Publicado em 2008, o livro O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo
– o governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira, escrito
pelo historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Fico, é
uma importante referência da historiografia sobre o passado recente no Brasil,
especialmente, o golpe de Estado ocorrido em 1º de abril de 1964. Hoje,
exatamente 50 anos depois deste evento, descrevo abaixo um resumo do segundo
capítulo, intitulado “João Goulart e a ‘Operação Brother Sam’”.
João Goulart experimenta uma posição rara, de esquecimento,
se comparado aos líderes da história nacional. Até mesmo os presidentes
militares possuem a memória mais cultuada do que ele. Foi Ministro do Trabalho
no governo Vargas durante oito meses (entre 1953-54). E desde então diziam que
ele era incompetente para administrar. Deixava o trabalho principal na mão de
auxiliares para fazer diplomacia e política. Coisa que fazia como poucos.
Inclusive, o fato de ele conversar de igual para igual com líderes sindicais
era olhado com desconfiança pelos demais políticos devido ao excesso de
informalidade. Vice-presidente eleito em 1960, viu o maior cargo executivo cair
em seu colo após a estranha renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961. Neste
momento estava fora do Brasil e os ministros militares não o queriam na
presidência de maneira alguma. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos
Deputados, foi o interino de 25 de agosto a 07 de setembro, dia em que João
Goulart (o Jango) escolheu tomar posse. No entanto, antes da posse, muito em
função da ligação de Goulart com a esquerda trabalhista, houve uma manobra
política que adotara o parlamentarismo no Brasil. Jango passou a combater este
e a defender a volta do presidencialismo, o que se efetivou após um plebiscito
em janeiro de 1963. Apesar do medo que a elite tinha de Jango, suas propostas
para reformas de base só aconteceram em 15 de março de 64.
Da direita ou da esquerda, abundam críticas e
responsabilizações a Jango pelo golpe. Certamente ele conduziu uma péssima
administração em relação aos militares. Foi mal assessorado pelo General Assis
Brasil, chefe do Gabinete Militar, que era demasiado otimista e autor de uma
política equivocada de nomeações. Isto porque em vez de promover os mais
capacitados, promovia os aparentemente mais leais ou simpatizantes do
presidente. Goulart preocupou-se apenas com os comandos dos exércitos do Rio de
Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul, acreditando que estes seriam
suficientes contra quaisquer ameaças. Mesmo assim, no dia do golpe ele viu seu
compadre, General Amauri Kruel, comandante do II Exército (São Paulo), aderir
aos revoltosos e o abandonar. De todo modo, evitando a tese da inevitabilidade do
golpe, Carlos Fico aponta que Jango poderia ter bombardeado as tropas de Mourão
que marchavam de Juiz de Fora em direção ao Rio ou, então, se aliado a Brizola,
governador do RS, para iniciar uma resistência a partir do sul do país. Poderia
ele ter sido morto ou exilado, caso fosse mal sucedido, mas, sem dúvidas, ao
menos sua memória hoje seria outra.
A despeito das críticas, Jango possuía excelente índice de
popularidade e introduziu temas na política que nem mesmo os militares
conseguiram apagar depois: reforma agrária, habitação popular, analfabetismo,
reforma universitária, etc. Talvez o problema maior tenha sido o de (num
contexto de Guerra Fria e anticomunismo) apresentar propostas de conquistas
populares demasiadamente amplas e que representavam uma radicalização da
democracia aos olhos da elite. Além disso, qualquer sinal de negociação ou
simpatia pelo bloco comunista era visto com maus olhos pelo outro pólo,
encabeçado pelos Estados Unidos. Por isso desde o início o governo de Goulart
sofreu com a desestabilização promovida pela política internacional de John
Kennedy que, além de Jango, era também contra Fidel Castro (Cuba) e Cheddi
Jagan (Guiana Inglesa). Carlos Fico tem o cuidado, aqui, de distinguir a
desestabilização do governo (organizada e financiada por setores civis) e a
conspiração para o golpe (desorganizada até pouco antes da véspera do evento).
Isto porque a desestabilização, embora tenha se tornado complementar a
conspiração, não necessariamente almejava o golpe desde o início. Seu objetivo
principal era enfraquecer o presidente para as futuras eleições de 1965; das
quais, Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil, esperava que Juscelino
Kubitschek saísse vencedor.
Dentro deste projeto, os EUA gastaram 5 milhões de dólares
na campanha parlamentar de outubro de 1962, apoiando políticos pró-EUA e contra
Goulart. A partir disso a embaixada americana tornou-se um ator da política
interna brasileira. Após as eleições, que não foram muito favoráveis à oposição
de Goulart, aportou no país um grupo de representantes norte-americanos para
realizar uma missão chefiada pelo investidor William Draper. Além de reuniões
com autoridades e lideranças empresariais, esta fez uma avaliação completa do
Brasil que, desde então, marcou a intensificação da pressão sobre o governo. Meses
depois, Robert Kennedy (irmão do presidente J. Kennedy e Ministro da Justiça)
veio pessoalmente ao Brasil “cobrar o saneamento financeiro do país e a
demissão de auxiliares esquerdistas” de Goulart (2008, p. 78). Mas não só era
irregular o financiamento de eleições parlamentares, como também outras
medidas. Outro exemplo foi o direcionamento de recursos para governos estaduais
identificados como “ilhas de sanidade”, isto é, favoráveis ao governo estadunidense.
Isso evitava que o dinheiro da “Aliança para o Progresso” fosse para as mãos do
governo federal e pudesse ser encaminhado para estados que tinham lideranças de
esquerda, como o Pernambuco (de Miguel Arraes) e o Rio Grande do Sul (de Leonel
Brizola).
Pouco antes do golpe de 64, a USIS (uma das agências do
governo norte-americano que atuavam no Brasil) expediu relatório afirmando a
necessidade de reformar a “Aliança para o Progresso” e revelar a verdadeira
face do comunismo. Foram gastos 523 mil dólares com rádio, TV e imprensa,
unidades móveis de exibição de filme e outras atividades de propaganda; 490 mil
em publicações de livros, 400 mil em concessões para centros culturais e de
ensino de língua e, aproximadamente, 1 milhão em recursos do programa de intercâmbio.
A USIS também criou um serviço especial para atender ao governo. Haviam sido
gastos até 1963, 6 mil com livros traduzidos para militares em cooperação com a
Comissão Mista Militar Brasil-EUA. Em 1964 foram 15 mil. Havia também milhares
de exibições de filmes de propaganda política em clubes, quartéis, bases,
escolas e navios. E também o financiamento de visita aos Estados Unidos para
políticos influentes. Por exemplo, os jovens deputados Mario Covas e José
Sarney foram beneficiados em 1963. O mesmo programa abrangia jornalistas,
editores, críticos, professores e estudantes universitários. Todas estas ações
faziam parte do projeto de angariar simpatizantes americanistas, mas Fico
explica que não dá para tomar todas as veiculações culturais como “doutrinação
ideológica”, exceto as que eram exclusivas aos espaços militares. De todo modo,
nada pode levar a concluir que esta fora eficiente, pois não levaria em conta
todo o processo de assimilação e apropriação das pessoas.
Carlos Fico |
Mais do que isso, Fico aponta que a estratégia retórica do
texto é comum a esta espécie de documento, que consiste em fazer ver que ele é
aberto quando na verdade trata-se de um ponto de vista estabelecido. Isso se
revela quando seus autores elencam alternativas muito improváveis, como a
intervenção soviética no Brasil. Esquematicamente estes são os desenhos dos
cenários possíveis: 1) revolta de extrema esquerda contra o governo de Goulart
com apoio de pequeno contingente das Forças Armadas; 2) resistência organizada,
aberta, de forças democráticas de bom tamanho, com considerável apoio militar,
contra uma tentativa de Goulart obter o poder autoritário por meio de
fechamento do Congresso ou outra ação antidemocrática ou inconstitucional; 3)
“golpe militar que implantasse uma liderança nacional ‘mais efetiva’ motivado
por um descontentamento acumulado com o ‘caos’ econômico e político não por um
episódio específico”; 4) “tomada gradual do poder por ultranacionalistas de
extrema esquerda, com ou sem a participação de Goulart, acompanhada de uma
‘neutralização ou fracionamento’ das Forças Armadas” (FICO, 2008, p. 89-90). Prontamente
a primeira era descartada, a segunda e terceira eram muito semelhantes, só
mudando o motivo. “Os autores [do documento] aproveitam a definição do segundo
cenário para introduzir a tese verdadeiramente defendida por Gordon, segundo a
qual Goulart implantaria uma ditadura do tipo peronista e, depois, acabaria
dominado pelos comunistas em função dos acordos que seria obrigado a fazer com
a extrema esquerda. Dado o absurdo do primeiro e do quarto cenário e a
similitude entre o segundo e o terceiro, Gordon, na verdade, não oferecia
alternativas ao seu governo, apenas descrevia sua única avaliação, aquela que
seria efetivamente considerada [...]” (FICO, 2008, p. 90).
Quanto às linhas de ação referentes a cada cenário possível,
pouca coisa foi dita no texto sobre o primeiro e quarto cenários. As segunda e
terceira linhas de ação eram as realmente consideráveis e seguem aquilo que
aconteceu três meses depois, no momento do golpe de Estado. Caso houvesse
resistência dos legalistas contra os revoltosos, o plano sugeria a criação de
um governo alternativo (golpista) que tomasse uma parte do país e que, contra o
outro governo, clamasse por legitimidade diante à comunidade internacional. Fico
afirma, neste sentido, que não há surpresa quanto ao posicionamento dos EUA, mas
é surpreendente a coincidência entre as diretrizes do plano e a ação dos
conspiradores durante o golpe. Parece até que tinham lido o documento! E esta é
uma hipótese do historiador, sobretudo porque as recomendações de criar um
governo alternativo não fariam sentido se não fossem elas mesmas destinadas a
leitores não-americanos. Em acordo com esta hipótese, a nomeação de Afonso
Arinos como secretário de Governo, pelo governador Magalhães Pinto (Ministro
das Relações Exteriores de Quadros e do governo parlamentarista), dois dias
antes do golpe, tinha provavelmente o intuito de que este pudesse reconhecer no
futuro o “estado de beligerância”, caso uma guerra civil fosse desencadeada, e,
assim, garantindo a legitimidade internacional do governo golpista.
Kennedy e Gordon |
Além da Operação Brother
Sam, o “plano de contingência” norte-americano estabelecia, portanto,
linhas de ações que foram levadas a cabo três meses depois. Isto é, o controle
militar temporário, a posse do Presidente da Câmara, e depois a eleição de outro
presidente. A intervenção armada só era cogitada caso houvesse intervenção
soviética ou cubana. Num telegrama enviado ao Departamento de Estado, em 28 de
março de 1964, Gordon reafirmou que Goulart pretendia gozar de plenos poderes
instalando uma ditadura de tipo peronista com ajuda do Partido Comunista
Brasileiro e outros braços da “esquerda revolucionária”. E pedia inclusive um submarino
secreto, mas foi um pedido considerado estranho pelos agentes norte-americanos,
porque o veículo tinha uma capacidade pequena para o transporte de armas. No
fim das contas, a Operação Brother Sam
“envolveu um porta-aviões, um porta-helicópteros, um posto de comando
aerotransportado, seis contratorpedeiros (dois equipados com mísseis
teleguiados) carregados com cerca de 100 toneladas de armas (inclusive um tipo
de gás lacrimogêneo para controle de multidões chamado CS Agent) e quatro
navios-petroleiros que traziam combustível para o caso de um eventual boicote
do abastecimento pelas forças legalistas. [...]. Concretamente, não havia a
previsão de desembarque de tropas no Brasil: no dia 30, talvez preocupado com
algum exagero de Gordon, o secretário de Estado, Dean Rusk, escreveu ao
embaixador sobre os preparativos para o golpe, afirmando que o apoio às forças
anti-Goulart não seria ‘trabalho para um punhado de fuzileiros navais’, já que
o Brasil era um país continental, com mais de 75 milhões de pessoas” (FICO,
2008, p. 98).
Ainda no dia 1º de abril, o General Castelo Branco, futuro
presidente, contatou ao embaixador Lincoln Gordon dizendo que não era mais
necessário o apoio logístico. No dia 03, os secretários de Estado (McNamara e
Rusk) decidiram que a força-tarefa poderia voltar. No fundo, a tal operação
pareceu um irracionalismo de Gordon. Apesar do apoio dos EUA ao golpe e de sua
disposição em intervir militarmente caso fosse necessário, sua “participação”
foi dispensável.
Pitacos:
Além de possuir uma narrativa atraente e clara, o trabalho
de Carlos Fico é cuidadosamente documentado. O historiador se preocupa em
informar ao seu leitor quando se trata de uma hipótese, de uma versão
consensual na bibliografia ou de um argumento construído com apoio das fontes
primárias para a formação de uma prova técnica. Um exercício que consiste,
certamente, em fazer uso da honestidade intelectual que contrasta com o atual
período de tantos negacionismos e abusos (ou estupros?) da memória política do
Brasil. Aliás, a memória sobre o golpe e sobre o período que o sucedeu tem sido
objeto de disputa desde a primeira linha traçada sobre o evento. O próprio
termo “golpe” foi abolido nos documentos norte-americanos depois de certo
período, embora ele conste nos relatórios dos próprios diplomatas que estiveram
envolvidos ou vivenciaram o acontecimento. O mesmo ocorreu com a referência ao
dia 1º de abril, que por cair no dia da mentira no Brasil, foi deslocada para
31 de março para que não virasse piada pronta. Mas não adiantou muito. Até
porque a piada pronta se prontifica quando alguns representantes políticos atuais
chamam o golpe de “Revolução Democrática de 1964”.
Fazendo isso estes só deixam claro qual é a noção de democracia que defendem. Guarde
o nome deles.
Seguindo a cartilha da “história mestre da vida”, é
importante lembrar para não repetir os mesmos erros do passado, mas mais importante
ainda é conhecer e compreender os eventos que ocorreram para agir no presente e
no futuro. Digo isto porque tenho visto valores antidemocráticos serem tratados
com incentivo ou normalidade costumeira. A recente “guerrificação de Estado”
dentro das favelas é um exemplo disso. Medidas jurídicas bastante similares a
contextos de exceção democrática têm sido efetuadas com justificativas
parecidas a dos governantes militares: “Pra frente, Brasil! Salve a Seleção!” Entendo
que o futebol sempre foi uma paixão nacional e não há nada de mal nisso. Mas é
preciso questionar se a mídia está passando as informações adequadas para
termos uma compreensão crítica do que acontece no país. Como sabemos, sua
atuação foi decisiva e determinante no apoio ao golpe e na manutenção da
ditadura [clique].
É preciso ficar de vigília! Sem falar, é claro, do espaço político ocupado por
sujeitos que defendem a volta da ditadura ou uma nova intervenção militar. Não
vejo sentido algum em defender a liberdade de expressão de alguém que pretende
instaurar um regime que destrói qualquer liberdade de expressão. A democracia
só pode existir se nela existirem pessoas democráticas. Convidar uma fascista
para brincar de democracia pode ser o primeiro passo para que a brincadeira
toda acabe.
Referência:
FICO, Carlos. O
grande irmão: da Operação Brother Sam
aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar
brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
Vídeo-entrevista com Carlos Fico do dia 29/03/2014 na Globo
News: clique!
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