terça-feira, 3 de abril de 2012

Anarquismo e sua polissemia

Atualmente desenvolvo uma pesquisa acadêmica sobre a história do anarquismo, mas venho enfrentando tensos problemas que muitas vezes me impedem de avançar em outras discussões. Hoje, quero nesse post compartilhar pelo menos um desses problemas históricos: os múltiplos significados de “anarquia” e de “anarquismo”.

Desta vez não vou começar pelos anarquistas, mas pelos filósofos gregos. Com os filósofos pré-socráticos a palavra grega arkhé (dependendo da transliteração arkhê, arché ou archai) significa princípio, origem, relativa a uma determinada “entidade” sempre presente na existência de todos os seres. Heráclito, por exemplo, acreditava que a arkhé de todos os seres (orgânicos e inorgânicos) era a substância do fogo, que nunca era idêntico, mas sempre era o mesmo, se renovando em si mesmo. Entretanto, arkhé não significa apenas princípio, como sinônimo de começo, mas também quer dizer comando, como aquilo que governa. Grosso modo, pela lógica linguística (direta) podemos dizer então que a an-arkhé é a recusa do princípio natural presente em todos os seres (ou seja, a desigualdade entre todos os seres), correlativa por isso a impossibilidade de governo fundado sob a arkhé. Pois bem, mas o que disseram os anarquistas, que apareceram no século 19, não foi bem isso.

Proudhon (1840), o primeiro desses caras, confessa em seu livro que existe um princípio natural de organização da sociedade, sem necessidade de haver autoridade sobre a sociedade. A defesa de Proudhon é uma contradição em termos, pois se não existe autoridade que governa, então não existe princípio natural de ordem, pois esse já seria uma autoridade (transcendente), mesmo que seja metafísica. A anarquia aqui é, portanto, a negação da an-arkhé. Antes de Proudhon, o significado de anarquia nos círculos políticos era relativo à desordem, ao caos, à falta de princípio e ao desgoverno. Com Proudhon, a anarquia deixa de ter esse sentido pejorativo e passa a significar a ordem natural das coisas, o princípio que elas obedecem espontaneamente sem necessidade de autoridade (humana); a partir daí a “anarquia é a ordem”. Fiquem com o filósofo:

Anarquia, ausência de mestre, de soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e a sua vontade por lei nos faz olhar com o cúmulo da desordem e a expressão do caos. [...] como o homem procura a justiça na igualdade, a sociedade procura a ordem na anarquia (PROUDHON, 1975, p. 239).

Em vida, Proudhon, não foi reconhecido como anarquista, mas como mutualista. O mutualismo era uma defesa da forma de organização social que ele propôs. Uma espécie de fraternidade na troca espontânea das faculdades humanas que nos tornavam diferentes. Dizia - ele - que a igualdade ia ser atingida pela desigualdade (das aptidões e atributos), pelo comércio (no sentido de reciprocidade) entre os homens.

O anarquismo teve uma história de várias arkhés. Na cronologia tradicional, Bakunin (1968) deu o segundo passo. Através da inspiração das ideias e dos seguidores (mutualistas) de Proudhon e em contraposição às teses socialistas de Marx, consideradas autoritárias, Bakunin reuniu pela primeira vez um grupo que não tinha medo de se assumir anarquista. O problema é que algumas importantes ideias de Bakunin eram bem diferentes das de Proudhon. Se entendermos o anarquismo como sinônimo de tudo o que é revolucionário no sentido clássico, que prega a coletivização dos instrumentos de produção (as máquinas, as ferramentas, a terra, etc.), que defende a conspiração para abolir o Estado e a violência como prática política caso necessária, então esse anarquismo é o de Bakunin. Proudhon era contra todos estes postulados, ele acreditava na revolução como um progresso evolutivo sem necessidade de violência e do uso de força, pois era preciso que as pessoas quisessem abolir o Estado e transformar a sociedade. Antes de fazer era preciso querer. Pois, para ele, Tomar tudo a força representava um autoritarismo contra-revolucionário, um contrassenso, um retrocesso.

Depois de Proudhon e Bakunin vieram outros pensadores que reformaram (ou modificaram) suas ideias. Como os anarquistas comunistas Kropotkin, Reclus e Malatesta. Estes, sem dúvida, mais próximos do socialismo marxista no âmbito comum de um "fim da história" a ser alcançado. Apareceram mais correntes, que alteraram significativamente as ideias, de diferentes inspirações e lugares: o anarquismo sindicalista (Durruti-Espanha), o anarquismo cristão (seguidores de Tolstoi-Rússia), o anarquismo individualista (B. Tucker-EUA), o anarquismo primitivista (John Zerzan-EUA), o anarquismo caótico (Hakin Bey-EUA), o anarquismo anti-psiquiátrico(?) (Roberto Freire-Brasil), o anarquismo terrorista (Ravachol-França). Conta-se também que as ideias e/ou as práticas políticas de alguns pensadores e militantes fizeram com a historiografia os adotassem como anarquistas. Mesmo que o anarquismo histórico (como doutrina) ainda não tivesse tomado corpo, como é caso de Godwin, Stirner, Thoreau, Warren, até Jesus Cristo. Ou aqueles que não se reconheceram como anarquistas (já a partir da existência da doutrina), é o caso de Tolstoi, Ghandi, Foucault e outros tantos.

As mídias capitalistas e socialistas-marxista (e também nazista) ajudaram bastante na construção do imaginário social sobre o anarquismo: visto pejorativamente como atrasado, utópico ou sanguinolento. O anarquismo é ainda correntemente vinculado à desordem, à baderna, à ausência de regras, ao terrorismo e ao vandalismo. É verdade que, em alguns desses aspectos, os movimentos urbanos do século 20 tiveram uma parcela de responsabilidade por essa imagem. Sobretudo, os anarco-punks e o black bloc (imagem à esquerda). Mas é preciso dizer que os militantes "tradicionais" brasileiros condenaram determinadas atitudes e comportamentos vistos como sinais de degeneração e de estupidez. O anarquismo do início do século 20 no Brasil tinha inclusive uma moral bem rígida, era contra as festas, as bebedeiras e até as práticas desportivas; visto como desperdício de energia e de aburguesamento da vida. Em todo caso, acredito que a identificação dos anarco-punks com o anarquismo se deu mais por conta da polissemia do conceito. Eles de fato eram muito mais anárquicos que os anarquistas, se entendermos a conotação do anarquismo como “sem governantes” e “sem princípios”, o que não pode gerar nem uma ordem e nem uma desordem, mas somente "ser" uma condição.

Além das transformações históricas intrínsecas a todo conceito, as práticas discursivas de historiadores, da mídia e de militantes do movimento, como também os limiares da história do anarquismo (enquanto doutrina ou “escola de pensamento”) contribuíram significativamente para que houvesse uma polissemia ainda maior do conceito.

Conheci ótimas pessoas e fiz valiosos amigos no meio anarquista. Mas, ainda hoje, há no Brasil e no mundo uma briga fratricida entre os anarquistas, cada qual querendo justificar a maior autoridade ou fidelidade de sua filosofia e ética ao anarquismo. Discordam de quase tudo entre si e muitas vezes (talvez por isso) não reconhecem os outros grupos como anarquistas. Por trás de uma bela e atraente filosofia que acredita no homem e na construção de um mundo melhor, um cheiro insuportável de autoridade que nunca prescindiu do anarquismo paira no ar “libertário”.


Referências:

PROUDHON. O que é a propriedade? Tradução: Marília Caeiro. 2ª edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1975.

7 comentários:

  1. Caro Munhoz,

    Curioso que, logo depois do Direito à Preguiça, parti para a leitura de um livro do Élisée Reclus, publicado pela editora Hedra naquela coleção dos Estudos Libertários, chamado "Anarquia Pela Educação". Não sei se você já leu, mas trata-se de uma compilação de artigos políticos publicados pelo autor entre os anos de 1879-1891, dos quais, se vc me permitir, recomendaria para a discussão proposta neste post os intitulados "A Anarquia" e "Por que somos anarquistas?"

    Vou escrever um texto no meu blog, algo como uma resenha sobre o livro, mas pelo que vc postou, percebo já uma diferença nas propostas de Proudhon e Reclus, que é a opção pela revolução (aliás, há um texto específico sobre a revolução). Apesar disso, uma das preocupações de Reclus é não se aproximar muito da visão dos socialistas, repudiando suas ideias e métodos sempre que possível.

    Estou gostando bastante da leitura.

    Grande Abraço,

    Roger

    PS: Depois de alguns dias, finalmente coloquei uma resposta para seu comentário sobre o texto do Direito à Preguiça lá no meu blog.

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  2. olá rapaz!
    parabéns pelo blog e iniciativas.
    convido você a acessar um outro blog que criei. será mais anarquista, rs.
    abraço!

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  3. Fico feliz de ver mais um blog que trata dentre tantos temas o anarquismo, gostei do teu blog e faço filosofia e achei muita coisa interessante por aqui, seguindo com prazer ^^

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    1. Obrigado, Josi! Também achei interessante seu blog, inclusive resolvi divulgá-lo por aqui, pois tenho muitos amigos interessados na filosofia anarquista, assim como também sou. Fique a vontade para opiniar e criticar nos posts.

      Abraços.

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  4. Opa! Gostei muito do blog como diz Josi tem muita coisa boa aqui que nos faz ler e almejar querer saber mais nos levando a uma pesquisa sobre o assunto instigado pelos seus textos. Parabéns

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  5. Bom texto. Teu blog parece ser bem interessante, cara.
    Pretendo ler mais, assim que tiver tempo.
    Abraço.

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    1. Obrigado pela visita, Romeu. Mas com certeza meu blog não deve ser mais interessante que a beleza poética (e fictícia?) de Julieta, rs. Apareça sempre que puder.

      Abraços!

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