sábado, 12 de maio de 2012

A exportação do saber e a questão racial no Brasil segundo Pierre Bourdieu

Este texto pretende ser um resumo do ensaio “Sobre as artimanhas da Razão imperialista” do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Levantaremos questões que nos chamaram atenção nesse escrito para discutirmos com a amiga e historiadora Laila C. Pereira, que atualmente se “debruça” sobre o autor.

Bourdieu escreveu este ensaio em 1998, quatro anos antes de sua morte. Ele diz que o texto serve de grande utilidade para os sociólogos no mundo inteiro. Do que se trata? O autor postula sobre o perigo na adoção de categorias, questões e conceitos criados ou surgidos num local e tempo para pensar problemas específicos de um determinado contexto histórico, mas que depois são “exportados” em larga escala para outros lugares e tempos díspares. Para o sociólogo, esta desistorização arruína as particularidades de um povo e de suas experiências histórica e sociológica, totalmente distintas daquelas de onde vieram essas ferramentas do saber.

“O imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição histórica singular, tornando-os irreconhecíveis como tais. [...] inúmeros tópicos oriundos diretamente de confronto intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades americanas (EUA) impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro. Esses lugares-comuns no sentido aristotélico de noções ou de teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais não se argumenta ou, por outras palavras, esses pressupostos da discussão que permanecem indiscutidos, devem uma parte de sua força de convicção ao fato de que, circulando de colóquios universitários para livros de sucesso, de revistas semi-eruditas para relatórios de especialistas, de balanços de comissões para capas de magazines, estão presentes por toda parte ao mesmo tempo, de uma forma poderosa por esses espaços pretensamente neutros como são os organismos internacionais e os centros de estudos e assessoria para políticas públicas” (BOURDIEU, 2007, p. 17-18).

É interessante notar que o autor chama atenção àqueles que não pensam sobre o sentido ou a empiria dessas teses em diferentes lugares. Ou seja, em vez de primeiro julgarmos a validade das teses presente no debate, apenas as usamos para convencer o outro, como se elas fossem categorias neutras e irrefutáveis. O domínio (no sentido de poderio imperialista) desse saber é naturalizado e instituído por alguns fatores: (1º) A insistência midiática na criação e repetição dessas categorias. Nesse caso, as teses caem numa espécie de senso comum que faz esquecer sua origem nas realidades históricas complexas de uma sociedade forjada que se coloca como modelo e medida de todas as coisas. (2º) Palavras como “flexibilidade” e “empregabilidade” funcionam como palavras de ordem política visando aceitação da precariedade salarial como algo natural, que por sua vez, neutraliza as intenções e os interesses por trás delas. Assim como “globalização”, “mundialização”, “pós-modernismo” e “fim da história” passam a ser padrões universais para todos os lugares, retirando a carga ideológica e colonialista cultural de onde nascem esses conceitos. (3°) Fundações de filantropia e de pesquisa (sobretudo dos EUA) que financiam institutos em outros países para difundirem os saberes, as representações e as práticas (de pesquisa, de cultura e de política) inventadas no país que custeia os “empreendimentos” acadêmicos. (4°) Integração de livros de língua inglesa e o desaparecimento na distinção entre editoras comerciais e acadêmicas. Existe, atualmente, imposição de títulos, capas e até conteúdos pelas editoras preocupadas em vender mais e melhor a ideia transmitida “pelo” autor (mas será mesmo do autor?).

Bourdieu dá uma atenção especial à discussão racial no Brasil. Ele explica que não é possível adotar a mesma categoria dicotômica (branco/negro) forjada para pensar a sociedade americana, porque no caso brasileiro existem particularidades que precisam ser tratadas. A definição de raça nas Américas passa por muitas definições: Ascendência, Aparência física e Status sociocultural. Os norte-americanos são os únicos a definir raça somente à ascendência aos afro-americanos, onde filhos de uma união mista são postos sempre no grupo “negro”. No Brasil se define por um “continuum” de cor, traços físicos e posição de classe (renda e educação), portanto, engendram categorias intermediárias, que não podem ser reunidas num só grupo. Inclusive, as pesquisas mostram índices de segregação diferentes dos EUA. O problema racial no Brasil não leva necessariamente a Ostracização e a Estigmatização sem remédios.

Entretanto, as pesquisas das faculdades norte-americanas (e a colonização refletida nos estudos latino-americanos) dizem que o Brasil é um país tão racista quanto os EUA, e que por isso, os brancos brasileiros não tem nada que se “invejar” dos norte-americanos. O cientista político afro-americano Michael Hanchard, aponta que o racismo no Brasil é ainda mais perverso que no caso estadunidense, usando as mesmas categorias dicotômicas para enquadrar os brasileiros. “Em vez de considerar a constituição da ordem etnorracial brasileira em sua lógica própria, essas pesquisas (como de Hanchard) contentam-se, na maioria das vezes, em substituir na sua totalidade o mito nacional da ‘democracia racial’, pelo mito segundo o qual todas as sociedades são racistas, inclusive aquelas no seio das quais parece que, à primeira vista, as relações ‘sociais’ são menos distantes e hostis. De utensílio analítico, o conceito de racismo torna-se um simples instrumento de acusação sob o pretexto de ciência [...]” (BOURDIEU, 2007, p. 22).

O autor conta ainda sobre a vinda de pesquisadores norte-americanos para o Brasil, que incentivam líderes do movimento negro a lutarem contra as categoriais intermediárias (como no caso do “pardo”), estabelecendo a dicotomia mistificada norte-americana para explicação racial, o que parece um contrassenso, já que nos EUA, atualmente (na época do texto) luta-se para que o Estado reconheça a “etnia” mestiça. Sobre o financiamento de pesquisas o autor coloca: “A Fundação Rockefeller financia um programa sobre “Raça e etnicidade” na UFRJ, bem como o Centro de Estudos Afro-asiáticos (e sua revista Estudos Afro-asiáticos) da universidade Cândido Mendes, de maneira a favorecer o intercâmbio de pesquisadores e estudantes. Para a obtenção de seu patrocínio, a Fundação impõe como condição que as equipes de pesquisa obedeçam aos critérios de affirmative action à maneira americana, o que levanta problemas espinhosos já que, como se viu, a dicotomia branco/negro é de aplicação, no mínimo, arriscada na sociedade brasileira” (p. 25).

Parece haver uma colonização do saber acadêmico assim como houve uma colonização cultural pelas músicas e pelo cinema americano: “Do mesmo modo que os produtores da grande indústria cultural americana como o jazz ou o rap, ou as modas de vestuário e alimentares mais comuns, como o jeans, devem uma parte da sedução quase universal que exercem sobre a juventude e ao fato de que são produzidas e utilizadas por minorias dominadas, assim também os tópicos da nova vulgata mundial tiram, sem dúvida, uma boa parte de sua eficácia simbólica do fato de que, utilizados por especialistas de disciplinas percebidas como marginais e subversivas, tais como os cultural studies, os minority studies, os gay studies ou os women studies, eles assumem, por exemplo, aos olhos dos escritos das antigas colônias europeias, a aparência de mensagens de libertação” (p.29).
 
Confesso que Bourdieu levanta questões que eu ainda preciso refletir, pois estão contra muitas coisas que acredito. Mas a maneira sofisticada que o autor argumenta usando exemplos práticos e problematizando assuntos polêmicos tem meu respeito, sobretudo, porque põe o dedo na ferida dos brasileiros sobre o “orgulho” de ser colonizado sem pensar muito a respeito das consequências disso. A questão da colonialidade do saber, com vistas ao poder, já havia sido levantada pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano (2006), quando disse que o subdesenvolvimento na América Latina se devia não por incompetência, mas por uma interrupção na experiência histórica própria quando os europeus exportaram objetivos culturais eurocêntricos como o progresso, o desenvolvimento, a democracia, a identidade, a modernidade e a unidade, chamados pelo autor de fantasmas da América Latina. Neste sentido, o ensaio de Bourdieu pode ser entendido como um aviso para que os brasileiros tenham cautela na adoção de proposições que venham de fora e que os impossibilite de andar com as próprias pernas.

Referências:

BOURDIEU, P. Sobre as artimanhas da Razão imperialista. In:______. Escritos de educação. Organizadores Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 17-32.
QUIJANO, A. Os fantasmas da América Latina. In: NOVAES, A. (org). Oito visões da América Latina. São Paulo: Senac, 2006, p. 49-85.

Um comentário:

  1. Muito bom o seu texto! Obrigada! Me ajudou a entender melhor o pensamento de Bourdieu, mas assim como você ainda preciso refletir muito sobre o autor. :)

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