3. Como foi sinalizada em uma passagem da primeira parte deste escrito [clique aqui!],
Seixas traz de volta a teoria filosófica que comportava as chamadas “categorias
arcaicas da memória”, além do estatuto conhecimento, também o afeto e a ação. Entretanto, em vez de um transplante da tradição pré-clássica
grega, a autora atualizará a compreensão sobre a natureza desta memória em
direção aos estudos históricos. Na busca por uma construção reflexiva
transdisciplinar (SEIXAS, 2002b, p. 45), essa atualização passará diretamente pelo
filósofo Henri Bergson (1859-1941) e pelo literato Marcel Proust (1871-1922).
Segundo Seixas
(2002a, p. 64), em Bergson a memória serve mais para agir do que para conhecer.
A memória se desdobra na medida em que há alguma ação interessada ou para
cumprir uma utilidade no presente. Essa escolha de uma lembrança em vez de
outra é, portanto, consciente. A memória pode contrair num só lance uma
pluralidade de momentos. Entretanto, quem faz a atualização da memória no
presente é a percepção. E, apesar da consciência atuar nesse processo, não é a
inteligência que ativa a memória mais profunda, porém a intuição – característica
que demonstra uma “retomada” da sensibilidade nos planos centrais da memória.
Em vez de usar a inteligência por meio da memória-cognitiva, o sujeito usa a
intuição como a faculdade capaz de perceber o tempo real: a duração. Aqui já é
possível notar a disparidade entre a noção de tempo da filosofia bergsoniana e
a da historiografia que, na maioria dos casos, trabalha com a concepção de
tempo cronológico. É este mesmo tipo de tempo que Bergson diz ser superficial,
ligado a um processo mecânico e habitual de memória: a memória dos fatos
sucessivos.
A compreensão de
Seixas (2002a, p. 67-68) sobre Proust revela muitos pontos de encontro entre
ele e Bergson, mas também algumas dessemelhanças. A memória para Proust é
ritualística e mítica. Ela se mostra e se esconde de acordo com uma dinâmica
particular. Supõe uma renúncia intelectual por parte do sujeito da lembrança e
depende do acaso para acontecer. No lugar das “percepções conscientes” de
Bergson, são as sensações, as impressões e os afetos, através do contato com os
objetos, que desencadeiam os atos de memória. E ela nunca vem em bloco, como
pressupõe Bergson, mas como um caleidoscópio. Opostamente à historiografia,
sobretudo às noções de memória historicizada e de lugares de memória externos,
em Proust, a memória é subjetiva, involuntária, múltipla, indeterminada,
intermitente e descontínua. Em vez de preencher lacunas no presente ou
construir continuidades, a memória proustiana, se assim é possível chamá-la,
supõe as lacunas e se constrói com elas; não soma, nem subtrai, mas condensa
(idem, p. 72). Ainda que a totalidade do passado esteja perdida, assim como a
memória integral, o ato involuntário de lembrar-se faz retornar as tonalidades
emocionais e a carga afetiva de outrora. Por outro lado, a memória que é voluntária
perde toda a dimensão descontínua da vida e das ações dos homens (idem, p. 74).
Mais do que isto, cabe salientar que, tanto em Bergson como em Proust, a
memória profunda realiza uma síntese do passado no presente, atualizando-o,
lançando-se ao futuro; ela é mais projetiva do que retrospectiva.
Após apresentar
as contribuições dos pensadores, Seixas afirma que a dimensão afetiva,
imaginária, involuntária e descontínua da memória tem sido excluída pelas
historiografias contemporâneas (sobretudo para garantir sua cientificidade –
proposta que para a autora tinha um significado em determinada circunstância
histórica, mas agora não mais) e, por isso, propõe a incorporação destes
aspectos nos estudos históricos. No caso da historiografia empenhada com os
projetos sociais do futuro, é possível partir da compreensão de que o lugar
antes ocupado pelas utopias concede vez a determinado tipo de memória que,
interpolando as linhas de temporalidade, atualiza o presente através do passado
e projeta luzes no futuro (SEIXAS, 2001b, p. 55). Outra proposta é o rompimento
com algumas dicotomias: entre a memória irrupção ou reconstrução do passado,
trata-se de compreendê-la como ambas, substituindo o “ou” pelo “e”; o mesmo se
aplica aos pares emoção/consciência, fora/dentro, real/irreal,
coletivo/individual; e, por último, pensar o afetivo como parte da estrutura
consciente, não mais como estágio primário (SEIXAS, 2001a, p. 105-6).
4. Faz-se necessário neste ponto destacar a importância do trabalho de
Seixas sobre a teoria da memória e sua contribuição para atualização do
conceito nos estudos históricos. Sobretudo porque a historiografia preocupada,
ainda hoje, em garantir uma legitimidade objetiva e científica acabou por
excluir de suas pesquisas aspectos, categorias e noções que considerava
abstratas, subjetivas, sensíveis. É possível entender este empreendimento do
saber como uma recusa àquilo que as operações intelectuais modernas não conseguiam
captar, pois eram (e continuam sendo) de difícil apreensão pelos dispositivos
científicos usuais. No entanto, cabe aqui fazer algumas considerações para
principiar uma discussão sobre a proposta teórica da memória que Seixas
endereça a historiografia, examinando seus limites e possibilidades.
A proposta de Seixas
não se trata da substituição de um determinado estatuto da memória por outro,
ou seja, a questão não é excluir as memórias cognitiva, racional, voluntária,
contínua, reconstrutora, objetiva e coletiva para dar lugar às memórias
afetiva, ética, imaginária, involuntária, descontínua, eruptiva, subjetiva e individual,
tampouco estabelecer uma hierarquia de importância entre elas (o que parece
ocorrer tanto em Halbwachs, como em Bergson e Proust – cada qual atribuindo
maior importância a um estatuto ou outro); porém, agregar às pesquisas e
reflexões históricas todas estas dimensões da memória, sem necessariamente
construir uma síntese ou uma harmonia entre elas, todavia compreendendo seus
conflitos e antagonismos, suas alianças e agenciamentos no presente. Preocupando-se,
sobretudo, em considerar as descontinuidades e temporalidades nem sempre
coincidentes entre memória e história.
Entretanto, diante
disso, a questão que se apresenta é a seguinte: é possível incorporar/integrar
os aspectos sensíveis, imaginários e descontínuos da memória dentro de uma
pesquisa/narrativa que se utiliza de procedimentos notadamente racionais,
críticos, estéreis, contínuos e generalizantes, pois herdados de uma tradição
filosófica vazada nestes pressupostos? Tal questionamento pode parecer embebido
no mesmo racionalismo que pensa o mundo por “dicotomias” (do qual a autora
pretende escapar), porém se descartássemos as “dicotomias” em absoluto,
poderíamos afirmar, por exemplo, que as operações da epistemologia moderna não
excluíram os sentimentos, as descontinuidades e os irracionalismos, mas apenas
não os explicitaram, tendo em vista que estes já estavam integrados dentro da
tradição filosófica. E, neste caso, nada precisaríamos escrever para atentar os
pesquisadores sobre a necessidade de incorporar algo já incorporado.
Portanto, será
que os dispositivos e os enunciados dos quais dispomos nos campos do saber
humano (científicos) dão conta de abarcar aspectos que, constantemente, escapam
da linguagem escrita e até da oralidade?
Através desta
linha de raciocínio, poderíamos enxergar inclusive um ponto de encontro entre
Nora, Bergson e Proust. Quando Nora nota a ausência da memória (falta de “quadros
sociais” sólidos) e sua “infeliz” substituição pela “memória historicizada”,
não parece estar em desacordo do que Bergson e Proust afirmam a respeito do que
seria uma memória mais profunda, aquela impossível de ser percorrida por uma
linguagem materializada, pois intuitiva ou afetiva e casual. Sendo assim, a
memória escrita, pensada e refletida pelo historiador não só não teria o mesmo
estatuto do tipo de memória que é seu objeto de pesquisa, mas também
inviabilizaria a compreensão de seu leitor, forçado a atravessar uma ponte de
gelo entre dois pontos no diâmetro de um vulcão em iminente erupção. Isto, de
certa maneira, nos forçaria a uma historiografia
do silêncio – como aquela que por não conseguir falar sobre o esquecimento
se cala sobre ele.
Visualizo pelo menos
duas maneiras de escapar deste embaraço. A primeira foi formulada por Giorgio
Agamben (2008) em seu trabalho histórico-filosófico sobre Auschwitz. Na
impossibilidade do testemunho integral da catástrofe dos campos de concentração
e extermínio nazista, devido a vários motivos – o assassinato na câmara de gás
daqueles que viveram a experiência até o fundo/limite; a perda da linguagem, e
da vida cultural (bios), por aqueles
que experimentaram o mais alto estado de degradação nos campos; ou a ineficácia
da linguagem falada e escrita ao narrar o trauma ali vivido, fato que ficou
evidenciado no desapontamento de Primo Levi, um dos sobreviventes, quando após
sair dos Lager tentava em vão dar
conta de transmitir por meio de diálogos, depoimentos, relatos e livros o que
viu, ouviu e sentiu em Auschwitz –, Agambem diz que o testemunho deste
acontecimento só pode ser dado através de um “narrar o inenarrável”, melhor
dizendo, de falar sobre aquilo que é impossível de se falar, testemunhando
sobre a impossibilidade de se testemunhar (2008, p. 43). As mesmas
considerações poderiam ser estendidas a uma teoria da memória na escrita da
história contemporânea. Na impossibilidade de incorporar as afetividades e
descontinuidades numa narrativa científica/acadêmica, o trabalho desta seria,
neste ponto, relatar sobre a impossibilidade do relato da memória-afetiva, afastando
o esquecimento e a inefabilidade como fez Agamben.
Outra forma seria
transformar a escrita da história em uma prática artístico-literária de
produzir conhecimento, porém, para isso seria preciso recusar os antigos
procedimentos científicos e seus dispositivos de enredamento do texto. Bergson
e Proust parecem ter notado essa incapacidade da ciência e da inteligência em
exprimir determinados tipos de linguagens e temporalidades. Isso fica
evidenciado quando Bergson faz ressalvas a respeito da consciência
racionalizante (inclusa a linguagem escrita; incapaz, para ele, de apreender o
movimento, a duração), quando Proust utiliza a arte literária para romper com
os códigos de linguagem normativos e quando ambos insurgem contra a
superficialidade da “memória intelectual”.
No entanto, é
preciso salientar que a eficiência desta atividade dependerá de uma espécie de
literatura, ligada a um determinado regime de arte, o qual Jacques Rancière
nomeia de estético.[1] Esta literatura, nascida
na modernidade, em vez de se adequar à tradição das belas-letras/artes (retórica,
poética e gramática), é o que desnorteia os saberes disciplinares destas, não coincidindo
com o regime ético ou poético da arte (RANCIÈRE, 1995, p. 26). Isto porque os
dois últimos regimes possuem regras, convenções, hierarquizações e
procedimentos padronizados e universalistas que serviram como fundamentos para
muitas ciências e disciplinas modernas, incluindo a historiografia.[2]
Esta forma de literatura, a estética, tem um tipo específico de linguagem
porque ela joga contra a própria normatividade que é intrínseca à linguagem,
contra suas convenções e seus limites. Trata-se de uma experiência e uma
prática autônoma da linguagem. Assim, a literatura do regime estético constrói
um mundo e uma realidade própria que provoca no leitor uma transformação na
maneira de sentir/ver/enunciar as palavras, as coisas e os seres. Ao desestabilizar
a linha que divide o sonho da realidade, ela apresenta a inexistência da
fronteira onde termina o real e começa a ficção, e proporciona a compreensão de
que o primeiro se institui com elementos do último (RANCIÈRE, 1995, p. 27).
Sob esse viés, é
possível construir um projeto audacioso para a escrita da história, e que
talvez possa dar conta da mediação inteligível da memória em todos os seus
aspectos. O leitor seria então jogado nesse mundo onde sua intuição afetiva
estaria aguçada pelas sensações imagéticas despertadas pela arte literário-histórica.
Neste ponto, as linhas que dividem as disciplinas poderiam ser suprimidas, a “transdisciplinaridade”
seria não mais um modo de trânsito entre disciplinas consolidadas e definidas,
mas uma estratégia de desconstrução das gavetas que separam as maneiras de
compreender a realidade.
No caminho que
leva a este modo de trabalho capaz de inscrever a multiplicidade das memórias
na escrita da história – e diferentemente de muitos historiadores que tratam a
literatura como campo menor ou usam-na como documento semi-morto –, um primeiro
passo parece ter sido dado por Seixas, na medida em que a autora trabalha com a
literatura de Proust sem neutralizar o potencial de seus enunciados,
pensando-os tão reais quanto os filosóficos e históricos.
Referências:
AGAMBEN, Giorgio. O que resta
de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.
RANCIÈRE,
Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora
34, 2005.
RANCIÈRE,
Jacques. A literatura impensável. In:______. Políticas da escrita. São
Paulo: Editora 34, 1995, p. 25-45.
SEIXAS, Jacy.
Halbwachs e a memória-reconstrução do passado: memória coletiva e história. História, São Paulo, n. 20, p. 93-108,
2001a.
SEIXAS, Jacy. Os
campos (in)elásticos da memória: reflexões sobre a memória histórica. In:
SEIXAS, Jacy; BRESCIANI, Maria Stella; BREPOHL, Marion (Orgs.). Razão e paixão na política. Brasília:
Editora da UnB, 2002a, p. 59-77.
SEIXAS, Jacy. Os
tempos da memória: (des)continuidade e projeção. Uma reflexão (in)atual para a
história? Projeto História: revista
do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 24, p. 43-64,
jun., 2002b.
SEIXAS, Jacy.
Percursos de memórias em terras de histórias: problemáticas atuais. In:
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Orgs.). Memória
e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas-SP:
Editora da Unicamp, 2001b, p. 37-59.
WHITE, Hayden. Meta-história:
A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995.
[1] O regime estético da
arte “não se faz mais por uma distinção no interior das maneiras de fazer, mas
pela distinção de um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte. A
palavra ‘estética’ não remete a uma teoria da sensibilidade, de gosto ou do
prazer dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico
daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. [...] as coisas
são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível. Esse
sensível [...] é habitado pela potência do pensamento que se tornou estranho a
si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos
idêntico a um pathos, intenção do inintencional etc.” (RANCIÈRE, 2005,
p. 32).
[2] Hayden White é um dos pensadores que afirmam que a história/historiografia é uma forma de poética (cf. WHITE, 1995).
[2] Hayden White é um dos pensadores que afirmam que a história/historiografia é uma forma de poética (cf. WHITE, 1995).