto de debates que envolvem liberdade de expressão e respeito ao culto religioso. Depois da publicação do vídeo “Deputado”, uma alusão ao pastor Marco Feliciano, deputado federal (PSC-SP) e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, o grupo que já não era bem visto por evangélicos e simpatizantes foi respondido com um vídeo do Canal dos Crentes, intitulado “Porta da Frente”, no qual satirizam os comediantes do Porta dos Fundos associando-os às causas gays, antirreligiosas e dizendo nas entrelinhas que eles vão para o inferno. Desta vez, com o “Especial de Natal”, o grupo conseguiu desagradar tanto evangélicos como católicos. Abundam petições públicas contra o Porta dos Fundos, vídeos-resposta e ameaças de ações judiciais.

Uma consequência desse acontecimento me chamou atenção para um aparente paradoxo na esfera sócio-política. É interessante notar que determinadas personalidades, em geral intelectuais e jornalistas, autointituladas de “direita”, que antes defendiam com unhas e dentes a liberdade de expressão, agora se posicionam contra a mesma.  Isto me confirma provisoriamente pelo menos duas coisas. Primeiro que esse supernutrido binarismo político-ideológico brasileiro precisa ser usado com muita cautela e transitividade. As ideias políticas não podem ficar reduzidas a uma oposição maniqueísta entre esquerda e direita, como uma luta messiânica do bem contra o mal, que é encarnada a gosto do usuário da língua escrita ou falada.

Só para dar dois exemplos da complexidade da realidade que envolve a política pensemos o seguinte. A direita se diz herdeira tradicional das liberdades individuais e do capitalismo. Não por acaso, comediantes como Danilo Gentilli e Rafinha Bastos, ao se envolverem em polêmicas e processos judiciais, se aproximaram da direita, dizendo-se paladinos da liberdade de expressão. Agora sua classe profissional é atacada justamente pelo seguimento ao qual se identificaram. O Papa Francisco, maior autoridade da Igreja Católica, instituição tradicionalmente vinculada à direita conservadora, tem feito afirmações de que uma das prioridades atuais é reduzir a desigualdade social e conter a selvageria do capitalismo. Certos simpatizantes da direita dizem agora que o Papa é comunista e precisa ser excomungado (simplesmente porque ele pensa em justiça social). Claro que o Papa não é economista, nem político profissional, mas também não é tolo de achar que o mundo se restringe em esquerda (comunista) e direita (capitalista). Até Reinaldo Azevedo da Revista Veja, elogiado por aqueles que se vinculam ao conservadorismo, já ponderou que a crítica da Igreja ao materialismo é de longa data e não tem nada de “comunismo marxista” nisso (clique aqui para ler).

A despeito desta complexidade, existe um cem número de lunáticos que querem a qualquer custo reunir todo um conjunto incontável de posições em apenas um adversário, um inimigo contra o qual se deve lutar. Infelizmente, existem milhares de seguidores cegos desses profetas que se dizem portadores da luz, seja de quaisquer vertentes as quais se autoidentificam (“esquerda” ou “direita”). Numa era em que as informações “viajam na velocidade da luz” e que a interatividade se faz constante, penso que é chegada à hora da emancipação intelectual! Saber ouvir os outros e raciocinar por si próprio. Ninguém vai “fazer a cabeça” de alguém que já saiu da menoridade de pensamento. Mas é claro que a “maioridade” não é um estado do qual se chega e não sai mais. Pelo contrário! Não há zona de conforto. Pensar, analisar, refletir é um exercício como qualquer outro. Se o sujeito pára, atrofia.

A segunda lição que podemos safar desse debate é a falta de critério utilizada para acusar os que divergem de uma totalidade político-ideológica forjada pelo acusador. Essa falta de critério tem um fundamento. Ela é baseada numa política narcísica. Tem a ver com a ideia, não raras vezes propagada, de querer transformar a esfera pública na esfera privada, submetendo a primeira à última. Fazendo da praça pública nada mais que uma extensão de sua casa. Alguns acontecimentos recentes no Brasil ilustram isso melhor do que qualquer metáfora filosófica. Vou usar como exemplo o que convencionalmente se chama por aqui por “direita” (liberal ou conservadora). Pode-se dizer várias ofensas, discriminações e acusações contra ateus, gays, feministas, comunistas, petistas, ativistas, anarquistas, muçulmanos e outros simplesmente por estes acreditarem em seus objetos de crenças ou participarem de grupos que se identificam com ideais e práticas. Pode-se, inclusive, fazer piada de identidades ou subjetividades étnicas, sociais ou sexuais (mulheres, negros e gays ainda são alvos em voga). “Isso é liberdade expressão garantida por lei graças ao nosso maravilhoso Estado liberal!”, dizem muitos (inclusive aqueles que crêem vivermos numa ditadura comunista-lulista). Ou podem dizer: “foi só uma piada!” Mas aí quando a ofensa é feita a algo em que se identificam, a regra da liberdade de expressão muda. Agora ela não vale mais. O que passa a valer a partir daí é a liberdade de crença, de culto e, sobretudo, o crime contra sentimento religioso. Gravar um vídeo satirizando personagens bíblicos não pode, mas xingar o outro de psicopata e pedófilo está liberado. Tudo isso é muito humano e cristão, não é mesmo?

A crítica ao capitalismo é tomada da mesma forma. Descer a lenha no comunismo é muito louvável. Igualá-lo ao nazismo configura-se então numa passagem direta para o paraíso em que Ludwig von Mises é Deus e Margareth Thatcher é a versão feminina de São Pedro (ver aqui). Por outro lado, fazer críticas ao capitalismo aí já é coisa do capeta ou, noutra equivalência, é coisa de comunista. Só comunistas fazem críticas ao capitalismo, segundo o pensamento de alguns. Novamente é apresentada a “totalidade forjada” em posições que se reduzem tão somente a duas: esquerda ou direita, necessária e respectivamente, comunista ou capitalista. Lembro-me de Giorgio Agamben repetir recentemente o que Walter Benjamin já havia escrito no século passado, “o capitalismo é uma religião”. E os fiéis religiosos do capitalismo no Brasil têm mais do que nunca sacralizado tal sistema econômico. Esse mesmo que foi projeto para nos servir em vez de nós servirmos a ele. Não se trata aqui de defender o comunismo, mas, por outro lado, atacá-lo é como bater em bêbado. Ah como seria bom se o capitalismo melhorasse na medida em que atacamos o comunismo! Mas já sabemos, não resolve nada.

Voltemos à questão das esferas pública e privada. Ora, essa política baseada nas preferências particulares dos indivíduos boa coisa não pode dar. Defender um conjunto de princípios fechados em sua casa é uma coisa. Estendê-los a toda a sociedade é bem mais complicado do que parece ser. Isso pode gerar um totalitarismo pior do que qualquer Estado comunista ou fascista foi capaz impor até hoje. Claro, vai ser lindo se você, bonitão, estiver do lado de quem está no cargo de poder soberano. Se estiver junto daqueles que representam suas preferências a ponto de universalizá-las e impô-las a todos os demais (mas se esse não for o caso?). É a isso que eu chamo de política narcísica. O narcisista, como nos mostra o psicólogo americano Christopher Lasch,¹ não é simplesmente o sujeito que acha lindo ao se olhar no espelho, mas o que deseja olhar para fora, para a sociedade e se reconhecer totalmente nela, mergulhar e morrer afogado nesse mar de gente. O fato acontece porque ele não quer reconhecer ou não reconhece mais o limite em que termina o indivíduo e começa a sociedade. E isso ocorre porque ele é apaixonado demais em si e deseja que o externo seja tão somente uma extensão do seu próprio corpo, da inebriante beleza da qual ele se vê portador.

Filósofos como Immanuel Kant² e Hannah Arendt,³ que não têm a ver com o comunismo, pelo contrário, acho até que são liberais republicanos, já ponderam sobre a necessidade de construirmos uma sociedade em que a vida pública seja distinta da vida privada. Claro que acredito que a liberdade de expressão deve possuir limites acordados pela sociedade. Opinião que deixei clara num post do ano passado sobre o humor. Na ocasião até elogiei o Porta dos Fundos* por eles terem feito um vídeo que, em minha opinião, tinha colocado muita gente para refletir sobre o universo não girar em torno de seus umbigos. Obviamente isso não exclui minha opinião de que quem se sentiu ofendido ou discriminado deve reivindicar seus direitos, inclusive, no judiciário, caso ache necessário. O que quis chamar atenção aqui foi para a falta de despersonalização do critério ético, transformada em hipocrisia, que acusa o outro da mesma coisa contra a qual se revoltou. Sem a noção de alteridade fica impossível viver em uma sociedade democrática – creio que pelo menos nisso podemos concordar. Penso, por isso, que uma política aberta, plural e federalizada, poderá ser a mais adequada para que as preferências pessoais, divergentes e até conflitantes, possam existir sem serem doenças para o convívio social. A regra ética segundo a qual diz para não fazer com o outro aquilo que não queremos que façam conosco, parece-me ainda bastante válida.      

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¹ O livro de Lasch se chama A cultura do narcisismo.
² Indico duas obras de Kant para o tema: O que é o esclarecimento? (clique aqui para baixar‎) e A metafísica dos costumes (clique aqui para baixar).
³ De Hannah Arendt eu indico a obra A condição humana (clique aqui para baixar).
* Para finalizar essa chuva de referência, recomendo o vídeo em que Marília Gabriela entrevista dois membros do Porta dos Fundos (gravado em agosto de 2013). Eles explicam entre outras coisas que não pretendem fazer vítimas como no humor baseado no preconceito contra minorias. (clique aqui para assistir).

2 comentários:

  1. http://www.youtube.com/watch?v=uVyKY_qgd54

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  2. Assisti agora o video sobre o natal, atendendo as orações e foi deus que me deu, acho que a critica moralista que as pessoas dão são da parte emocional, aquela historia da carapuça que serviu e sempre vejo as pessoas fazendo as propagandas erroneamente, não enaltece a capacidade que Deus deu para conquistar algo mas parece que foi dado por dar, orações que pede que uma determinada pessoa fique com ela, destruindo os planos dela ou de quem depende por parte desta e no video central que faz uma satira que é tratado as relações de hoje em dia como levar uma moça de carater duvidoso e de favor de conhecidos para conseguir algo que esbarra numa dificuldade, e igual a south park, tem o lado péssimo mas desse lado deve aprender algo pra valer a pena

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