quarta-feira, 25 de abril de 2012

O anarquismo jornalista ou o jornalismo anarquista de Neno Vasco

Este texto é uma saudação à dissertação de mestrado Fragmentos biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco do historiador Thiago Lemos Silva. Através de uma narrativa clara e objetiva, utilizando a biografia pessoal como expressão do meio social no qual o indivíduo se insere, mas sem perder de vista as singularidades do ser humano, o autor nos convida para o passeio no labirinto construído sobre a vida de Neno Vasco, entendida como um mosaico incompleto. Acima de tudo, vejo a importância deste trabalho por dois motivos principais: (1) apresentar ao público brasileiro um anarquista que ainda é pouco conhecido mesmo nos espaços ácratas; (2) propor questões uteis à reflexão de nossa contemporaneidade. Sendo assim, tentarei percorrer alguns aspectos que me chamaram atenção, sobretudo em relação ao anarquismo e a política contemporânea.

Quem foi Neno Vasco? Português, filho de família liberal, formado em Direito, anarquista-comunista e estrategista do sindicalismo revolucionário. Em 1901, Neno chega ao Brasil e funda os jornais “O Amigo do Povo” e “A Terra Livre”. Em 1911 volta a Portugal de onde continua sua militância e sua contribuição jornalística anarquista lá e cá. Pensador antimilitarista, anticlerical, tímido, sensível às questões femininas e um defensor do socialismo libertário. Embora, tenhamos feito tais classificações, é necessário de antemão considerar que além de avesso as multidões, Neno também gostava de se ver livre das categorizações. Como cita Thiago Silva:

Dez mil comunistas! E eu no meio de tanta gente [...] Uff! Deixem me sair, deem-me licença meus senhores. Tenho sempre evitado os ajuntamentos: sofro de falta de ar e o calor e a poeira me incomodam. [...] o melhor seria talvez ter me deixado desclassificado, pairando no vago, no indeciso, nem sim nem não, antes pelo contrário, numa indeterminação nebulosa, em pleno céu azul sob, sob o sol claro (Neno Vasco, imagem ao lado, apud. SILVA, 2012, p. 25).

Por conta de estudar as crônicas publicadas num periódico português, A Porta da Europa, Thiago Silva se detém mais sobre a militância de Neno em Portugal. Os jornais anarquistas eram um dos veículos de divulgação da propaganda anarquista e quiçá o principal a atingir a classe operária. Kropotkin em Palavras de um revoltado se lamentava porque não conseguia difundir seus livros para o povo, por isso, advertia que a melhor estratégia era mesmo os textos curtos. Este pode ser um indicativo para aqueles que pretendem escrever para um público maior. Menos é mais. Nietzsche criticava os filósofos de sua época pela necessidade destes enrolar em um livro uma simples ideia que cabia num aforismo. E ainda dizia: “alguns mergulham o leitor em águas barrentas para convencê-los de que são profundas”. Nesse sentido, Neno foi exemplar propagandista anarquista da época, por ter dedicado sua vida ao jornalismo.

Thiago Silva suscita questões interessantes sobre o anarquismo através de Neno Vasco. A definição de anarquismo para Neno estava atrelada ao socialismo, a Bakunin e Federação Jurassiana, e recusava com veemência o anarquismo que se aproximava do individualismo liberal. Mas acreditamos que esta rejeição se dava por fatores da época, assim, as palavras de Neno ganham sentido num diálogo indelével com o contexto social e discursivo. Neste momento, o anarquismo procurava se distanciar do liberalismo por conta dele representar a máscara do capitalismo selvagem e da classe burguesa que ocupava o kratos estatal. Rocker, outro autor anarquista, adverte que o anarquismo quer fazer o que o liberalismo não conseguiu: suprimir o Estado. Enquanto Thomas Jefferson dizia que o melhor governo era aquele que menos governava, Thoreau reiterava que o melhor governo era o que não governava (2005, p. 11).

Contudo, existe algo em que Neno se aproxima mais dos liberais: a luta pela separação entre a Igreja e o Estado. Claro que são interesses distintos, pois, enquanto os liberais querem ter a liberdade de “usura” e de livre-comércio sem influência política da religião cristã, os anarquistas acreditam que a fé em Deus e nos seus “intermediários” na Terra é expressão de dominação, alienação e bases para o autoritarismo. Neno, assim como Bakunin no texto A igreja e o Estado, diz que o combate contra a Igreja é tão importante como contra o Estado. Neste texto de uma atualidade ímpar, Bakunin considera que a Igreja usa de seu poderio divino para benefícios financeiros através da massa. O Estado, para ele, também se baseia numa metafísica mentirosa, que diz ser preciso abdicar de nossos interesses individuais apoiado na invenção do pecado original para destruir a consciência de seu próprio valor, fazendo-nos sentir culpado e com medo da ausência de poder coercitivo (2006, p. 100). Certamente, o barbudo dialoga com “a suposta guerra de todos contra todos do homem natural” inventada por Hobbes para legitimar a criação do Estado moderno.

Thiago Silva nos conta que Neno escolheu o sindicalismo revolucionário somente como meio qualificado para alcançar o anarquismo. E sua estratégia imediata era a ação-direta. Diante disso, o jornalista se mostrava contra a crença do anarquismo-sindicalista de achar que o “sindicalismo bastava a si mesmo”, pois para ele este era apenas uma tática, tendo sempre o cuidado de não perder de vista que a verdadeira luta era entre classes e não dentro de uma corporação que buscasse privilégios e reformas para si. Diante disso, podemos pensar alguns elementos que nos surgem a partir da contemporaneidade política brasileira:

Boito Júnior (2003) considera que a ascensão do PT à presidência representou a posteriori um retrocesso na luta dos movimentos sindicalistas e conjuntamente a descrença nestas instituições. Atualmente, por conta dos aumentos salariais e conquistas corporativas, os líderes sindicais de outrora “batem” de carro do ano, moram em lugares bem localizados no ABC, seus filhos estudam em escolas particulares e não precisam acessar a rede pública de saúde, pois possuem planos particulares conveniados. Enquanto isso, membros dos movimentos sociais e o resto do povão, cujos nomes foram usados na luta política, ainda estão na pendenga. Neste sentido, para Neno, o sindicalismo era somente uma “ginástica revolucionária”, nunca poderia fechar em suas questões.

Neno, como nos mostra Thiago, era contra a entrada de socialistas na política por via parlamentar. Ele dizia que a questão social nunca podia ser resolvida de tal maneira, pois este era o lugar onde as classes dominantes ocupavam e as causas operárias eram abafadas. O insucesso de Proudhon como deputado é emblemático nesse caso. Quando este anarquista tentou levar projetos populares para a assembleia, todos o revogaram. As propostas de Proudhon, o denominariam como "homem terror", segundo Samis [1]. A crítica de Neno aos socialistas portugueses foi quase uma profecia, pois os socialistas só conseguiram entrar na democracia burguesa fazendo lobbies e uniões com partidos distantes da causa proletária. Este fato escorre para duas problemáticas contemporâneas.

Temos assistido as manifestações pela saída do governador goiano Marconi Perillo (PSDB) por estar envolvido em esquemas de corrupção. Mas, nos perguntamos: se ele sair será que vai mudar muita coisa? Tira-se um, coloca-se outro! É como se o povo acreditasse que o mal está na pessoa e não no complexo que o cerca e o torna assim. A crítica de Bakunin (2003), quando respondia os marxistas, é certeira e pode ser usada para nosso propósito. Bakunin escreve:

Sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas si mesmo e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.

Outra questão problemática é a formação de aliança para conseguir um determinado posto político. Neste caso, a presidente Dilma Rousseff pagou caro. O PT aliou-se ao PMDB, PL e outras carniças e prometeu cargos públicos como ministérios para seus aliados; deu no que deu! Acontece que os ministros também escolhem assessores, uns 50 (?), que são seus amigos, familiares, comparsas e trutas, em vez de pessoas concursadas e competentes para exercer as funções (se é que isso é possível, mas vamos nessa lógica). Quando ocorrem esquemas de mensalão, e outros desvios de grana do povo, os funcionários públicos não tem compromisso com nada além daqueles que lhes colocaram naqueles lugares, portanto, não denunciam. Estão de rabo preso. E assim o povo brasileiro é enrolado.

Outro tema do anarquismo tratado no trabalho se refere ao imediatismo pós-revolucionário. Neno discorda dos anarquistas comunistas que acreditam que o comunismo será instantâneo depois da revolução. Para ele existirá um estado de transição, chamado de socialismo libertário. Diferente das teses dos comunistas que querem organizar partidos, tomar o poder do Estado e da indústria para promover a abundância. Neno advoga que será necessária a coexistência do comunismo e do coletivismo, pois: “os produtos de primeira utilidade deveriam ser distribuídos conforme a necessidade, tal como preconizavam a fórmula comunista, e os outros provisoriamente adquiridos por meio de uma taxa suplementar de trabalho, tal como preconizava a fórmula coletivista, até que se tornassem abundantes” (SILVA, 2012, p. 111).

O Neno Vasco de Thiago L. Silva trata outras questões bastante importantes, mas não vou estendê-las no post - que já está por demais grande. Uma prévia de assuntos para vocês lerem a dissertação: Feminismo atrelado às questões sociais; Primeira Guerra Mundial e o posicionamento dos anarquistas; O terreno incerto da luta junto aos bolcheviques na Revolução Russa; A experiência de educação integral posta em prática em Portugal; O anti-terrorismo de Neno; e Questões sobre a polícia punir crimes políticos e comuns do mesmo modo.

Podemos considerar por último que o autor deu um destaque principal à ética de Neno Vasco, que renegou tanto os benefícios da carreira de advogado, como viver se escorando na renda do pai e de familiares, passando por grandes dificuldades financeiras, pois não admitia defender uma teoria sem praticá-la. E aí, quem está disposto a fazer da vida uma obra de arte como Neno fez?

Referências:

BOITO JÚNIOR, Arnaldo. A hegemonia neoliberal no governo Lula. Revista Crítica Marxista. Rio de Janeiro, n° 17, Editora Revan, 2003.
BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003.
BAKUNIN, Mikhail. A igreja e o Estado. In: Textos anarquistas. Seleção e notas Daniel Guérin; tradução de Zilá Bernd. Porto Alegre: L&PM, 2006.
KROPOTKIN, Piotr. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário, 2005.
ROCKER, Rudolf. A ideologia do anarquismo. São Paulo: Faísca, 2005.
SAMIS, Alexandre. Negras tormentas: o federalismo e o internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011.
SILVA, Thiago Lemos. Fragmentos biográficos de um anarquista na Porta da Europa: a escrita cronística como escrita de si em Neno Vasco. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2012. Trabalho disponibilizado online: Click aqui.

[1] A principal proposta de Proudhon era substituir a propriedade pela posse, ou seja, o capital que extraí valor de onde não tem, pelo direito de uso daquele que trabalha nele. O deputado recebeu, além de vaias, 600 votos contra e somente 2 a favor. Proudhon era também crítico do sufrágio universal por conta deste garantir uma justificativa de alijamento do povo baseado numa suposta "vontade geral".

terça-feira, 17 de abril de 2012

Fábula dos sistemas filosóficos políticos

Era uma vez uma piscina de água quente chamada Iluminismo. E como era bela e atraente. Acreditava-se que ali seria mesmo o paraíso propício para nascer e crescer os seres e as coisas mais genuínas e iluminadas. Suas águas eram límpidas, asseadas e refletiam a luz do sol. Assim como o mundo nasceu das águas fervilhantes e precisou de um certo resfriamento para formar os seres sólidos, o primeiro sistema filosófico nasceu a partir do esfriar das águas desta piscina. Ele se chamava Liberalismo. Sujeito franco, com ar aristocrático, despojado e muito inteligente das coisas que se passavam naquela piscina. Suas ideias encantavam a todos e causava medos nos que não ousavam entrar na piscina, no Iluminismo. Defendia liberdades, já crescido, com sua grandeza e força aos poucos conseguiu expulsar para longe os intrusos que o espreitavam a beira da piscina sem nela nunca terem entrado. Enfim, podia ser soberano naquele lugar e em toda redondeza terrena a sua volta.

Mas após certo tempo as coisas começaram a desandar. Problemas apareceram. Os planos de soberania do Liberalismo não saíram da maneira planejada. Ele acreditava que a essência dos seres era boa, mas ao ver que alguns descontentes estavam sujando as águas do Iluminismo, pois não viam justiça em suas regras, começara a usar sua corpulência e autoridade para punir os infratores e os descontentes. O sangue derramado por sua violência fez nascer alguns pequenos sistemas filosóficos políticos como o Fourierismo e o Saint-Simonismo, porém, apesar de resmungarem ideias aparentemente mais igualitárias não conseguiram viver muito tempo para derrubar o Liberalismo. Contudo, os problemas se seguiam, e quanto mais violência para resolvê-los, mais suja a água ficava e menos refletia a luz. Até que nasceu um outro sistema filosófico, o Anarquismo. Sujeito revoltado que praguejava aos quatro ventos, reclamava da situação daquele lugar e do insucesso dos outros sistemas filosóficos, acusava o Liberalismo de autoritário e egoísta. Mas apesar do espírito eruptivo, o Anarquismo no fundo tinha um bom coração, uma solidariedade ímpar e um olhar esperançoso muito parecido com o do Iluminismo na infância. O Anarquismo tinha um plano excelente, mas aparentemente irrealizável para limpar as águas da piscina. Pois, para que desse certo era preciso que o Liberalismo se desfizesse de seus privilégios e de seu autoritarismo, pois ele entendia que a solução para os problemas era dar mais liberdade e igualdade, enquanto, o Liberalismo já estava convicto de que a liberdade sem coerção era um mal.

Mesmo que o Anarquismo interpelasse os outros eles não acreditavam em seus sonhos, pois diziam que as águas jamais seriam limpas. O Liberalismo, muito maior e, já impaciente com o Anarquismo lhe deu algumas bofetadas. Mas o Anarquismo teria agora um parceiro com que podia unir forças, nascera o Marxismo. Sujeito inteligente, crítico, tinha um forte poder de persuasão, entendido das realidades nas profundezas das águas, possuía ideias igualitárias que propunham a limpeza das águas, porém bastante burocráticas e que teriam que passar diretamente por sua arrogância de sabedoria. O Marxismo era mesmo de dar nos nervos, rapaz brigão, sempre arrumando confusão, mesmo menor que o Anarquismo lhe deu vários socos na cara. E o Anarquismo como um bom cão voltava a ter amizade com ele.

Durante uma época de bastante sujeira nas águas, o Liberalismo aparentemente infectado ficara doente. O Marxismo e o Anarquismo aproveitaram para lhe encher de porrada e tomar um pedaço considerável da piscina. Foi então que o Anarquismo viu quem era seu amigo, pois quando tentou estabelecer um diálogo com suas ideias, o Marxismo, agora mais forte e soberbo, lhe espancou como nunca antes e expulsou-o de seu lado dominado. Assim, o Anarquismo teve que voltar para o lado do Liberalismo, que era mais resiliente e permissivo. Após este acontecimento o Marxismo construiu um muro para salvaguardar seu mundo particular, mas era um muro baixo que permitia olhar para o “quintal” do vizinho e até tramar uma futura invasão. O Marxismo propôs a limpeza das águas, mas seu plano era algo autoritário e que parecia não terminar nunca. Era necessário obedecer com sofreguidão suas regras.

E enquanto isso, o Iluminismo estava cada vez mais sujo e obscuro. Nem de longe parecia o paraíso como dantes. O Liberalismo doente e exercendo mal sua soberania, deu possibilidade para o nascimento de outro sujeito. Atendia-se pelo nome de Nazismo. Queiram vocês não conhecê-lo jamais. Mas era também, como os outros, filho do Iluminismo e nascera de suas águas (já sujas, é verdade). Nazismo era um sujeito autoritário, possuía uma mistura de sapiência e misticismo estranha, porém seu poder de persuasão e a crise que atravessavam todos na piscina possibilitaram sua ascensão. Foi crescendo aos poucos e suas práticas operavam sob um silêncio sepulcral. A propaganda em seu favor era muito forte, sua dominação em determinada área da piscina era como no balanço de um pêndulo hipnótico.

A partir de certo tempo o crescimento do Nazismo estabeleceu companheiros tão autoritários e violentos quanto ele, o Fascismo era um desses. Sua hegemonia começou a preocupar o Marxismo e o Liberalismo, seus eternos rivais. Foi então que o Nazismo aproveitando da doença do Liberalismo começou a avançar sobre sua área usando de métodos de horror explícito. Foi preciso, por isso, uma união impensável, entre Marxismo e Liberalismo para que as águas uma vez límpidas do Iluminismo não se tornassem negras de tanto sangue. Graças ao Marxismo, forte e guerreiro, e a inteligência e experiência do Liberalismo, o Nazismo e o Fascismo foram derrotados. Contudo, alguns filhos militares ilegítimos ainda apareceram, como o Franquismo, o Salazarismo e o Costa-e-Silvismo sob a resiliência do Liberalismo.

Depois desta longa batalha, o Liberalismo conseguiu recuperar sua saúde, ainda a duras penas, é verdade. Durante longos anos dividiu com o Marxismo a hegemonia da piscina. Mas as águas estavam sujas para ambos os lados. Com o passar do tempo, o autoritarismo do Marxismo foi aumentando e seu plano de limpeza nunca chegava ao fim, foi então que aqueles que moravam do seu lado começaram a olhar por cima do muro. E do lado de lá enxergavam um líquido que não tinha no mundo de cá. Convenhamos que dentro de uma piscina de água quente um líquido gelado cai muito bem. Esse líquido de cor negra, que chamavam de Coca-Cola, era a maior propaganda do Liberalismo. Descontentes, os marxistas quebraram o muro que os separavam dos liberais e puseram fim ao sonho de uma sociedade igualitária (que não era nada igual até aquele momento). Enfim, puderam experimentar a Coca-Cola. A piscina passava novamente disposta à soberania do Liberalismo com uns pequenos focos dos filhos do Marxismo.

Mas o Liberalismo sofreu fortes abalos e quase teve uma parada cardíaca há pouco tempo. O Anarquismo que esteve sumido durante muito tempo é olhado com mais cautela nos tempos safados. Mas alguns dizem que ele precisa se libertar dessa piscina, se reinventar, desistir dos sonhos de uma piscina eternamente limpa aceitando que o lodo que se forma em seu chão é um ser natural e irremovível. Seria então melhor sair logo desta piscina. Alguém te estende à mão do lado de fora. É o Pós-Estruturalismo, rapazinho desacreditado da piscina, odeia líquido, prefere o ar, nem fez questão de entrar na água. E mesmo sem nela ter mergulhado já xingou o Liberalismo de santo e rapadura e colocou em vexame o Marxismo, que por sua vez, está dramaticamente se afogando e às vezes estende a mão na superfície pedindo socorro ao velho amigo surrado Anarquismo, enquanto o Liberalismo assiste a cena de digna de Hollywood num canto da piscina.

O Pós-Estruturalismo grita para que o Anarquismo não salve o Marxismo, mas o Anarquismo muito confuso e generoso fica em dúvida. O Anarquismo tem vários “eus” dentro de si, uns pedem para salvar o Marxismo e novamente travar batalha contra o Liberalismo pela hegemonia da piscina, mas outros “eus” querem sumir daquele lugar e montar moradia em outro local que não seja aguado demais. Em contrapartida, o Pós-Estruturalismo não tem nenhum projeto coletivo, não visa uma utopia, só quer sair dali e ver os que ficaram na piscina se afogarem a qualquer momento. O que fará o Anarquismo? O que acontecerá na piscina? Isso só os deuses do tempo nos dirão.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A Comuna de Paris: retornar à história

Na última sexta assisti à palestra de Alexandre Samis: membro da Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ), doutor em História pela UFF, professor do Colégio Pedro II no Rio e um conhecido pesquisador do anarquismo, autor de alguns livros sobre o assunto.¹ O tema da palestra foi a Comuna de Paris, sua pesquisa atual, já publicada no livro Negras Tormentas: federalismo e internacionalismo na Comuna de Paris.² Neste post farei um esboço dos pontos que me chamaram atenção na palestra.
 
Para quem desconhece completamente a Comuna de Paris, vale resumir o que ela foi: um governo autogestionário e descentralizado na França, em 1871, durante a guerra franco-prussiana. Infelizmente esta experiência operária e socialista durou somente quarenta dias. Isto é, durou até quando as tropas de Thiers (presidente da Terceira República francesa) conseguiram penetrar à comuna e promover a execução de cerca de 20 mil pessoas, torturando e prendendo outras 40 mil.

A exposição de Samis destacou o contexto histórico que gestou a possibilidade da Comuna. Desde Proudhon os movimentos sociais revestiram-se das ideias federalistas de organização social e política. O contato entre mutualistas proudhonianos e coletivistas (sobretudo, Varlin e Bakunin) durante encontros da Primeira Internacional proporcionou o florescimento de um socialismo antiautoritário, o qual se contrapunha ao centralismo dos projetos blanquistas e marxistas. Pode-se dizer que, por meio desta troca de experiências e da contrariedade ao socialismo de Estado, pela primeira vez um grupo de ativistas se assumiu anarquista (embora a "anarquia" ainda fosse uma categorização pejorativa usada principalmente por Marx e Engels com o intuito de atacar aqueles que criticavam as propostas de Estado de transição, de governo revolucionário e de constituição de partido político).

Varlin era membro da guarda nacional parisiense e sua participação foi decisiva por mobilizar forças dentro desta instituição militar que, a partir de certo momento, expulsou os membros da prefeitura de Paris e tomou a administração pública. A maioria da tropa da guarda nacional era composta por operários e pequenos burgueses, socialistas e jacobinos. Neste instante, com as armas na mão e a pátria se acovardando mediocremente na guerra contra a Prússia, o povo tinha então a possibilidade de fundar um novo governo. Quando Thiers percebeu esse jogo de forças contrário à sua autoridade, ele determinou a contenção do material bélico durante a surdina da madrugada. Mas já era tarde. A massa agora estava no controle. Para Kropotkin:
"a derrubada do poder central ocorreu, mesmo sem encenação comum de uma revolução: naquele dia, não houve tiros de fuzil nem rios de sangue derramado atrás das barricadas. Os governantes eclipsaram-se diante do povo armado que descera à rua. [...] Paris, mal tendo derramado uma gota de sangue dos seus filhos, encontrou-se livre da imundície que empesteava a grande cidade. No entanto, a revolução que acabava de realizar-se, abria uma nova era na série das revoluções, pelas quais os povos caminhavam da escravidão à liberdade. Sob o nome de Comuna de Paris, nasceu uma nova ideia, destinada a tornar-se o ponto de partida para as futuras revoluções" (2005, p. 101).
Assim, as ideias federalistas dos internacionalistas foram postas em prática neste novo governo: houve coletivização dos bens de produção; redução da jornada de trabalho; a educação se tornou gratuita; imagens clericais e estátuas de representantes políticos foram destruídas; em lugar dos cultos e ritos, as igrejas passaram a funcionar como grupos de discussão; o salário dos professores tornou-se o maior entre todas as profissões; eleições foram baseadas na democracia direta; no lugar da bandeira tricolor, uma nova foi assumida (agora vermelha); além de outras medidas.

Louise Michel
Mesmo as mulheres ainda não tendo direito ao voto, resquício do machismo naturalizado da época, seus papéis na sociedade foram valorizados. Muitas delas passaram a integrar a guarda revolucionária, bem como discutiam de igual para igual com os homens. A mais conhecida, sem dúvida, foi Louise Michel: ativista reivindicada como símbolo por diferentes vertentes da esquerda contemporânea e um ícone do feminismo.

Entretanto, após muitas tentativas frustradas dos soldados de Thiers (“refugiado” no Palácio de Versalhes) em retomar Paris, a França fez acordo de paz com a Prússia a fim de derrotar a Comuna. Neste sentido, foram libertados prisioneiros de guerra para atuarem na derrubada do autogoverno parisiense. E a comuna nada pode fazer diante do enorme contingente de soldados que marchavam rumo à sua destruição. Varlin foi executado brutalmente e se tornou um mártir dos movimentos socialistas europeus. O sonho da Comuna de Paris havia acabado, mas no pensamento de milhares de operários ficou a possibilidade (agora experimentada) do surgimento de outro regime de autogestão como afirmará Bakunin:
"Sou partidário da Comuna de Paris que, por ter sido massacrada, sufocada em sangue pelos carrascos da reação monárquica e clerical, tornou-se mais viva, mais poderosa na imaginação e no coração do proletariado na Europa; sou seu partidário, sobretudo porque ela foi uma negação audaciosa, bem pronunciada do Estado" (2006, p. 139).
Atualmente a Comuna tem sido motivo frequente disputa entre as vertentes de esquerda: na tentativa de sacralizar um mito histórico em favor de suas propagandas ideológicas. No entanto Samis fez questão de destacar a impossibilidade em afirmar que a Comuna de Paris foi uma experiência de sociedade "anarquista", mas tampouco foi "marxista" ou de qualquer outra tendência hegemônica. O que aconteceu em Paris foi uma organização social libertária e plural. Assim, mesmo que a maioria dos participantes optasse pelo centralismo, a minoria federalista a convenceu pela adoção da descentralização política. Desta forma Bakunin ressaltará à efemeridade daquela instituição: 
"É preciso reconhecer, a maioria dos membros da comuna não eram propriamente socialistas e, se agiram como tal, é que foram invencivelmente levados pela força irresistível das coisas, pela natureza de seu meio, pelas necessidades de sua posição, e não pela íntima convicção" (2006, p. 140).

Referências:

BAKUNIN, M. Textos anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 2006.
KROPOTKIN, P. Palavras de um revoltado. São Paulo: Imaginário, 2005.

[1] Clevelândia: anarquismo, sindicalismo e repressão política no Brasil. São Paulo: Imaginário, 2002.
Minha Pátria é o Mundo Inteiro: Neno Vasco, o anarquismo e o sindicalismo revolucionário em dois mundos. Lisboa: Letra Livre, 2009.
[2] São Paulo: Editora Hedra, 2011.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

The Walking Dead: uma perspectiva da vida após o fim do mundo.

A série americana que bateu todos os recordes de audiência da TV a cabo na terra do Tio Sam, The Walking Dead (uma adaptação cinematográfica das histórias em quadrinhos de Robert Kirkman) vem conquistando fãs brasileiros e traz alguns elementos interessantes para discutirmos a representação da vida pós-apocalíptica. Para quem nunca assistiu, o enredo principal é o seguinte: o protagonista (xerife de uma pequena cidade) acorda de um coma e se depara com hospital e cidade vazios. Ele (Rick Grimes) descobre que um surto – sabe-se lá do quê – infectou quase toda a população e as pessoas que morreram viraram zumbis, restando apenas poucos sobreviventes agora. Sem energia e sem telecomunicações o mundo vira um caos e qualquer barulho pode atrair uma multidão de zumbis que arrancam suas tripas à luz do dia. Em um dos episódios Rick consegue encontrar sua família (mulher e filho) que estão junto de um grupo de pessoas buscando o apoio mútuo como fator de sobrevivência. [Agora, atenção, o texto abaixo contém muitos spoilers da primeira e da segunda temporada da série.]

Os sobreviventes habitam agora o cenário depois do apocalipse, e que parece bem pior do que o juízo final cristão. Aliás, tal lugar é a inversão dos sonhos revolucionários. O “novo” é bem pior do que o antigo. A Nova Jerusalém dos cristãos (ou o comunismo) passa mais próxima da descrição do Inferno de Dante. Mas nem tudo mudou. A sociedade ainda tem classes. E são duas: os vivos e os mortos-vivos. Os vivos são a minoria nada privilegiada agora, mas a guerra (a luta de classes) continua.

A rediscussão dos valores “humanos” é significativamente enfatizada na série. Num mundo assim (como o nosso?) ser “bonzinho” pode representar a morte. Esse aspecto é bem trabalhado quando um avarento recusa comida a recentes (des)conhecidos e, também, quando um fazendeiro reluta em abrigar o grupo em sua casa. Esse mesmo fazendeiro é também um veterinário metido a médico que acredita que os membros de sua família que viraram zumbis não morreram, mas só ficaram doentes. Por isso ele “guarda” dentro do celeiro seus familiares “doentes” e outros zumbis que entram em sua fazenda. O ponto de vista dele nos põe a pensar melhor sobre a possibilidade de salvar aquelas pessoas antes de liquidá-las de vez com um tiro na cabeça e ressalta também nosso apego ao corpóreo. É interessante porque os espectadores da série não aceitam tamanha “burrice” (altruísmo?) do médico-veterinário. A maioria dos personagens da série pensa igual. Mas existe um senhor no grupo que questiona se os vivos já não perderam sua humanidade há muito tempo e se não ficaram tão cruéis quanto os zumbis que querem seu sangue.

O princípio do bem-viver (ética) e os valores morais religiosos já não valem mais nada nesse horizonte, representam antes um atraso onde o maquiavelismo passa a ser a bola da vez. E de fato, o público passa a admirar o mais maquiavélico, o anti-herói, que é representado por Shane, amigo do xerife, também ex-policial, que num dos episódios “mata um vivo” para servir de isca para os zumbis e enquanto ele pode escapar ileso.

A verdade é que a mudança das condições no ambiente favorecem aspectos da personalidade antes considerados problemáticos, como a agressividade e a frieza para matar. Os anormais se tornam normais. Trazendo para nossa realidade podemos exemplificar o caso das pessoas com Síndrome de Down. Sabe-se que elas possuem um cromossomo a mais, num determinado par que faz com que sejam sexualmente estéreis, mas em determinadas condições ambientais onde a emissão de radiação é maior a situação muda de figura. Pois nesses casos são eles que podem reproduzir e, nós, os normais, só assistiremos a perpetuação da espécie. A biologia postula que essa criação é como um plano B da espécie humana. Contudo no caso de Shane o aspecto é muito mais cultural do que biológico. Desde o primeiro episódio ele apresenta traços históricos significativos de potencialidade para matar.

A questão da solidão também é algo para se pensar no "mundo pós-fim do mundo". Afinal os casais ficam bastante propícios para se apaixonarem e para fazer sexo, é claro. É o que acontece com um casal que relembra a piada de Adão e Eva no paraíso. “Existem poucas pessoas no mundo e nunca se sabe quando morreremos, então é melhor gastarmos essa caixa de camisinhas logo” - a moça bonita diz para o entregador de pizzas coreano.

Por que a série nos atrai tanto? Acredito que pelo fato dela expor de maneira extrema e caricatural a sociedade contemporânea na luta pela sobrevivência do mais esperto, utilizando quaisquer armas disponíveis. A ausência das leis e a descrença na religião exacerbam o desejo pela ausência de punição e controle em nossa sociedade disciplinar, um lugar onde não existe mais um super-ego castigador e a consciência está livre (para matar?). Em contrapartida essa sociedade de The Walking Dead pode ser lida como o inverso. Como aquela que nos atrai por mostrar quão mais animada pode ser a vida longe da apatia cotidiana que nos cerca. Seríamos então nós os zumbis dos tempos safados? Parasitas se alimentando do sangue de outros e perambulando pelas avenidas movimentadas como seres desprezíveis. Será que nos reconhecemos nos zumbis ou nos vivos?

Mesmo os personagens se questionando se vale a pena estarem vivos num lugar desses e alguns escolhendo o suicídio, um determinado princípio básico continua valendo para os dois mundos: a autopreservação da vida. Bergson conta que o organismo vivente faz de tudo para se manter vivo, e reluta mesmo diante da escolha “cultural” (ou psicológica) de se aniquilar. Diz-se que alguém que tenta suicídio por enforcamento só morre se não houver possibilidade alguma do organismo se salvar, mesmo que o cérebro não queira. Se por acaso os pés tocarem ao chão um pouco que seja, o suicida pode desmaiar e recuperar a consciência logo depois. A vida nua (zoé), ou seja, a vida despossuída de cultura faz de tudo para manter sua sobrevivência. Mas a vida cultural às vezes joga contra o instinto. São os casos de suicídios que Durkheim classificou de egoísta, altruísta e anômico. Todos culturais. Não se sabe de animais que se suicidam.

Em algumas culturas a desonra pode levar o indivíduo à escolha do suicídio (como o haraquiri e a falência financeira), a luta pela nacionalidade ou por uma causa (os kamikazes, os homens-bombas, os regicidas confessos, os auto-imolados e o recente caso do cidadão grego), a morte de alguém ou desilusão por algo que com o qual escolheu levar vida em função (o caso do filósofo André Gorz que cometeu suicídio após a morte da esposa), mas uma situação em especial chama muito a atenção: o suicídio coletivo. Tenho dois exemplos ilustrativos. O caso dos índios kaiowas (no centro-oeste do Brasil), que suicidaram em protesto às invasões dos brancos a suas terras e a impotência diante da situação, tal acontecimento mereceu referência numa musica da banda Sepultura (irônico e trágico). Agora, sem dúvida, o mais espantoso, que chamou atenção de todo o mundo, foi o obscuro suicídio coletivo na Guiana inglesa, em 1978, onde a participação de um líder religioso, Jim Jones (imagem acima), foi preponderante. As centenas de corpos espalhados no chão lembram o cenário de The Walking Dead. E o que seria de nossas crenças religiosas e científicas se eles resolvessem levantar?

Assista à reportagem da época sobre o caso: https://www.youtube.com/watch?v=gEemJmzhcac
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terça-feira, 3 de abril de 2012

Anarquismo e sua polissemia

Atualmente desenvolvo uma pesquisa acadêmica sobre a história do anarquismo, mas venho enfrentando tensos problemas que muitas vezes me impedem de avançar em outras discussões. Hoje, quero nesse post compartilhar pelo menos um desses problemas históricos: os múltiplos significados de “anarquia” e de “anarquismo”.

Desta vez não vou começar pelos anarquistas, mas pelos filósofos gregos. Com os filósofos pré-socráticos a palavra grega arkhé (dependendo da transliteração arkhê, arché ou archai) significa princípio, origem, relativa a uma determinada “entidade” sempre presente na existência de todos os seres. Heráclito, por exemplo, acreditava que a arkhé de todos os seres (orgânicos e inorgânicos) era a substância do fogo, que nunca era idêntico, mas sempre era o mesmo, se renovando em si mesmo. Entretanto, arkhé não significa apenas princípio, como sinônimo de começo, mas também quer dizer comando, como aquilo que governa. Grosso modo, pela lógica linguística (direta) podemos dizer então que a an-arkhé é a recusa do princípio natural presente em todos os seres (ou seja, a desigualdade entre todos os seres), correlativa por isso a impossibilidade de governo fundado sob a arkhé. Pois bem, mas o que disseram os anarquistas, que apareceram no século 19, não foi bem isso.

Proudhon (1840), o primeiro desses caras, confessa em seu livro que existe um princípio natural de organização da sociedade, sem necessidade de haver autoridade sobre a sociedade. A defesa de Proudhon é uma contradição em termos, pois se não existe autoridade que governa, então não existe princípio natural de ordem, pois esse já seria uma autoridade (transcendente), mesmo que seja metafísica. A anarquia aqui é, portanto, a negação da an-arkhé. Antes de Proudhon, o significado de anarquia nos círculos políticos era relativo à desordem, ao caos, à falta de princípio e ao desgoverno. Com Proudhon, a anarquia deixa de ter esse sentido pejorativo e passa a significar a ordem natural das coisas, o princípio que elas obedecem espontaneamente sem necessidade de autoridade (humana); a partir daí a “anarquia é a ordem”. Fiquem com o filósofo:

Anarquia, ausência de mestre, de soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e a sua vontade por lei nos faz olhar com o cúmulo da desordem e a expressão do caos. [...] como o homem procura a justiça na igualdade, a sociedade procura a ordem na anarquia (PROUDHON, 1975, p. 239).

Em vida, Proudhon, não foi reconhecido como anarquista, mas como mutualista. O mutualismo era uma defesa da forma de organização social que ele propôs. Uma espécie de fraternidade na troca espontânea das faculdades humanas que nos tornavam diferentes. Dizia - ele - que a igualdade ia ser atingida pela desigualdade (das aptidões e atributos), pelo comércio (no sentido de reciprocidade) entre os homens.

O anarquismo teve uma história de várias arkhés. Na cronologia tradicional, Bakunin (1968) deu o segundo passo. Através da inspiração das ideias e dos seguidores (mutualistas) de Proudhon e em contraposição às teses socialistas de Marx, consideradas autoritárias, Bakunin reuniu pela primeira vez um grupo que não tinha medo de se assumir anarquista. O problema é que algumas importantes ideias de Bakunin eram bem diferentes das de Proudhon. Se entendermos o anarquismo como sinônimo de tudo o que é revolucionário no sentido clássico, que prega a coletivização dos instrumentos de produção (as máquinas, as ferramentas, a terra, etc.), que defende a conspiração para abolir o Estado e a violência como prática política caso necessária, então esse anarquismo é o de Bakunin. Proudhon era contra todos estes postulados, ele acreditava na revolução como um progresso evolutivo sem necessidade de violência e do uso de força, pois era preciso que as pessoas quisessem abolir o Estado e transformar a sociedade. Antes de fazer era preciso querer. Pois, para ele, Tomar tudo a força representava um autoritarismo contra-revolucionário, um contrassenso, um retrocesso.

Depois de Proudhon e Bakunin vieram outros pensadores que reformaram (ou modificaram) suas ideias. Como os anarquistas comunistas Kropotkin, Reclus e Malatesta. Estes, sem dúvida, mais próximos do socialismo marxista no âmbito comum de um "fim da história" a ser alcançado. Apareceram mais correntes, que alteraram significativamente as ideias, de diferentes inspirações e lugares: o anarquismo sindicalista (Durruti-Espanha), o anarquismo cristão (seguidores de Tolstoi-Rússia), o anarquismo individualista (B. Tucker-EUA), o anarquismo primitivista (John Zerzan-EUA), o anarquismo caótico (Hakin Bey-EUA), o anarquismo anti-psiquiátrico(?) (Roberto Freire-Brasil), o anarquismo terrorista (Ravachol-França). Conta-se também que as ideias e/ou as práticas políticas de alguns pensadores e militantes fizeram com a historiografia os adotassem como anarquistas. Mesmo que o anarquismo histórico (como doutrina) ainda não tivesse tomado corpo, como é caso de Godwin, Stirner, Thoreau, Warren, até Jesus Cristo. Ou aqueles que não se reconheceram como anarquistas (já a partir da existência da doutrina), é o caso de Tolstoi, Ghandi, Foucault e outros tantos.

As mídias capitalistas e socialistas-marxista (e também nazista) ajudaram bastante na construção do imaginário social sobre o anarquismo: visto pejorativamente como atrasado, utópico ou sanguinolento. O anarquismo é ainda correntemente vinculado à desordem, à baderna, à ausência de regras, ao terrorismo e ao vandalismo. É verdade que, em alguns desses aspectos, os movimentos urbanos do século 20 tiveram uma parcela de responsabilidade por essa imagem. Sobretudo, os anarco-punks e o black bloc (imagem à esquerda). Mas é preciso dizer que os militantes "tradicionais" brasileiros condenaram determinadas atitudes e comportamentos vistos como sinais de degeneração e de estupidez. O anarquismo do início do século 20 no Brasil tinha inclusive uma moral bem rígida, era contra as festas, as bebedeiras e até as práticas desportivas; visto como desperdício de energia e de aburguesamento da vida. Em todo caso, acredito que a identificação dos anarco-punks com o anarquismo se deu mais por conta da polissemia do conceito. Eles de fato eram muito mais anárquicos que os anarquistas, se entendermos a conotação do anarquismo como “sem governantes” e “sem princípios”, o que não pode gerar nem uma ordem e nem uma desordem, mas somente "ser" uma condição.

Além das transformações históricas intrínsecas a todo conceito, as práticas discursivas de historiadores, da mídia e de militantes do movimento, como também os limiares da história do anarquismo (enquanto doutrina ou “escola de pensamento”) contribuíram significativamente para que houvesse uma polissemia ainda maior do conceito.

Conheci ótimas pessoas e fiz valiosos amigos no meio anarquista. Mas, ainda hoje, há no Brasil e no mundo uma briga fratricida entre os anarquistas, cada qual querendo justificar a maior autoridade ou fidelidade de sua filosofia e ética ao anarquismo. Discordam de quase tudo entre si e muitas vezes (talvez por isso) não reconhecem os outros grupos como anarquistas. Por trás de uma bela e atraente filosofia que acredita no homem e na construção de um mundo melhor, um cheiro insuportável de autoridade que nunca prescindiu do anarquismo paira no ar “libertário”.


Referências:

PROUDHON. O que é a propriedade? Tradução: Marília Caeiro. 2ª edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1975.
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