Este
texto é uma saudação à dissertação de mestrado Fragmentos biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita
cronística como escrita de si em
Neno Vasco do historiador Thiago Lemos Silva. Através de uma narrativa
clara e objetiva, utilizando a biografia pessoal como expressão do meio social
no qual o indivíduo se insere, mas sem perder de vista as singularidades do ser
humano, o autor nos convida para o passeio no labirinto construído sobre a vida
de Neno Vasco, entendida como um mosaico incompleto. Acima de tudo, vejo a
importância deste trabalho por dois motivos principais: (1) apresentar ao público
brasileiro um anarquista que ainda é pouco conhecido mesmo nos espaços ácratas;
(2) propor questões uteis à reflexão de nossa contemporaneidade. Sendo
assim, tentarei percorrer alguns aspectos que me chamaram atenção, sobretudo em
relação ao anarquismo e a política contemporânea.
Quem foi Neno
Vasco?
Português, filho de família liberal, formado em Direito, anarquista-comunista e
estrategista do sindicalismo revolucionário. Em 1901, Neno chega ao Brasil e
funda os jornais “O Amigo do Povo” e
“A Terra Livre”. Em 1911 volta a Portugal de onde continua sua militância e
sua contribuição jornalística anarquista lá e cá. Pensador antimilitarista,
anticlerical, tímido, sensível às questões femininas e um defensor do
socialismo libertário. Embora, tenhamos feito tais classificações, é necessário
de antemão considerar que além de avesso as multidões, Neno também gostava de se
ver livre das categorizações. Como cita Thiago Silva:
Dez mil comunistas! E eu no meio
de tanta gente [...] Uff! Deixem me sair, deem-me licença meus senhores. Tenho sempre
evitado os ajuntamentos: sofro de falta de ar e o calor e a poeira me
incomodam. [...] o melhor seria talvez ter me deixado desclassificado, pairando no vago, no indeciso, nem sim nem não,
antes pelo contrário, numa indeterminação nebulosa, em pleno céu azul sob, sob
o sol claro (Neno
Vasco, imagem ao lado, apud. SILVA, 2012, p. 25).
Por
conta de estudar as crônicas publicadas num periódico português, A Porta da Europa, Thiago Silva se detém mais sobre
a militância de Neno em Portugal. Os
jornais anarquistas eram um dos veículos de divulgação da propaganda anarquista
e quiçá o principal a atingir a classe operária. Kropotkin em Palavras de um
revoltado se lamentava porque não conseguia difundir seus livros para o
povo, por isso, advertia que a melhor estratégia era mesmo os textos curtos.
Este pode ser um indicativo para aqueles que pretendem escrever para um público
maior. Menos é mais. Nietzsche criticava
os filósofos de sua época pela necessidade destes enrolar em um livro uma
simples ideia que cabia num aforismo. E ainda dizia: “alguns mergulham o leitor
em águas barrentas para convencê-los de que são profundas”. Nesse sentido, Neno
foi exemplar propagandista anarquista da época, por ter dedicado sua vida ao
jornalismo.
Thiago
Silva suscita questões interessantes sobre o anarquismo através de Neno Vasco. A
definição de anarquismo para Neno estava atrelada ao socialismo, a Bakunin e Federação Jurassiana, e
recusava com veemência o anarquismo que se aproximava do individualismo liberal.
Mas acreditamos que esta rejeição se dava por fatores da época, assim, as
palavras de Neno ganham sentido num diálogo indelével com o contexto social e
discursivo. Neste momento, o anarquismo procurava se distanciar do liberalismo por conta dele representar a máscara
do capitalismo selvagem e da classe burguesa que ocupava o kratos estatal. Rocker,
outro autor anarquista, adverte que o anarquismo quer fazer o que o liberalismo
não conseguiu: suprimir o Estado. Enquanto Thomas Jefferson dizia que o melhor
governo era aquele que menos governava, Thoreau reiterava que o melhor governo
era o que não governava (2005, p. 11).
Contudo,
existe algo em que Neno se aproxima mais dos liberais: a luta pela separação
entre a Igreja e o Estado. Claro que
são interesses distintos, pois, enquanto os liberais querem ter a liberdade de “usura”
e de livre-comércio sem influência política da religião cristã, os anarquistas
acreditam que a fé em Deus e nos seus “intermediários” na Terra é expressão de
dominação, alienação e bases para o autoritarismo. Neno, assim como Bakunin no
texto A igreja e o Estado, diz que o combate contra a Igreja é tão importante
como contra o Estado. Neste texto de uma atualidade ímpar, Bakunin considera
que a Igreja usa de seu poderio divino para benefícios financeiros através da
massa. O Estado, para ele, também se
baseia numa metafísica mentirosa, que diz ser preciso abdicar de nossos
interesses individuais apoiado na invenção do pecado original para destruir a
consciência de seu próprio valor, fazendo-nos sentir culpado e com medo da
ausência de poder coercitivo (2006, p. 100). Certamente, o barbudo dialoga com “a
suposta guerra de todos contra todos do homem natural” inventada por Hobbes para legitimar a criação do
Estado moderno.
Thiago
Silva nos conta que Neno escolheu o sindicalismo
revolucionário somente como meio qualificado para alcançar o anarquismo. E sua
estratégia imediata era a ação-direta. Diante disso, o jornalista se mostrava
contra a crença do anarquismo-sindicalista de achar que o “sindicalismo bastava
a si mesmo”, pois para ele este era apenas uma tática, tendo sempre o cuidado
de não perder de vista que a verdadeira luta era entre classes e não dentro de
uma corporação que buscasse privilégios e reformas para si. Diante disso,
podemos pensar alguns elementos que nos surgem a partir da contemporaneidade
política brasileira:
Boito
Júnior (2003) considera que a ascensão
do PT à presidência representou a
posteriori um retrocesso na luta dos movimentos sindicalistas e
conjuntamente a descrença nestas instituições. Atualmente, por conta dos
aumentos salariais e conquistas corporativas, os líderes sindicais de outrora “batem”
de carro do ano, moram em lugares bem localizados no ABC, seus filhos estudam
em escolas particulares e não precisam acessar a rede pública de saúde, pois
possuem planos particulares conveniados. Enquanto isso, membros dos movimentos
sociais e o resto do povão, cujos nomes foram usados na luta política, ainda
estão na pendenga. Neste sentido, para Neno, o sindicalismo era somente uma “ginástica revolucionária”, nunca
poderia fechar em suas questões.
Neno,
como nos mostra Thiago, era contra a entrada de socialistas na política por via
parlamentar. Ele dizia que a questão social nunca podia ser resolvida de tal
maneira, pois este era o lugar onde as classes dominantes ocupavam e as causas operárias
eram abafadas. O insucesso de Proudhon
como deputado é emblemático nesse caso. Quando este anarquista tentou levar
projetos populares para a assembleia, todos o revogaram. As propostas de
Proudhon, o denominariam como "homem terror", segundo Samis [1]. A
crítica de Neno aos socialistas portugueses foi quase uma profecia, pois os
socialistas só conseguiram entrar na democracia
burguesa fazendo lobbies e uniões
com partidos distantes da causa proletária. Este fato escorre para duas
problemáticas contemporâneas.
Temos
assistido as manifestações pela saída do governador
goiano Marconi Perillo (PSDB) por estar envolvido em esquemas de corrupção. Mas, nos
perguntamos: se ele sair será que vai mudar muita coisa? Tira-se um, coloca-se
outro! É como se o povo acreditasse que o mal está na pessoa e não no complexo
que o cerca e o torna assim. A crítica de Bakunin (2003), quando respondia os
marxistas, é certeira e pode ser usada para nosso propósito. Bakunin escreve:
Sob qualquer ângulo que se esteja
situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o
governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Esta
minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza,
de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes
do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de
cima do Estado; não mais representarão o povo, mas si mesmo e suas pretensões
de governá-lo. Quem duvida disso não
conhece a natureza humana.
Outra
questão problemática é a formação de aliança para conseguir um determinado
posto político. Neste caso, a presidente Dilma Rousseff pagou caro. O PT aliou-se
ao PMDB, PL e outras carniças e
prometeu cargos públicos como ministérios para seus aliados; deu no que deu!
Acontece que os ministros também escolhem assessores, uns 50 (?), que são seus
amigos, familiares, comparsas e trutas, em vez de pessoas concursadas e
competentes para exercer as funções (se é que isso é possível, mas vamos nessa
lógica). Quando ocorrem esquemas de mensalão, e outros desvios de grana do povo,
os funcionários públicos não tem
compromisso com nada além daqueles que lhes colocaram naqueles lugares,
portanto, não denunciam. Estão de rabo preso. E assim o povo brasileiro é
enrolado.
Outro
tema do anarquismo tratado no trabalho se refere ao imediatismo
pós-revolucionário. Neno discorda dos anarquistas comunistas que acreditam que
o comunismo será instantâneo depois da revolução. Para ele existirá um estado
de transição, chamado de socialismo
libertário. Diferente das teses dos comunistas que querem organizar
partidos, tomar o poder do Estado e da indústria para promover a abundância. Neno advoga que será necessária a
coexistência do comunismo e do coletivismo, pois: “os produtos de primeira
utilidade deveriam ser distribuídos conforme a necessidade, tal como preconizavam
a fórmula comunista, e os outros provisoriamente adquiridos por meio de uma
taxa suplementar de trabalho, tal como preconizava a fórmula coletivista, até
que se tornassem abundantes” (SILVA, 2012, p. 111).
O Neno Vasco de
Thiago L. Silva
trata outras questões bastante importantes, mas não vou estendê-las no post - que
já está por demais grande. Uma prévia de assuntos para vocês lerem a
dissertação: Feminismo atrelado às questões sociais; Primeira Guerra Mundial e
o posicionamento dos anarquistas; O terreno incerto da luta junto aos
bolcheviques na Revolução Russa; A experiência de educação integral posta em prática em Portugal; O anti-terrorismo
de Neno; e Questões sobre a polícia punir crimes políticos e comuns do mesmo
modo.
Podemos
considerar por último que o autor deu um destaque principal à ética de Neno
Vasco, que renegou tanto os benefícios da carreira de advogado, como viver se escorando
na renda do pai e de familiares, passando por grandes dificuldades financeiras, pois
não admitia defender uma teoria sem praticá-la. E aí, quem está disposto a fazer da vida uma obra de arte como Neno fez?
Referências:
BOITO
JÚNIOR, Arnaldo. A hegemonia neoliberal no governo Lula. Revista Crítica Marxista.
Rio de Janeiro, n° 17, Editora Revan, 2003.
BAKUNIN,
Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo:
Imaginário, 2003.
BAKUNIN,
Mikhail. A igreja e o Estado. In: Textos
anarquistas. Seleção e notas Daniel Guérin; tradução de Zilá Bernd. Porto
Alegre: L&PM, 2006.
KROPOTKIN,
Piotr. Palavras de um revoltado. São
Paulo: Imaginário, 2005.
ROCKER,
Rudolf. A ideologia do anarquismo. São
Paulo: Faísca, 2005.
SAMIS,
Alexandre. Negras tormentas: o federalismo e o internacionalismo na Comuna de Paris.
São Paulo: Hedra, 2011.
SILVA,
Thiago Lemos. Fragmentos biográficos de
um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco. Dissertação (mestrado). Programa
de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2012. Trabalho disponibilizado online: Click aqui.
[1] A principal proposta de Proudhon era substituir a propriedade pela posse, ou seja, o capital que extraí valor de onde não tem, pelo direito de uso daquele que trabalha nele. O deputado recebeu, além de vaias, 600 votos contra e somente 2 a favor. Proudhon era também crítico do sufrágio universal por conta deste garantir uma justificativa de alijamento do povo baseado numa suposta "vontade geral".
[1] A principal proposta de Proudhon era substituir a propriedade pela posse, ou seja, o capital que extraí valor de onde não tem, pelo direito de uso daquele que trabalha nele. O deputado recebeu, além de vaias, 600 votos contra e somente 2 a favor. Proudhon era também crítico do sufrágio universal por conta deste garantir uma justificativa de alijamento do povo baseado numa suposta "vontade geral".