segunda-feira, 4 de março de 2013

Fim da escola: o começo da liberdade? Notas de Durval M. Albuquerque Júnior

O historiador brasileiro Durval Muniz Albuquerque Júnior argumenta que se concordarmos que atualmente vivemos uma condição histórica pós-moderna é preciso então que repensemos as instituições sociais criadas durante a modernidade e que ainda vigoram. O pressuposto é que a modernidade (do séc. 18 e 19) fundou determinadas instituições sociais baseando-se num projeto político-filosófico que não nos diz respeito mais.[1] No âmbito educacional, qual projeto seria esse? A educação das pessoas para que elas atingissem um grau superior de racionalidade tal qual fosse possível sua emancipação e autogoverno, ou, sendo mais otimista, que nossas relações sociais passassem a ser baseadas na liberdade, igualdade e fraternidade. Isto nada mais é que a tentativa da criação de sujeitos orientados pela razão, que supostamente levaria a sociedade a uma marcha ao progresso tecnológico, científico, crítico e social em todos os sentidos. Esses projetos políticos, filhos do Iluminismo, preencheram as agendas tanto de liberais, quanto de socialistas, comunistas, anarquistas e etc. A escola dentro do projeto liberal ou humanista tende, em tese, a este ideal.

Entretanto, alguns acontecimentos históricos como as duas grandes guerras e a ascensão dos regimes totalitários (provocando especialmente o holocausto) mostraram que a agenda moderna, que colocava uma fé demasiada na “racionalidade humana” para atingir um progresso ininterrupto ou chegar a um final “feliz” da história, tinha formulado mal seus cálculos. Diante disso, cabe-nos refletir sobre o papel que a escola cumpre atualmente e o que ela precisa mudar para continuar funcionando; já que instituições sociais criadas na modernidade (como o manicômio e a prisão) têm sua validade questionada na pós-modernidade. Cabe-nos, igualmente, repensar o trabalho do professor enquanto sujeito que pretende formar alunos, enfrentando uma crise da escola e uma desvalorização profissional que não deixa de ser o reflexo do desencaixe dos mesmos na atual sociedade.

Neste sentido, Albuquerque Júnior faz inicialmente uma historicização da criação da escola na modernidade. Vinculada a seu projeto humanista e liberal, seu papel era tornar o homem dono de si e do mundo, um cidadão apto para atuar e trabalhar dentro de uma ordem estabelecida burguesa, respeitar normas e valores comuns, hierarquias, autoridades e assimilar saberes instrumentais. O nascimento da escola coincide com o solapamento da educação da criança antes centrada na família. Isto é, neste momento, o Estado toma da família o papel de educar e formar cidadãos. É mais fácil desde cedo introjetar as maneiras pelas quais as pessoas devem se portar em adequação às regras coletivas (governamentalidade), formando indivíduos massificados. O saber escolar é um saber elitizado, pouco afeito às realidades sociais das classes baixas. Com isso, é inevitável o surgimento de diversos conflitos dentro do ambiente escolar na medida em que a escola toma o papel de educar inclusive os filhos das classes pobres. As experiências de vida dessas pessoas se chocam com os valores e comportamentos transmitidos pela escola, sobretudo, porque a escola foi uma instituição social inicialmente projetada para preparar a elite dominante para ocupar os cargos de administração do Estado. Já no século 20, ela precisou formar também uma mão-de-obra especializada para prover as empresas capitalistas. A partir de então, ela passa a funcionar como uma empresa preocupada, em primeiro lugar, com os lucros. Os alunos, da mesma forma, apropriam-se de igual maneira. Concluem um curso somente para obter um diploma que vai permiti-los ingressar ao mercado de trabalho, sem sequer se preocuparem com a instrução reflexiva e crítica que o saber pode lhes proporcionar.

Albuquerque Jr. (1961)
No Brasil durante muito tempo a escola serviu apenas a uma elite branca e rica. Negros, mulheres e pobres eram excluídos. Somente após os anos 50 a educação foi se abrindo para a massa e chegando à zona rural. Diz-se que a qualidade da educação tem piorado desde então. Como já foi exposto acima, isso pode ser explicado pelo choque entre a particularidade dos saberes escolares e a heterogeneidade (diferentes concepções de mundo, valores e perspectivas diversas) do público atendido. Por outro lado, numa sociedade informatizada como a nossa, na qual há uma circulação veloz de informação e de conhecimento através das mídias (rádio, TV, Internet), a escola vai perdendo seu poder de sedução, até mesmo para muitos professores que a enxergam agora como uma mera obrigação.

Mas será mesmo que a escola está em crise? Foucault diz que desde a inauguração da prisão, ela é contestada sobre sua funcionalidade e eficácia. A instituição prisional é fundamentada no discurso segundo o qual promoverá à ressocialização e à recuperação de presos, mas para o autor a função dela não é a que está expressa em tal discurso - e é por isso apesar de ser “ineficiente” ela continua funcionando. Entre outros, o papel da prisão não é para os que estão lá dentro. Mas para os que estão de fora. Para impor medo aos cidadãos que lhe são exteriores. Neste sentido, será que, apesar de todo o discurso humanista, a função da escola não é também a de estabelecer hierarquias e autoridades através da coerção e perpetuar o modelo social excludente? Seria uma ingenuidade nossa não perceber esta intenção política? “Realmente, parecemos acreditar que a educação escolar resolveria os problemas sociais, os problemas políticos, os problemas de cunho moral e ético pelos quais passamos. Da mesma forma que receitamos o trabalho como um poderoso antídoto contra, o que consideramos ser, os problemas de nossa sociedade, sempre fazemos o mesmo com a educação. Embora saibamos que a escola que temos não agrada a ninguém que está dentro dela, continuamos contraditoriamente achando que ela é a solução para os problemas de quem dela está excluído” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 13).

Neste sentido, Albuquerque Júnior apresenta uma proposta radical aos professores. Estes devem questionar a própria escola, o ensino escolar, a escolarização e a noção de formação escolar que é naturalizada. Esse seria o primeiro passo para que as práticas e as maneiras de ensinar sejam transformadas. Aliás, a própria ideia de “formação” deve ser aí problematizada, pois ela foi transportada da história natural evolucionista para o campo humano. Segundo Albuquerque Júnior, deve ser recusada “a idéia de que cabe ao processo educacional, que cabe à escola, e nela ao professor, dar forma a esta matéria disforme, esta matéria plástica, esta matéria infante, que é a criança. [Pois] A escola seria assim lugar de modelagem de corpos e espíritos, de construção de perfis, de personalidades, de caracteres, de almas e mentes” (p. 08). Este pressuposto informa sua concepção conservadora que busca adequar os sujeitos a um processo já previamente estabelecido em que eles apenas ocupariam funções para fazer girar a máquina; posto que formar nada mais é que colocar um corpo em uma forma pronta.

Por outro lado, “embora muitas pedagogias que se nomeiam críticas tenham pensado a instituição escolar como um lugar onde se poderiam formar agentes críticos da realidade social, sujeitos descomprometidos com a ordem vigente, sujeitos capazes de transformar a realidade social, esbarram na própria aporia de se pensar uma pedagogia crítica: uma pedagogia crítica é possível? Como uma maquinaria de práticas e discursos que visam enformar ou formar alguém, como um conjunto de prescrições pode levar alguém a ser crítico, se a crítica nasce da possibilidade de ser deseducado, mal educado, da capacidade de se deformar, de propor e adquirir novas formas de subjetividade em descompasso com as modelizações subjetivas que a escola e os modelos pedagógicos nos tentam ensinar?” (p. 09).

Sob esse modelo homogeneizante “a escola está se tornando um lugar de zumbis, de professores e alunos autômatos, que não sabem direito por que estão ali, mas que apenas executam rotinas, como peças de uma grande máquina, que assim como na fábrica moderna, não sabem sequer qual o produto final que estão produzindo. A desmotivação, a falta de adesão às atividades escolares, a falta de se colocar à disposição para o que aí ocorre, demonstram claramente esta robotização da atividade escolar. [...] Os agentes da vida escolar adoram o aluno quieto, disciplinado, certinho, autista, catatônico, deserotizado. O aluno padrão, que não se singulariza, aquele que não se importa de ser apenas mais um, uma cifra, um número de matrícula, um nome a mais na lista de chamada. Os agentes escolares adoram alunos que não querem aparecer, que não querem se destacar, ou que se destacam por serem obedientes, por seguirem todas as ordens, por não reclamarem, por serem bem adaptados à cultura escolar” (p. 10-11).

Por isso, em vez de um professor que forme, é preciso um que deforme, que instaure inclusive um questionamento sobre os códigos sociais de sua própria formação, problematizando-os, aferindo seus limites. Um ensino que deforme colocará em xeque os valores preconizados no passado, desconstruirá verdades absolutas e naturalizadas, promoverá dissensos e rebeldias, abrirá o “eu” para invenção e para o cuidado de si a partir de seus próprios valores e escolhas livres, permitirá a coexistência e abertura ao diferente, ao “outro”, desestabilizará hierarquias e continuidades, deslocará o professor do centro do saber, colocando em seu lugar o aluno, estabelecendo assim uma relação na qual um aprenderá com o outro. 

Contudo, isso não acontecerá simplesmente com o aumento do salário dos professores, tampouco com a instrumentalização tecnológica e estruturação material do ambiente escolar, pois uma escola não é feita apenas de paredes, tetos, quadros, gizes e computadores. Pelo contrário, existe “uma cultura, um conjunto de concepções filosóficas, políticas, pedagógicas, éticas, econômicas, jurídicas que a instituem e constituem. A escola é uma rede de relações humanas com todas as dimensões que estas compreendem” (p. 12). E, portanto, uma simples reforma não seria suficiente para promover uma transformação completa. Enquanto instituição social, a escola deveria desaparecer. Refletir sobre esse fim é a condição de criar novas maneiras de promover o ensino.

Resenha de:
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. Por um ensino que deforme: o docente na pós-modernidade. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/por_um_ensino_que_deforme.pdf Acesso em: 02 de fev. 2013.

[1] Os projetos político-filosóficos que fundaram diversas instituições estão diretamente relacionados a questão dos relatos de legitimidade tratados no post O (des)embaraço da ciência em Lyotard.

3 comentários:

  1. Fantástico esse texto! Vou buscar mais coisas sobre esse autor Durval M. Albuquerque Júnior.

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    1. Bastante crítico o Durval, né Vivian?! Recomendo "História - arte de inventar o passado", há ensaios bem interessantes e prazerosos de se ler. Alguns estão já espalhados pela Google. Abraços!

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    2. A bibliotecária da faculdade indicou o mesmo livro; vou pegá-lo na sexta-feira. Espero realmente fazer uma boa leitura pois já estou buscando autores bacanas para a minha monografia. Muito obrigada! Beijos!

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