quinta-feira, 14 de junho de 2012

“Todo mundo odeia o White”: ficção na narrativa histórica

É possível construirmos um conhecimento sobre o passado nos baseando em resíduos que chegam até nós no presente? Registros, documentos, monumentos e vestígios podem demonstrar que existiram pessoas, acontecimentos, instituições e processos reais no passado? Estas evidências podem nos fornecer informações relativamente precisas? Dispondo de métodos científicos, conforme cada cultura e época, podemos transformar essas informações em conhecimento útil para nossas vidas? O teórico literário Hayden White responderia “sim” para todas estas questões. Então porque muitos historiadores lhes fazem críticas tão pesadas – algumas inclusive desonestas – e rejeitam sua obra como um material importante para o estudo da história? Embora eu tenha algumas ressalvas às considerações de White, acredito que esse ataque à obra do teórico se deu por um fator específico: objeção à necessidade de pensar diferente. Sair do ritual burocrático e reprodutivista é uma emergência não apenas na história, mas na vida. Hayden White (e o giro-linguístico) ao colocar um desafio para o ofício do historiador, também deu a estes profissionais uma ótima oportunidade de mudança. Mas que desafio oportuno é esse? Nas linhas a seguir percorro algumas das questões apresentadas no texto: Teoria literária e escrita da história, publicado pela revista Estudos Históricos em 1994.

A discussão sobre a presença (intrínseca) da ficção na história não significa a impossibilidade de sabermos verdades sobre o passado. Essa questão é dirigida a um produto específico do saber histórico: o texto historiográfico. Mais precisamente: a narrativa que compõe o discurso histórico. Este é o objeto de pesquisa de Hayden White. O autor não questiona a tangibilidade da realidade histórica, mas os instrumentos que mediam esse conhecimento. Tudo porque a história (que não é o passado desenrolado, vivenciado e experimentado) só pode ser lida; mas, sobretudo, antes disso, precisa ser escrita. Portanto, a re-experiência com a história é dependente do modo diferenciado com que lidamos com a linguagem.

A problemática de White se desenrola justamente sobre o uso que o historiador faz da linguagem como mediação para o conhecimento histórico e para a representação do passado. A preocupação crucial de sua obra é entender a forma, crendo que ela é indissociável e interfere de modo cabal no conteúdo. “A linguagem nunca é um conjunto de formas vazias esperando para serem preenchidas com um conteúdo ‘factual’ e conceitual ou para serem conectadas a referentes [apontadores para ‘coisas’ fora do texto, segundo Saussure (2006)] pré-existentes no mundo, mas está ela própria no mundo como uma ‘coisa’ entre outras e já é carregada de conteúdos figurativos, tropológicos e genéricos antes de ser atualizada numa enunciação qualquer” (WHITE, 1994, p. 27). Portanto, a linguagem é também um produto cultural específico de cada sociedade numa dada época; permite “liberdades controladas” e possui regras próprias que são diferentes dos acontecimentos desencadeados na realidade. Podemos entender a colocação de White como um puxão de orelha nos historiadores (modernos) que patinaram em seu próprio terreno: ao se preocuparem em entender a historicidade de seus “objetos de pesquisa” esqueceram, até certo ponto, de problematizarem a própria historicidade dos meios com os quais transmitiam suas pesquisas; acreditando que a linguagem era um meio natural e transparente tanto para a representação do passado, como para expressão de seus pensamentos sobre os eventos narrados.

White faz uma diferenciação entre evento passado e evento histórico (ou evento e fato). Tudo o que aconteceu é do âmbito dos eventos passados, mas apenas o que é resgatado é histórico. No livro Meta-história, ele chama esses eventos do passado de crônica, que seria o que o historiador reúne e atribui mais ou menos a um acontecimento, um pertencimento, uma época e etc. Entretanto, a conectividade entre esses eventos seria concebida através de procedimentos discursivos, como a estória e o enredamento (processo de enredo), que são as construções ordenadas – causa e efeito – ou relacionamentos de outro tipo entre eles mediados por uma trama ou gênero (estória romanesca, comédia, tragédia e sátira). Acontece que, apesar de lidar com o conhecimento histórico, a informação sobre os eventos históricos em si não é histórica, segundo White. São ferramentas e modos de construção textual meta-históricos, similar as estruturas linguísticas utilizadas numa ficção literária.

Mais do que isto, esse discurso histórico não produz informação nova sobre o passado. Qualquer informação nova ou velha é recolhida no trabalho prévio do historiador quando busca a verdade resgatando informações esquecidas ou suprimidas (neste primeiro processo um ofício parecido com o do jornalista e do detetive). Portanto, tais informações são uma pré-condição para a existência do discurso histórico. Só que, o mais interessante, segundo White, é que os direcionamentos dos referentes para o histórico são exercidos pela narrativa. É ela que “encanta” o texto criando a noção de histórico, como uma máquina de girar fotogramas (princípio do cinema) “imita” o movimento. Neste processo, a função da narratividade mistura discurso científico e literário, literal e figurativo, sendo impossível dissociá-los. É verdade que alguns historiadores acreditavam (e ainda acreditam) na capacidade de distinguir o discurso factual e conceitual do linguístico e literário, mas, para White, isso foi uma tentativa de afirmar o caráter de verdade de seu ofício, assegurando-o em elementos das ciências exatas.

White não diz que história e literatura são as mesmas coisas. “O discurso literário pode diferir do discurso histórico devido a seus referentes básicos, concebidos mais como eventos ‘imaginários’ do que ‘reais’, mas os dois tipos de discurso são mais parecidos do que diferentes em virtude do fato de que ambos operam a linguagem de tal maneira que qualquer distinção clara entre sua forma discursiva e seu conteúdo interpretativo permanece impossível” (1994, p. 28). Essa aproximação se dá na medida em que existe mais interpretação do que descrição e explicação no discurso histórico. E ainda porque ao explicar um evento do passado, o discurso histórico recorre a informações geralmente contidas no próprio texto; ocorrendo uma tentativa de convencimento auto-referencial. Durante a narrativa, o historiador usa mais elementos trópicos (referentes à própria linguagem enredada) do que lógicos que, por sua vez, causam não apenas verossimilhança, mas também prazer ao leitor (o que está longe de ser um problema).

O encadeamento dos eventos na estrutura da obra – começo, meio e fim; desfechos e viradas; nó e desfecho – são operações da escolha e da perspectiva do historiador e interferem sobremaneira na composição representativa do passado. É o historiador que escolhe o enredamento dos eventos. “Existiria uma estória intrinsecamente trágica ou depende da perspectiva?”, questiona White. Enredando, os tropos são operados na história. “Isso acontece porque as histórias não são vividas, não existe uma estória ‘real’. As estórias são contadas ou escritas, não encontradas. E quanto à noção de uma estória ‘verdadeira’, ela é virtualmente uma contradição em termos. Todas as histórias são ficções. O que significa, é claro, que elas só podem ser ‘verdadeiras’ num sentido metafórico e no sentido em que uma figura de linguagem pode ser verdadeira” (WHITE, 1994, p. 32).

É preciso, portanto, que se atente para a diferenciação entre realidade passada e discurso historiográfico. Os eventos do passado não são fatos históricos a não ser que sejam feitos, por isso a necessidade de não confundir fatos com eventos. Os eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição linguística. Segundo White, “acontece uma pane na consciência histórica quando se esquece que a ‘história’, no sentido tanto de eventos, como de relatório de eventos, não acontece apenas, e sim é feita” (p. 36). Contudo, o autor não defende a inexistência da linha que separa narrativa histórica e ficção literária, mas ela é tão tênue quanto impossível de ser detectada. O aspecto figurativo e ficcional dos textos históricos e dos textos literários não desqualificam suas verdades. Para White, é absurdo supor que somente porque um discurso é anunciado no modo de uma narrativa, ele tem de ser mítico, ficcional, imaginário ou ‘não-realista’ naquilo que nos diz sobre o mundo. A verdade e o realismo são sempre culturalmente determinados e variam de cultura para cultura.  Em contrapartida, “será que alguém acredita seriamente que o mito e a ficção literária não se refiram ao mundo real, não digam verdades sobre ele e não forneçam um conhecimento útil a seu respeito?” (ibid., p. 39). Neste ponto, White inclusive se afasta de alguns estetas que consideram que a literatura e a arte não possuem nenhuma conexão com o mundo de fora e referencial.

White defende sua “teoria tropológica” como instrumento necessário para a pesquisa do passado e para a construção do discurso histórico, por isso rebate algumas críticas dos historiadores. Esta teoria não é relativista porque não coloca em discussão a percepção, mas a representação simbólica da linguagem. Também não é determinista porque, ao estudar e compreender a linguagem permite ao historiador a escolha livre e consciente das opções para diferentes estratégias de figuração. A teoria de White não nega a existência de realidade extra-discursiva. Nem tudo é fala, linguagem, discurso ou texto. Mas defende que a representação e a referencialidade linguísticas são assuntos mais complicados do que as noções literalistas do discurso. Por último, a teoria tropológica não destrói a distinção entre fato e ficção, mas redefine as relações entre os dois dentro de qualquer discurso.

* * *

Pitaco safado: as críticas dos historiadores a Hayden White são exageradas demais. O meio-tom de ressentimento e de desconhecimento da obra é nítido em muitas das acusações. Em grande medida, o autor parece apenas preocupado em justificar a plausibilidade de seu trabalho e sua possível utilidade para os historiadores. O conflito entre historiadores e o White também se dá por uma questão de princípios filosóficos. Por exemplo, o tratamento a noção de verdade que o autor trabalha é diferente da maioria dos historiadores. Neste sentido, White possui uma inspiração nietzschiana de uso e de valor da verdade, enquanto muitos historiadores ainda estão preocupados em defender a ferro e fogo suas verdades - e até impô-las coletivamente em alguns casos. O teórico parece estar mais preocupado com as construções destas verdades como prerrogativas que podem justificar (e justificam) uma hierarquia moral e um projeto universal ao preço da pluralidade de interpretações e de perspectivas da realidade. Acima de tudo, e o mais importante, as críticas literárias de White podem servir para os historiadores repensarem os usos que fazem da história, propondo antes da transformação do mundo, a transformação de si mesmos e de seus ofícios. Emergencial: se o tempo é mudança, por que os instrumentos e o trabalho do historiador devem permanecer sempre os mesmos?  
Referências:
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2006.
WHITE, Hayden. Meta-história: A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995.
WHITE, Hayden. Teoria da literatura e escrita da história. Estudos Históricos, Rio de janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 21-48.

5 comentários:

  1. Pois é Munhoz, esse contexto de pensar diferente também recaí na literatura (alias, acho que em qualquer ciência).

    Gostei muito da frase:"O encadeamento dos eventos na estrutura da obra – começo, meio e fim; desfechos e viradas – são operações da escolha e da perspectiva do historiador e interferem sobremaneira na composição representativa do passado"

    Achei isso muito verdade, acabei de receber o resultado de um concurso literário, onde metade das pessoas gostaram e outra não. Eu estava tentando achar uma explicação e este seu artigo me esclareceu.

    A grande verdade é que as pessoas interpretam conforme sua expectativa. o que na verdade a interpretação deveria ser livre e sem preconceitos.

    Adorei o artigo!

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  2. Ótima exposição! Mas tenho três questões baseadas no tal debate:

    "O teórico parece estar mais preocupado com as construções destas verdades como prerrogativas que podem justificar (e justificam) uma hierarquia moral e um projeto universal ao preço da pluralidade de interpretações e de perspectivas da realidade."

    Concordo que grande parte das tais críticas tenha esse caráter “ressentido”, mas será que o Hayden White não inverte a posição? Ou seja, sacrifica qualquer chance de “projeto universal” e “hierarquia moral” para privilegiar a tal “pluralidade de interpretações e perspectivas”? Não será ilusório querer combater a tal perspectiva retrógrada sem propor algo novo em termos de ordem política que possa substituir um mundo cujas tendências são cada vez mais para a desigualdade e homogeneização cultural? Acredito que “safadeza” anarquista, na teoria e prática, de tentar reunir estes dois caráteres deve ser considerado.

    “Acima de tudo e o mais importante, as críticas literárias de White podem servir para os historiadores repensarem os usos que fazem da história, propondo antes da transformação do mundo, a transformação de si mesmos e de seus ofícios.”

    Concordo com quase tudo, exceto o “antes”. Nós não mudamos a nós mesmos, como se fôssemos separados do mundo, mas nós somos efetivamente formandos pelo mundo (e por nós mesmos), assim como interferimos na sua formação (e outros indivíduos), dentro de uma História que herdamos. Há como transformar a nós mesmos sem transformar o mundo, simultaneamente? Ou não? Acredito que os debates anarquistas dão excelente subsídio pra essa questão que não é desenvolvida no texto (e nem poderia ser).

    “Também não é determinista porque, ao estudar e compreender a linguagem permite ao historiador a escolha livre e consciente das opções para diferentes estratégias de figuração.”

    Eu entendo que esta seja a perspectiva do Hayden White, mas você concorda com ela? O conhecimento das artimanhas linguísticas do discurso simbólico nos dá a capacidade de uma “escolha livre e consciente das opções para diferentes estratégias de figuração”, mas apenas em condições ideais em que o historiador, já estabelecido em determinada posição, não tem de se preocupar com pressões políticas, culturais, sociais, econômicas. Esse ambiente ideal é possível, epistemologicamente? Esse “lugar social” não é permeado de duros conflitos em torno de problemáticas não-acadêmicas?

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    1. Olá, André.

      Agradeço sua intervenção aqui alimentando o debate. Eu escrevi esse post há algum tempo, desde lá mudei algumas impressões sobre White. Isso me parece importante sobretudo para clarear sua primeira questão que foi extraída de um trecho em que faço um comentário pessoal. Creio que esta seja uma leitura (de valor) possível a partir de White, uma leitura "anárquica", mas não necessariamente anarquista ("clássica"). Contudo, após ler outras obras do autor, hoje essa (o rompimento de uma hier-arquia moral) não me parece ser a preocupação de White. Talvez outra leitura possível do autor seja perceber o quanto a construção desta hierarquia é frágil. Entretanto, ele não sacrifica o projeto universal de composição retórica e poética desde Aristóteles - e os leitores de Aristóteles saberão o quão é importante o componente moral (seja pela reputação do orador/relator, seja pelo "bom" uso que se faz dos recursos linguísticos) para dividir hierarquicamente aqueles que sabem daqueles que não sabem, aqueles de conduta reconhecida na e pela comunidade e aqueles que não pode dizer sobre o que é belo, bom e útil, os que mandam e os que obedecem. O trabalho de White, de certa maneira, parte desta premissa e estabelece uma continuidade aristotélica, crendo que é possível compreender e classificar um autor e uma obra conforme os tropos linguísticos utilizados dentro de uma cadeia bastante limitada, operando como numa espécie de estruturalismo textual que não vê a possibilidade do novo e do fora.

      Neste sentido, posso responder sua terceira questão. Concordo com o autor que o método utilizado por ele não é determinista, mas também não é totalmente livre. Você escolhe as ferramentas de linguagem dentro de um conjunto já previamente estabelecido pela tradição que é permeada por interesses de todos os tipos (econômicos, sociais, políticos, culturais, etc.). Não acho que seja possível entender um (social e histórico) e depois o outro (linguagem), pois a linguagem é engendrada a partir de posições e jogos de força históricos, mas a linguagem não é meramente o reflexo delas, ela também constroi, justifica, abala e resiste a tais posições. Temos que parar de olhar com inocência para a linguagem, talvez esse sim seja um "ensinamento" do White.

      São estas pequenas coisas que podem mudar o mundo e a nós mesmos (pelo menos assim acredito). Concordo contigo que não há mudanças apartadas entre o ser o mundo, é concomitante. Porém, o que estou cansado de ver em determinados movimentos sociais é uma tentativa de mudar o mundo (a organização social e política) e endurecer cada vez mais, atacar uma hierarquia defendendo outra, cair no mais do mesmo. Não me parece que a mudança aconteça de cima para baixo, não me parece que é possível construir ou inventar algo realmente novo somente tirando o projeto universal que está em vigor por um outro com cheiro diferente, mas com o mesmo efeito no final. Acreditar nisso é simplemente concordar que os seres humanos são nada mais do que receptores e executores das decisões de um projeto "universalista" previamente traçado. Tentar escapar disso pode ser uma atividade importante para pensarmos e inventarmos a "anarquia", mas esta estará longe das idealizações dos "anarquistas". O novo é imprevisível. Quem realmente quer?

      Muito obrigado e abraços!

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  3. hayden white é um romancista fracassado que não aceita a existência da realidade. Como levá-lo a sério?

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  4. Como faço pra citar você na minha pesquisa? Como é seu nome completo?

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