terça-feira, 31 de julho de 2012

O “Holocausto” no testemunho, na ética, no Direito e na vergonha: O que resta de Auschwitz

No prefácio do livro O que resta de Auschwitz de Giorgio Agamben, Jeane Marie Gagnebin ressalta que o acontecimento dos campos de concentração marca, de maneira extrema, a separação entre a política idealizada da “polis de Aristóteles” e a biopolítica contemporânea, na qual o estado de exceção se torna regra. A lei (nomos) não é mais feita para integrar, conviver, discutir e decidir, mas para excluir e, ainda, controlar a vida e produzir a morte. Em O que resta de Auschwitz, Agamben atravessa uma infinidade de questões tentando compreender ou, paradoxalmente, escancarar a dificuldade de compreensão do nazismo. O autor busca, através dos relatos da literatura produzida pelos sobreviventes dos campos de concentração, traçar proposições sobre a linguagem, a política e a ética, mais do que recortar as circunstâncias históricas relativamente clarificadas pelos historiadores. Portanto, podemos dizer que seu livro é um trabalho filosófico-histórico, porque, para além da constatação dos fatos, procura compreender o que ainda não foi compreendido (ou não queremos enxergar). Respeitando a densidade da obra, tentarei resenhar somente o primeiro capítulo d’O que resta de Auschwitz, visando, também, estimular o interesse pela leitura integral do livro.

Nos livros escritos pelos sobreviventes encontram-se algumas justificativas sobre o desejo destes em continuarem vivos após a experiência que passaram nos campos nazistas (Lager). Dentre elas estão: o anseio de se tornarem uma testemunha, isto é, a série de pretextos que só mostram o intuito em permanecer vivo a qualquer preço e o desejo de vingança, de contar ao mundo tudo o que viu e experimentou nos campos. Contudo, na dificuldade e na vergonha de justificar sua sobrevivência alguns simplesmente se calaram após a libertação, já outros não conseguiram parar de falar sobre o assunto. Primo Levi (um italiano-judeu deportado para Auschwitz) é um desses últimos. Ele conta em seus livros que toda situação era propícia para narrar o que lhe acontecera. Depois começou a escrever sobre o assunto durante a noite. Primo Levi não queria deixar morrer a testemunha que existia dentro de si. Podia sentir-se envergonhado por ter sobrevivido, mas não por ter testemunhado.

No entanto, aparece um primeiro problema no caso do testemunho. A experiência em Auschwitz (e em outros campos) foi única, inédita, em tese, “inacreditável”. Os próprios soldados nazistas inclusive diziam que ninguém acreditaria nas poucas provas que, por ventura, restassem do evento, por conta do nível de absurdo ali vivenciado. Mais do que isso, as verdadeiras testemunhas são os que tocaram o fundo, que experimentaram do início ao fim todo o processo de concentração e extermínio. Quer dizer, estão mortas e por isso não podem testemunhar. Primo Levi coloca que as verdadeiras testemunhas seriam os muçulmanos. Esse nome era usado pelos judeus para designarem seus companheiros de concentração que chegaram num estágio cultural altamente degradante em Auschwitz. Tanto que perderam os “valores humanos” e a posse da linguagem, ou seja, voltaram a uma espécie de vida nua (zoé), vida animal. Tal condição os impede de narrar, e configura a impossibilidade do testemunho em Auschwitz, tendo em vista que eles morreram (humanamente) antes de terem uma morte corporal. Hurbinek, um menino que foi levado ao campo com pouco mais de um ano de idade (e permaneceu lá até os três anos), não aprendeu a falar. O ambiente não proporcionava tal possibilidade. O som que o garoto emitia a noite (mass-klo ou matisklo) é uma palavra que ninguém no campo sabia o que significava (mesmo tendo várias nacionalidades e idiomas ali presentes) e talvez seja a palavra inventada, quer dizer, o testemunho que ainda é uma não-língua e descreve aquela situação. Disso não podemos precisar, pois Hurbinek (nome atribuído ao garoto) morreu três dias após sua libertação pelos soviéticos. Por essas razões, o testemunho de Levi nunca se esgota, porque não encontra palavras suficientes para descrever o ocorrido, caminha muito mais na direção de um testemunho sobre a impossibilidade de testemunhar.

Agamben aponta a existência de dois termos em latim para a palavra “testemunha”. O primeiro é testis, que é um terceiro sujeito colocado para resolver uma situação (numa disputa, num processo) entre dois envolvidos. O segundo é superstes, que descreve aquele que viveu algo do princípio ao fim e pode, por isso, dar testemunho do evento ocorrido. Primo Levi é o segundo. E isso significa, por extensão, que seu testemunho não tem a ver com o estabelecimento dos fatos tendo em vista um processo jurídico, pois ele não é “neutro” para tal, não é um testis. Por isso, não é o julgamento que lhe importa, tampouco o perdão. Ele diz que não tem autoridade para tal. Só lhe interessa o que torna impossível o julgamento, a “zona cinzenta” onde as vítimas se tornam carrascos, e os carrascos vítimas. “É sobretudo a respeito disso que os sobreviventes estão de acordo: ‘vítima e carrasco são igualmente ignóbeis; a lição dos campos é a fraternidade de abjeção’” (AGAMBEN, 2008, p. 27). Chama atenção o cuidado que Levi tem de não excluir os muçulmanos dos seus relatos (diferentemente do que fizeram outros sobreviventes) e nem de julgar os que participaram da execução, de não dizer que eles não eram humanos, de não dizer que eles eram monstros e também de não aceitar que sua sobrevivência tenha sido uma escolha divina. Essa é ética de Levi, de não excluir ninguém e não misturá-la com o Direito.

Giorgio Agamben, filósofo italiano (1942)
Agamben vê que o Direito causou um problema na compreensão do nazismo porque ao emitir um julgamento quis esvaziar a questão. Ele acredita que esse fato ocorreu por uma confusão cultural entre categorias éticas e jurídicas, ou teológicas e jurídicas. É necessário, portanto, a compreensão de que a questão factual não pode ser reduzida à questão jurídica. Pois, a finalidade da norma é produzir julgamento; este, porém não tem em vista nem punir nem premiar, nem fazer justiça nem estabelecer a verdade. O julgamento é em si mesmo a finalidade, ou seja, autorreferente. O julgamento é o produto de um processo construído por provas, testemunhos e evidências (acumulados e validados) que constituem sua própria história, sua própria verdade; fora disso nada mais há. “Por isso [dentro do processo que tem natureza autorreferencial] execução e transgressão, inocência e culpabilidade, obediência e desobediência se confundem e perdem importância” (p. 28); estas estão para além da pena emitida (ou como extensão) do/pelo julgamento.

Eichmann (1906-1962)

O filósofo reitera que responsabilidade e culpa são termos jurídicos e que historicamente migraram para o terreno da ética, gerando uma confusão sem tamanho. “O verbo latino spondeo, do qual deriva nosso termo ‘responsabilidade’, significa ‘apresentar-se como fiador de alguém (ou de si mesmo) com relação a algo perante alguém’. Sendo assim, na promessa de matrimônio, pronunciar a fórmula spondeo significa para o pai empenhar-se em oferecer ao pretendente, como mulher, a própria filha (que, por isso era chamada sponsa) ou em garantir uma reparação se isso não acontecesse” (p. 31). Responsabilidade não é um gesto nobre e luminoso, nem ético, mas simplesmente o fato de poder atribuir culpa a alguém que não saldou uma dívida jurídica. Por isso, no direito romano não existe imputabilidade a respeito de si, somente a outrem. Sob essa confusão, Adolf Otto Eichmann, tenente-coronel da SS (esquadrão da elite militar no nazismo), durante o julgamento que desencadeou seu enforcamento, assumiu sua culpa perante Deus, mas não à lei; porque lhe parecia um gesto eticamente nobre. O suicídio de alguns soldados nazistas configura um ato similar, no qual buscam fugir ou isentar-se da culpa jurídica. Entretanto, assumir a responsabilidade por um ato cometido só tem sentido no âmbito jurídico, pois a ética, como diria Spinoza é a doutrina da vida feliz, que não conhece nem culpa, nem responsabilidade.

Todavia, num gesto oposto ao de Nietzsche (além do bem e do mal), Levi deslocou a ética para um lugar aquém donde estamos a pensá-la: para a zona cinzenta. Onde o sub-homem nos interessa mais do que o além-do-homem. Após a experiência dos campos não dá mais para entender a ética nos limites da velha dignidade, de um caráter indefectível, de uma coerência irreparável, tampouco tangenciada pelo nomos que rege a polis. A lei de Auschwitz era ao mesmo tempo rígida e aleatória, os vagões que levavam os deportados abriam duas portas, uma para os campos de trabalho, outra para as câmaras de gás. Não havia informação e nem separação dos “melhores” neste momento. Os que ousavam entender o que acontecia ali ou enfrentavam com coragem heroica a situação assoladora ou morriam antes de obter respostas e resultados. Talvez daí venha o sentimento de vergonha de Primo Levi e de outros sobreviventes que escolheram e resistiram conviver com o lado mais cruel do humano que também estava neles – estava nessa zona cinzenta que une os carrascos e as vítimas.

A figura extrema da zona cinzenta é o Sonderkommando. Um grupo de judeus, escolhidos pelos agentes da SS, encarregados da execução de seus companheiros. “Eles deviam levar os prisioneiros nus à morte nas câmaras de gás e manter a ordem entre os mesmos; depois arrastar para fora os cadáveres, manchados de rosa e de verde em razão do ácido cianídrico, lavando-os com jatos de água; verificar se nos orifícios dos corpos não estavam escondidos objetos preciosos; arrancar os dentes de ouro dos maxilares; cortar o cabelo das mulheres e lavá-los com cloreto de amônia; transportar depois os cadáveres até os fornos crematórios e cuidar de sua combustão; e, finalmente, tirar as cinzas residuais dos fornos” (AGAMBEN, 2008, p. 34). Ter organizado o Sonderkommando foi o delito mais demoníaco do nazismo, pois embaralhou o papel das vítimas e dos algozes, mostrando o sub-humano em cada um de nós.

Um dos sobreviventes que participou do “Esquadrão Especial da Morte” em Auschwitz conta que, durante uma pausa do trabalho, assistiu a uma partida de futebol entre os soldados da SS e os membros do Sonderkommando. Para Agambem essa partida não foi uma pausa de humanidade em frente aos portões do inferno, mas pelo contrário, esse momento de normalidade é o extremo horror do campo de concentração e extermínio. Essa “partida nunca terminou, é como se continuasse ainda, ininterruptamente. Ela é o emblema perfeito e eterno da ‘zona cinzenta’ que não conhece tempo e está em todos os lugares’. Dela provém a angústia e a vergonha dos sobreviventes [...]. Mas dela também provém a nossa vergonha, de nós que não conhecemos os campos e que, mesmo assim, assistimos, não se sabe como, àquela partida que se repete em cada partida dos nossos estádios, em cada transmissão televisiva, em cada normalidade cotidiana. Se não conseguirmos entender aquela partida, acabar com ela, nunca mais haverá esperança” (p. 35).

Referência: 
AGAMBEN, Giorgio. A testemunha. In:______. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 25-48.

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