quarta-feira, 7 de maio de 2014

A memória em Seixas (parte II): propostas para além da historiografia do silêncio

3. Como foi sinalizada em uma passagem da primeira parte deste escrito [clique aqui!], Seixas traz de volta a teoria filosófica que comportava as chamadas “categorias arcaicas da memória”, além do estatuto conhecimento, também o afeto e a ação. Entretanto, em vez de um transplante da tradição pré-clássica grega, a autora atualizará a compreensão sobre a natureza desta memória em direção aos estudos históricos. Na busca por uma construção reflexiva transdisciplinar (SEIXAS, 2002b, p. 45), essa atualização passará diretamente pelo filósofo Henri Bergson (1859-1941) e pelo literato Marcel Proust (1871-1922).

Segundo Seixas (2002a, p. 64), em Bergson a memória serve mais para agir do que para conhecer. A memória se desdobra na medida em que há alguma ação interessada ou para cumprir uma utilidade no presente. Essa escolha de uma lembrança em vez de outra é, portanto, consciente. A memória pode contrair num só lance uma pluralidade de momentos. Entretanto, quem faz a atualização da memória no presente é a percepção. E, apesar da consciência atuar nesse processo, não é a inteligência que ativa a memória mais profunda, porém a intuição – característica que demonstra uma “retomada” da sensibilidade nos planos centrais da memória. Em vez de usar a inteligência por meio da memória-cognitiva, o sujeito usa a intuição como a faculdade capaz de perceber o tempo real: a duração. Aqui já é possível notar a disparidade entre a noção de tempo da filosofia bergsoniana e a da historiografia que, na maioria dos casos, trabalha com a concepção de tempo cronológico. É este mesmo tipo de tempo que Bergson diz ser superficial, ligado a um processo mecânico e habitual de memória: a memória dos fatos sucessivos.

A compreensão de Seixas (2002a, p. 67-68) sobre Proust revela muitos pontos de encontro entre ele e Bergson, mas também algumas dessemelhanças. A memória para Proust é ritualística e mítica. Ela se mostra e se esconde de acordo com uma dinâmica particular. Supõe uma renúncia intelectual por parte do sujeito da lembrança e depende do acaso para acontecer. No lugar das “percepções conscientes” de Bergson, são as sensações, as impressões e os afetos, através do contato com os objetos, que desencadeiam os atos de memória. E ela nunca vem em bloco, como pressupõe Bergson, mas como um caleidoscópio. Opostamente à historiografia, sobretudo às noções de memória historicizada e de lugares de memória externos, em Proust, a memória é subjetiva, involuntária, múltipla, indeterminada, intermitente e descontínua. Em vez de preencher lacunas no presente ou construir continuidades, a memória proustiana, se assim é possível chamá-la, supõe as lacunas e se constrói com elas; não soma, nem subtrai, mas condensa (idem, p. 72). Ainda que a totalidade do passado esteja perdida, assim como a memória integral, o ato involuntário de lembrar-se faz retornar as tonalidades emocionais e a carga afetiva de outrora. Por outro lado, a memória que é voluntária perde toda a dimensão descontínua da vida e das ações dos homens (idem, p. 74). Mais do que isto, cabe salientar que, tanto em Bergson como em Proust, a memória profunda realiza uma síntese do passado no presente, atualizando-o, lançando-se ao futuro; ela é mais projetiva do que retrospectiva.

Após apresentar as contribuições dos pensadores, Seixas afirma que a dimensão afetiva, imaginária, involuntária e descontínua da memória tem sido excluída pelas historiografias contemporâneas (sobretudo para garantir sua cientificidade – proposta que para a autora tinha um significado em determinada circunstância histórica, mas agora não mais) e, por isso, propõe a incorporação destes aspectos nos estudos históricos. No caso da historiografia empenhada com os projetos sociais do futuro, é possível partir da compreensão de que o lugar antes ocupado pelas utopias concede vez a determinado tipo de memória que, interpolando as linhas de temporalidade, atualiza o presente através do passado e projeta luzes no futuro (SEIXAS, 2001b, p. 55). Outra proposta é o rompimento com algumas dicotomias: entre a memória irrupção ou reconstrução do passado, trata-se de compreendê-la como ambas, substituindo o “ou” pelo “e”; o mesmo se aplica aos pares emoção/consciência, fora/dentro, real/irreal, coletivo/individual; e, por último, pensar o afetivo como parte da estrutura consciente, não mais como estágio primário (SEIXAS, 2001a, p. 105-6).

4. Faz-se necessário neste ponto destacar a importância do trabalho de Seixas sobre a teoria da memória e sua contribuição para atualização do conceito nos estudos históricos. Sobretudo porque a historiografia preocupada, ainda hoje, em garantir uma legitimidade objetiva e científica acabou por excluir de suas pesquisas aspectos, categorias e noções que considerava abstratas, subjetivas, sensíveis. É possível entender este empreendimento do saber como uma recusa àquilo que as operações intelectuais modernas não conseguiam captar, pois eram (e continuam sendo) de difícil apreensão pelos dispositivos científicos usuais. No entanto, cabe aqui fazer algumas considerações para principiar uma discussão sobre a proposta teórica da memória que Seixas endereça a historiografia, examinando seus limites e possibilidades.

A proposta de Seixas não se trata da substituição de um determinado estatuto da memória por outro, ou seja, a questão não é excluir as memórias cognitiva, racional, voluntária, contínua, reconstrutora, objetiva e coletiva para dar lugar às memórias afetiva, ética, imaginária, involuntária, descontínua, eruptiva, subjetiva e individual, tampouco estabelecer uma hierarquia de importância entre elas (o que parece ocorrer tanto em Halbwachs, como em Bergson e Proust – cada qual atribuindo maior importância a um estatuto ou outro); porém, agregar às pesquisas e reflexões históricas todas estas dimensões da memória, sem necessariamente construir uma síntese ou uma harmonia entre elas, todavia compreendendo seus conflitos e antagonismos, suas alianças e agenciamentos no presente. Preocupando-se, sobretudo, em considerar as descontinuidades e temporalidades nem sempre coincidentes entre memória e história.

Entretanto, diante disso, a questão que se apresenta é a seguinte: é possível incorporar/integrar os aspectos sensíveis, imaginários e descontínuos da memória dentro de uma pesquisa/narrativa que se utiliza de procedimentos notadamente racionais, críticos, estéreis, contínuos e generalizantes, pois herdados de uma tradição filosófica vazada nestes pressupostos? Tal questionamento pode parecer embebido no mesmo racionalismo que pensa o mundo por “dicotomias” (do qual a autora pretende escapar), porém se descartássemos as “dicotomias” em absoluto, poderíamos afirmar, por exemplo, que as operações da epistemologia moderna não excluíram os sentimentos, as descontinuidades e os irracionalismos, mas apenas não os explicitaram, tendo em vista que estes já estavam integrados dentro da tradição filosófica. E, neste caso, nada precisaríamos escrever para atentar os pesquisadores sobre a necessidade de incorporar algo já incorporado.

Portanto, será que os dispositivos e os enunciados dos quais dispomos nos campos do saber humano (científicos) dão conta de abarcar aspectos que, constantemente, escapam da linguagem escrita e até da oralidade?

Através desta linha de raciocínio, poderíamos enxergar inclusive um ponto de encontro entre Nora, Bergson e Proust. Quando Nora nota a ausência da memória (falta de “quadros sociais” sólidos) e sua “infeliz” substituição pela “memória historicizada”, não parece estar em desacordo do que Bergson e Proust afirmam a respeito do que seria uma memória mais profunda, aquela impossível de ser percorrida por uma linguagem materializada, pois intuitiva ou afetiva e casual. Sendo assim, a memória escrita, pensada e refletida pelo historiador não só não teria o mesmo estatuto do tipo de memória que é seu objeto de pesquisa, mas também inviabilizaria a compreensão de seu leitor, forçado a atravessar uma ponte de gelo entre dois pontos no diâmetro de um vulcão em iminente erupção. Isto, de certa maneira, nos forçaria a uma historiografia do silêncio – como aquela que por não conseguir falar sobre o esquecimento se cala sobre ele.

Visualizo pelo menos duas maneiras de escapar deste embaraço. A primeira foi formulada por Giorgio Agamben (2008) em seu trabalho histórico-filosófico sobre Auschwitz. Na impossibilidade do testemunho integral da catástrofe dos campos de concentração e extermínio nazista, devido a vários motivos – o assassinato na câmara de gás daqueles que viveram a experiência até o fundo/limite; a perda da linguagem, e da vida cultural (bios), por aqueles que experimentaram o mais alto estado de degradação nos campos; ou a ineficácia da linguagem falada e escrita ao narrar o trauma ali vivido, fato que ficou evidenciado no desapontamento de Primo Levi, um dos sobreviventes, quando após sair dos Lager tentava em vão dar conta de transmitir por meio de diálogos, depoimentos, relatos e livros o que viu, ouviu e sentiu em Auschwitz –, Agambem diz que o testemunho deste acontecimento só pode ser dado através de um “narrar o inenarrável”, melhor dizendo, de falar sobre aquilo que é impossível de se falar, testemunhando sobre a impossibilidade de se testemunhar (2008, p. 43). As mesmas considerações poderiam ser estendidas a uma teoria da memória na escrita da história contemporânea. Na impossibilidade de incorporar as afetividades e descontinuidades numa narrativa científica/acadêmica, o trabalho desta seria, neste ponto, relatar sobre a impossibilidade do relato da memória-afetiva, afastando o esquecimento e a inefabilidade como fez Agamben.

Outra forma seria transformar a escrita da história em uma prática artístico-literária de produzir conhecimento, porém, para isso seria preciso recusar os antigos procedimentos científicos e seus dispositivos de enredamento do texto. Bergson e Proust parecem ter notado essa incapacidade da ciência e da inteligência em exprimir determinados tipos de linguagens e temporalidades. Isso fica evidenciado quando Bergson faz ressalvas a respeito da consciência racionalizante (inclusa a linguagem escrita; incapaz, para ele, de apreender o movimento, a duração), quando Proust utiliza a arte literária para romper com os códigos de linguagem normativos e quando ambos insurgem contra a superficialidade da “memória intelectual”.

No entanto, é preciso salientar que a eficiência desta atividade dependerá de uma espécie de literatura, ligada a um determinado regime de arte, o qual Jacques Rancière nomeia de estético.[1] Esta literatura, nascida na modernidade, em vez de se adequar à tradição das belas-letras/artes (retórica, poética e gramática), é o que desnorteia os saberes disciplinares destas, não coincidindo com o regime ético ou poético da arte (RANCIÈRE, 1995, p. 26). Isto porque os dois últimos regimes possuem regras, convenções, hierarquizações e procedimentos padronizados e universalistas que serviram como fundamentos para muitas ciências e disciplinas modernas, incluindo a historiografia.[2] Esta forma de literatura, a estética, tem um tipo específico de linguagem porque ela joga contra a própria normatividade que é intrínseca à linguagem, contra suas convenções e seus limites. Trata-se de uma experiência e uma prática autônoma da linguagem. Assim, a literatura do regime estético constrói um mundo e uma realidade própria que provoca no leitor uma transformação na maneira de sentir/ver/enunciar as palavras, as coisas e os seres. Ao desestabilizar a linha que divide o sonho da realidade, ela apresenta a inexistência da fronteira onde termina o real e começa a ficção, e proporciona a compreensão de que o primeiro se institui com elementos do último (RANCIÈRE, 1995, p. 27).

Sob esse viés, é possível construir um projeto audacioso para a escrita da história, e que talvez possa dar conta da mediação inteligível da memória em todos os seus aspectos. O leitor seria então jogado nesse mundo onde sua intuição afetiva estaria aguçada pelas sensações imagéticas despertadas pela arte literário-histórica. Neste ponto, as linhas que dividem as disciplinas poderiam ser suprimidas, a “transdisciplinaridade” seria não mais um modo de trânsito entre disciplinas consolidadas e definidas, mas uma estratégia de desconstrução das gavetas que separam as maneiras de compreender a realidade.

No caminho que leva a este modo de trabalho capaz de inscrever a multiplicidade das memórias na escrita da história – e diferentemente de muitos historiadores que tratam a literatura como campo menor ou usam-na como documento semi-morto –, um primeiro passo parece ter sido dado por Seixas, na medida em que a autora trabalha com a literatura de Proust sem neutralizar o potencial de seus enunciados, pensando-os tão reais quanto os filosóficos e históricos.

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.
RANCIÈRE, Jacques. A literatura impensável. In:______. Políticas da escrita. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 25-45.
SEIXAS, Jacy. Halbwachs e a memória-reconstrução do passado: memória coletiva e história. História, São Paulo, n. 20, p. 93-108, 2001a.
SEIXAS, Jacy. Os campos (in)elásticos da memória: reflexões sobre a memória histórica. In: SEIXAS, Jacy; BRESCIANI, Maria Stella; BREPOHL, Marion (Orgs.). Razão e paixão na política. Brasília: Editora da UnB, 2002a, p. 59-77.
SEIXAS, Jacy. Os tempos da memória: (des)continuidade e projeção. Uma reflexão (in)atual para a história? Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 24, p. 43-64, jun., 2002b.
SEIXAS, Jacy. Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2001b, p. 37-59.
WHITE, Hayden. Meta-história: A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995.

[1] O regime estético da arte “não se faz mais por uma distinção no interior das maneiras de fazer, mas pela distinção de um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte. A palavra ‘estética’ não remete a uma teoria da sensibilidade, de gosto ou do prazer dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. [...] as coisas são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível. Esse sensível [...] é habitado pela potência do pensamento que se tornou estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional etc.” (RANCIÈRE, 2005, p. 32).
[2] Hayden White é um dos pensadores que afirmam que a história/historiografia é uma forma de poética (cf. WHITE, 1995).

4 comentários:

  1. Textos fantásticos - rico e esclarecedor. Parabéns! Só uma pequena errata: Bergson nasceu em 1859.

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    1. Valeu pela força, Júlio. O deslize já foi consertado. Abraços!

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  2. Salve Munhoz, belíssimo texto e uma ótima indicação para o trabalho da professora Jacy Seixas, que eu desconhecia, mas que pretendo explorar agora. Sou um doutorando da UnB também interpelado pelas disputas entre os discursos da história e da memória para narrativizar histórias de moradores do Recanto das Emas, uma cidade satélite de Brasília. No entanto, senti falta da interlocução com texto clássico A história, a memória e o esquecimento do Paul Ricoeur. Na minha pesquisa, tenho pensado essas tensões entre memória e história em matéria de disputas discursivas e regimes de verdade.
    Grande abraço

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    1. Trata-se de uma obra bastante conhecida mesmo a do Ricoeur, porém ela não havia sido ainda publicada no Brasil e, salvo engano, nem na França no período em que a Jacy Seixas produzia os trabalhos mencionados no meu post. Contudo, ela gosta e até o usava na disciplina de História e Memória da Pós aqui da UFU. É uma discussão muito densa essa da memória (como é o livro do Ricoeur também), sobretudo, se prescinde da "tradição halbwachiana" e por isso te desejo sorte nessa caminhada. Obrigado pelo comentário. Abraços!

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