Publicarei aqui o
trabalho produzido ao término da disciplina História e Memória, lecionada pela
professora Jacy Seixas, pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFU, em
2013. A proposta apresentada por Seixas consistia em que os alunos dos cursos
de mestrado e doutorado escrevessem um trabalho sobre autores ou discussões
realizadas durante a disciplina. Sendo assim, escrevi “um trabalho sobre os
trabalhos de Seixas” relativos à temática da memória. Na avaliação, pude
discutir com a própria autora as possíveis falhas de interpretação (agora já
sanadas) e apontamentos que fiz a seu trabalho. (Segredo: um livro de Jacy, com
seus artigos sobre memória compilados e atualizados, está por vir.) Dividirei o
trabalho aqui em dois posts.
***
1. A recente pesquisa da professora e historiadora brasileira Jacy Seixas
cumpre com a tentativa de realizar um exercício intelectual extremamente
importante ao ofício de historiar: a reflexão teórica sobre seu próprio
trabalho. Visto por muitos profissionais da disciplina histórica como um papel
que deve ser ocupado por filósofos, ainda tem se compreendido a função de pensar,
analisar e problematizar as pesquisas e as narrativas historiográficas como, no
máximo, secundária ao trabalho do historiador. Tal pensamento colocado em
prática pode acarretar que o historiador fique refém dos próprios procedimentos
e, no limite extremo, recuse o diálogo com outros campos do saber.
Tendo como baliza
os contatos entre a história e demais áreas do saber, sobretudo sociologia,
filosofia e literatura, o trabalho de Seixas busca compreender a construção da memória histórica através dos diálogos
(das práticas e dos discursos) a partir e contra os quais este conceito foi
formulado e, assim, refletir sobre suas características, aferindo seus limites
e propondo a incorporação de novos velhos aspectos. Em interlocução com a
expressão “vergonha da memória”, formulada por Vidal-Naquet para descrever a
abnegação dos historiadores à reflexão sobre a memória, a autora constata que: “A
temática da memória converteu-se, nas duas últimas décadas, em uma espécie de
moda entre os historiadores ocidentais”. Porém, a despeito disso, “muito se
operacionaliza a memória e pouquíssimo se teoriza sobre ela; afinal, qual o
estatuto da memória especificamente histórica...
[?]” (SEIXAS, 2000, p. 76; 77).
O texto aqui
presente objetiva compreender e descrever os pontos principais do percurso
intelectual inscrito nos trabalhos produzidos por Jacy Seixas[1]
sobre a relação entre memória e história, focando especialmente na maneira como
é apreendido e problematizado o conceito de memória. Posteriormente à análise, pretende-se
levantar breves indagações com o fim de abrir uma discussão acerca dos limites
e possibilidades da proposta conceitual de memória, apresentada pela autora,
para os estudos históricos.
2. Intentando construir uma genealogia da memória “historiográfica”,
Seixas (2000) retorna aos escritos dos gregos antigos. Neles, a autora
descortina uma inflexão, uma virada da compreensão que marca o nascimento de um
determinado tipo de memória, ou um estatuto que se apossa e se hegemoniza sobre
a memória, categorizando-a sob uma certa natureza e excluindo outras características
que ela possuía anteriormente. Acompanhemos!
Em Hesíodo, por
volta do século 6 a.C., a memória não detém ainda uma ligação necessária com a
verdade, ela era mítica, podendo ser verdadeira ou falsa. As chamadas
categorias arcaicas da memória possuem vetores plurais, há, por exemplo, a
memória-ação e a memória-afetiva. A memória e seu par, o esquecimento[2]
(ainda não denegado), quando voltados à ação remetem a “uma dimensão coletiva
das atividades humanas (ou divinas), articulando passado, presente e futuro” (SEIXAS,
2000, p. 80); abarcando um conteúdo ético, este tipo de memória visa prescrever
comportamentos, sentimentos e atitudes. Já a memória-afetiva reporta-se às
emoções inscritas em todo ato de memória, isto porque o “lembrar” nunca vem
totalmente isolado, mas traz a sensação ou sentimento da experiência já vivida.
Atenção: veremos mais adiante que são, sobretudo, esses dois aspectos ou
estatutos da memória, ou seja, ação e afeto, que serão reatualizados por Seixas
através da interlocução com pensadores modernos. Por enquanto cabe colocar que,
em detrimento destes dois estatutos da memória, um outro reinará por toda a
tradição filosófica ocidental. Qual é este?
A partir da
chamada Época Clássica na Grécia antiga, sobretudo nos escritos de Píndaro, a
memória passará a vincular-se estreitamente à verdade, privilegiando, então, a
dimensão da memória-conhecimento. Com
efeito, se até aquele momento o esquecimento não era uma divindade negativa ou
funesta, agora ele será estigmatizado e marginalizado como aquilo que é o
oposto da memória cognitiva (idem, p. 81), como aquilo contra o qual se luta
para a memória-conhecimento perseverar. Doravante, a noção de história grega
segue o mesmo caminho, aparta-se da acepção mítica para reter-se à memória como
conhecimento do passado. Nasce um tipo de história para “salvar a memória dos
acontecimentos memoráveis”, portanto, inaugura-se uma disputa incessante contra
o esquecimento dos “fatos importantes”. Esta é uma prática historiográfica que
encontramos em Tucídides, por exemplo. Ainda que Tucídides tenha consideráveis
desconfianças sobre a veracidade da memória, “inicia-se aqui a longa tradição
que colocará o esquecimento ao lado da loucura e da perda de si; e a memória,
ao lado da sabedoria, da reflexão, do conhecimento e da verdade” (SEIXAS, 2000,
p. 83). Tradição esta que percorrera desde filósofos antigos, como Aristóteles,
para o qual lembrar é reencontrar algo de forma voluntária através do esforço
do intelecto, até filósofos do medievo, como Santo Agostinho, para o qual
lembrar é a condição de toda inteligibilidade. Mas se há diversos pensadores ao
longo de milênios que corroboram o reinado da memória-conhecimento, é mesmo a
partir, em específico, de um autor/ator da modernidade que a historiografia
encontrará, de acordo com Seixas, seu lócus
discursivo instituidor: o sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945; foto acima).
Segundo Seixas
(2001a), a historiografia contemporânea da memória sugou no solo fértil das
obras de Halbwachs os líquidos epistêmicos que nutrem as diversas concepções
que se enraizaram na escrita da história. Pode-se aqui apresentar brevemente
algumas delas: a oposição entre memória e história – que, operacionalmente,
submete a primeira aos procedimentos teóricos e metodológicos da segunda; a
exclusão da imaginação e da afetividade na pesquisa/narrativa histórica,
destinando ambas ao campo da ficção e do irreal; o entendimento de que a
memória é uma reconstrução do passado e jamais uma erupção deste; e o conceito
de “quadros sociais” do presente, que passa a ser intrínseco à memória,
principalmente para compreendê-la em sua relação com a sociedade – fundamental
à noção de memória social.
Interessado nas
questões e projetos da classe operária do começo do século 20 e seguindo nítida
inspiração de seu ex-professor Émile Durkheim, Maurice Halbwachs constrói
reflexões teóricas que atam memória e sociedade (idem, p. 95). Esta tarefa é
desenvolvida a partir de um diálogo que o sociólogo estabelece com pensadores de
outros campos do saber, isto é, contra os postulados dos mesmos. Seus
interlocutores contemporâneos são Freud, Bergson e Proust, respectivamente
figuras intelectuais da psicologia, filosofia e literatura do início do século
passado. Estes dois últimos autores serão os principais eixos discursivos a
partir dos quais Seixas problematizará as noções arraigadas da memória na
história. Mas antes vejamos as proposições que Seixas destaca de Halbwachs no
debate contra seus interlocutores.
A noção de
memória social e coletiva é, por exemplo, definida a partir de uma oposição aos
sonhos – um dos objetos de pesquisa de Freud – e de uma assimilação ao conceito
de “quadros sociais da memória”. Em relação à memória dos sonhos, seu conteúdo
(a imaginação e os sentimentos), sua linguagem (o fragmentário e o efêmero),
seu tempo (a descontinuidade) e seu sujeito (o indivíduo) são negados nas
operações intelectuais de Halbwachs por conta de suas inconsistências sociais,
faltando-lhes o encadeamento dos fatos reais (SEIXAS, 2001a, p. 99). Para o
sociólogo, os sonhos não têm uma realidade; ao contrário da memória que, por
outro lado, necessita de uma materialidade através da qual os ganchos da
lembrança se lançam e se apóiam, ou seja, em conexões com os quadros sociais que
estão ausentes ou diluídos nos sonhos, conforme Halbwachs.
Ao postular que a
memória vem do exterior, do social, o sociólogo deixa claro o privilégio que dá
ao sujeito coletivo em detrimento do sujeito individual (este caro a Bergson).
Além disso, o autor não aceita que uma memória possa reviver o passado, e
tampouco que ela seja uma erupção do passado desencadeada por um tipo de reação
sensível no presente (como Proust faz aparecer em suas imagens literárias e
Bergson coloca no ponto inicial de sua reflexão em Matéria e memória). Mais do que isso, para o sociólogo, a memória
vem sempre do presente ancorada no que designa como “quadros sociais”; o
desaparecimento ou a transformação destes quadros leva ao fenômeno do
esquecimento – ausência de memória. Enquanto a memória é uma faculdade racional
e social, a imaginação é individual, afetiva e fictícia, pois não se liga aos
quadros sociais. Há aqui todo um investimento na memória-conhecimento. Ainda
assim, a memória-afetiva não é apagada, porém a afetividade surge no momento mesmo
de memória, no encontro entre o individual e o coletivo (idem, p. 103). É ela
que, pelo afeto, colore com uma cor do presente a lembrança de um acontecimento
do passado que não necessariamente continha a mesma cor. Quer dizer, para
Halbwachs não vivemos novamente o passado ao lembrá-lo, como apontam
determinados depoimentos de sobreviventes de experiências traumáticas,[3]
mas sim é criada pelo presente uma espécie de ilusão de que os revivemos.
Halbwachs insiste no fato de que não é possível lembrar os “afetos”
experimentados no passado: assim podemos lembrar com alegria ou indiferença o
trauma outrora vivido. Para Proust é aqui que se situa o “nó” da questão
existencial: a memória voluntária é sim capaz de operar essa depuração, no
entanto, a memória involuntária pode irromper e “trazer” o afeto experimentado,
mesmo que à revelia de nossa vontade consciente.
Jacy Seixas |
Neste sentido,
Seixas diagnostica dois “efeitos” advindos da apropriação da memória pela
história: 1º) a operacionalidade e a produtividade da memória; 2ª) a
vulnerabilidade teórica da memória. Nas palavras da autora, o primeiro fenômeno
seria:
“Responsável pelo resgate de experiências marginais ou historicamente traumáticas, localizadas fora das fronteiras ou na periferia da história oficial ou dominante. Responsável, igualmente, por um debate historiográfico que teve como desdobramento o aparecimento de novas noções, como as de “memórias subterrâneas”, “lembranças dissidentes”, “lembranças proibidas”, “memórias enquadradas”, “memórias silenciadas”, mas não esquecidas, e outras que buscam dar conta da complexidade dos fenômenos contemporâneos da memória” (SEIXAS, 2001b, p. 43).
Sobre o segundo
efeito, ocorre que ao coincidir ou opor radicalmente memória e história:
“[...] não se discutem finalmente os mecanismos de produção e reprodução da memória, seja ela coletiva ou histórica. Apenas se designam algumas de suas características, definidas em relação ao próprio paradigma histórico, apresentado em toda sua positividade e voracidade. Tudo se passa como se a memória só existisse teoricamente sob os refletores da própria história, postura que não resiste a uma observação mais atenta e descentrada” (SEIXAS, 2001b, p. 43).
Ao contatar estes
limites na teoria da memória em que a historiografia se apóia, Seixas proporá a
incorporação da dimensão da memória que é permeada pela afetividade e
sensibilidade, excitada numa irrupção pelo involuntário e empreendida com a
função criativa de atualizar o passado em direção ao futuro. Para tal, a
historiadora se apoiará em trabalhos da filosofia e da literatura; notadamente
em Bachelard, Nietzsche, Bergson e Proust, com ênfase para os dois últimos.
Referências:
LEVI, Primo. A memória da ofensa. In:______. Os afogados e os sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990,
p. 09-16.
SEIXAS, Jacy.
Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória histórica. História: Questões & Debates,
Curitiba, n. 32, p. 75-95, jan./jun., 2000.
SEIXAS, Jacy.
Halbwachs e a memória-reconstrução do passado: memória coletiva e história. História, São Paulo, n. 20, p. 93-108,
2001a.
SEIXAS, Jacy.
Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In:
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória
e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas-SP:
Editora da Unicamp, 2001b, p. 37-59.
SEIXAS, Jacy.
Tênues fronteiras de memórias e esquecimentos: a imagem do brasileiro
jecamacunaímico. In: GUTIÉRREZ, Horácio; NAXARA, Márcia; LOPES, Maria Aparecida
(orgs.). Fronteiras: paisagens,
personagens, identidades. Franca: UNESP; São Paulo: Olho D’Água, 2003, p.
161-183.
[1] Especificamente voltadas às reflexões
teóricas, há um total de pelo menos cinco artigos, publicados como capítulos de
livros organizados ou como artigos em revistas acadêmicas, que compõem esse
conjunto de reflexões, datados entre os anos 2000 a 2003.
[2] Cabe mencionar, aqui, que para Seixas falar em memória é falar em esquecimento. Há uma articulação entre eles e até um complemento entre um e outro, um equilíbrio e um conflito, nunca síntese, oposição binária ou exclusão de um pelo outro. Assim, a autora escreve: “[...] entre esquecimento e memória tece-se uma cumplicidade que as tornam dimensões impensáveis uma sem a outra; são inseparáveis em sua tensa relação” (SEIXAS, 2000, p. 89). O interesse da autora sobre o esquecimento levou-a a investigar sobre uma possível gestão do esquecimento na história dentro da cultura política brasileira, porém devido à notável dificuldade em captar ou apreender o esquecimento, Seixas estende as mesmas proposições teóricas da memória ao esquecimento, lendo-o a contrapelo (cf. SEIXAS, 2003).
[3] Jean Amery, um dos ex-prisioneiros dos campos de concentração nazista, afirma, por exemplo, que “quem foi torturado permanece torturado”. Primo Levi, outro sobrevivente, parece compartilhar da mesma opinião de Amery: “[...] a recordação de um trauma, sofrido ou infligido, é também traumática, porque evocá-la dói ou pelo menos perturba; quem foi ferido tende a cancelar a recordação para não renovar a dor; [...]” (cf. LEVI, 1990, p. 10).
[2] Cabe mencionar, aqui, que para Seixas falar em memória é falar em esquecimento. Há uma articulação entre eles e até um complemento entre um e outro, um equilíbrio e um conflito, nunca síntese, oposição binária ou exclusão de um pelo outro. Assim, a autora escreve: “[...] entre esquecimento e memória tece-se uma cumplicidade que as tornam dimensões impensáveis uma sem a outra; são inseparáveis em sua tensa relação” (SEIXAS, 2000, p. 89). O interesse da autora sobre o esquecimento levou-a a investigar sobre uma possível gestão do esquecimento na história dentro da cultura política brasileira, porém devido à notável dificuldade em captar ou apreender o esquecimento, Seixas estende as mesmas proposições teóricas da memória ao esquecimento, lendo-o a contrapelo (cf. SEIXAS, 2003).
[3] Jean Amery, um dos ex-prisioneiros dos campos de concentração nazista, afirma, por exemplo, que “quem foi torturado permanece torturado”. Primo Levi, outro sobrevivente, parece compartilhar da mesma opinião de Amery: “[...] a recordação de um trauma, sofrido ou infligido, é também traumática, porque evocá-la dói ou pelo menos perturba; quem foi ferido tende a cancelar a recordação para não renovar a dor; [...]” (cf. LEVI, 1990, p. 10).
Nenhum comentário:
Postar um comentário