Na produção do historiador francês Roger Chartier, o
conceito de representação está entre
os mais importantes. O autor recorre ao dicionário de Furetière (1727) para
descrever dois significados de representação: 1ª) a representação faz ver uma ausência, “o que supõe uma
distinção clara entre o que representa e o que é representado”; 2ª) noutra
acepção, “é a apresentação de uma
presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa”; quer
dizer, são modos de exibição. Na primeira é um instrumento que substitui o
objeto ausente, capaz de repô-lo na memória e de “pintá-lo” como é. É o caso
dos bonecos de cera que representavam os monarcas mortos em seus velórios.
Outros têm uma relação meramente simbólica, como o leão, símbolo do valor. “Uma
relação decifrável é, portanto, postulada entre o signo visível e o referente
significado – o que não quer dizer, é claro, que é necessariamente decifrado
tal qual deveria ser” (CHARTIER, 1991, p. 184). Isso coloca em discussão as
maneiras comunicativas de compreensão dos significados referentes através dos
signos visíveis, abrindo um leque para múltiplas apropriações.
Porém, o maior problema é a segunda acepção, quando o signo toma o lugar do significado,
onde a substituição pela imagem se torna a verdade do objeto. Pensando o jogo
de forças na constituição dessas relações cognitivas, as possíveis
incompreensões da representação podem acontecer por falta de “preparação do
leitor” ou pela extravagância de uma relação arbitrária entre signo e
significado – que põem em discussão as condições de produção das equivalências
admitidas e partilhadas. As formas de teatralização social da vida no Antigo
Regime mostram o quanto isso pode ser perverso. Todas visam fazer com que a
coisa não tenha existência a não ser na imagem que exibe, e a representação
mascare ao invés de pintar adequadamente o que é referente. Aqui os signos são destinados a produzir
ilusão.
Por isso a representação – e as disputas por ela – tem um
valor relevante no Absolutismo europeu. Os médicos e os juízes se apresentavam
bem trajados, com suas togas, pantufas e vestimentas nobres, para impor
respeito e fazer crer sobre seus poderes de cura e de decisão sobre a vida dos
homens. Essa luta por dominação e autoimposição, ao invés de recorrer à força,
recorre à aparência – dominação através da violência
simbólica. Chartier compreende três maneiras possíveis para a articulação
do conceito de representação coletiva: 1ª) o trabalho de classificação, através
das ferramentas intelectuais, que possibilita a construção da realidade pelos
diferentes grupos sociais que a compõem; 2ª) as práticas que visam reconhecer
uma identidade social, uma maneira própria de ser no mundo, de significar
simbolicamente um estatuto e uma posição; 3ª) e as formas institucionalizadas
nas quais as “esperas do poder político” – e seus responsáveis – classificam,
marcam, delimitam de modo visível a existência de um grupo, de uma comunidade,
de uma classe.
A história cultural abre-se para pensar a construção das
identidades sociais como resultados de relações de força entre os que têm o
poder de classificação, de aceitação e de resistência dentro da comunidade. Mas
também, outra na qual o grupo confere a si mesmo, produz para si numa
demonstração de unidade. No trabalho de entender o ordenamento, a história
cultural rompe com a (noção “materialista” de) dependência do econômico que rege a história social, mas retorna
ao social ao tentar compreender a produção simbólica de posições e relações
construídas para cada classe, grupo ou meio, de suas identidades (1991, p.
183).
Campesinos franceses representados por Julien Dupré |
As representações coletivas são “instituições sociais” forjadas pelos agrupamentos humanos que
constroem através delas suas matrizes de entendimentos e de classificações da
realidade. Contudo, as percepções do social nunca são discursos neutros, pelo contrário, querem impor sua
autoridade à custa dos outros, ou justificar suas escolhas e condutas.
Configura, por isso, relações de poder e
de dominação, assim como nas lutas econômicas (2002, p. 17). O trabalho com
o conceito de representação confere a possibilidade de apreender a maneira como
um grupo reconhece e simboliza o outro. Chartier, por exemplo, analisa
documentos paroquiais que interrogavam sobre as práticas de leitura entre os
camponeses franceses do final do século 18 e início do 19. Nos questionários os
clérigos consideravam as bibliotecas rurais (particulares) como expressões da
ignorância e do atraso cultural dos moradores dos campos. Em suas opiniões e
descrições “editadas” sobre as obras lidas (contos de fadas, feitiçaria,
aventuras ficcionais e livros religiosos) e sobre os modos de leitura dos
campesinos (ou “analfabetos desinteressados”, ou sobre leitores incompetentes
que repetiam várias vezes certos trechos em voz alta), os eclesiásticos
reafirmavam suas superioridades intelectuais e a também a necessidade dos
“homens letrados” cumprirem a missão de levar aos incultos o mundo das leituras
de “grande valor” – num período de modernização pós-revolucionária na França. O
historiador utiliza tais documentos não para apreender diretamente as práticas
de leitura dos camponeses, mas para compreender o modo como os clérigos cultos
representavam a classe campesina francesa daquele período.
Daqui é possível extrair o entendimento de que não existe
consenso no mundo como representação, ele está em constante mudança, é um campo aberto de luta entre os
grupos sociais e seus membros. Por isso, é preciso que o pesquisador não seja
ingênuo ao trabalhá-lo, mas também que as pessoas participantes dele não
aceitem as maneiras unívocas, generalizadas e impostas de representar algo ou
alguém; ou seja, entendendo que essa representação é intencional e interessada,
porque foi construída socialmente visando atingir algum fim que não raras vezes
ultrapassa o próprio entendimento imediato do indivíduo que a “reproduz”. Isso
quer dizer que o “simbólico”
participa de maneira ativa sobre o “real”,
construindo a própria possibilidade de existência do “real”. Tem, às vezes,
mais importância que o “material”. Afinal, como escreve Durkheim (1981, p. 57):
“Uma bandeira não é mais do que um pedaço de pano; o soldado, entretanto, morre
para salvá-la”.
Dakar, Senegal, África. |
O valor do simbólico e, por extensão, da representação
coloca em discussão questões da identidade negra na contemporaneidade. Como
toda identidade social, a negritude é
uma representação coletiva forjada, inventada, instituída na comunidade. Certos
historiadores africanos, inclusive, advogam que o “negro” foi uma invenção dos europeus para impor a superioridade
de seus valores fazendo a clássica alusão as luzes e as trevas; que remonta o
mito da caverna de Platão. As luzes (o europeu, o branco, a clareza)
“representando” o conhecimento, o sol que alimenta a vida na Terra e a visão das
formas sensíveis; e as trevas (o africano, o negro, a escuridão) o atraso, a
ausência de conhecimento e de razão. Anderson Oliva (2003), um historiador
brasileiro, fez um trabalho sobre a representação da África nos livros
didáticos, e mostrou que preconceitos do senso comum (como aquele que imagina a
África como um zoológico aberto misturado com safari onde os africanos correm
desesperados de leões famintos no meio dos capinzais) são muito similares ao
dos escritores de livros didáticos. Boa parte deste imaginário foi construída
pela literatura científica europeia que representava a África como o continente
de povos sem história, bárbaros e atrasados, numa tentativa de afirmar sua
superioridade e justificar o colonialismo e neocolonialismo que foi empreendido
lá.
Como não podia deixar de ser, a imensa maioria dos africanos
discorda dessa representação da África, ou seja, não se reconhecem como seres
famélicos, aidéticos e assolados pela seca durante 365 dias do ano. Mas outra
maioria, sobretudo de “herdeiros étnico-africanos”, concorda com a sua
“representação” por negro, principalmente nos países ocidentais onde a
“população negra” sofre discriminações.
Só que invés de assumi-la como sinal do atraso ou da marca divina do pecado – fazendo
referência bíblica à Cam, filho de Noé, que após ter visto seu pai bêbado e nu
foi amaldiçoado –, defendem-na com orgulho e utilizam-na para afirmar a
necessidade de reparação histórica ao agravo causado pelas dominações físicas e
simbólicas que, convenhamos, ainda estão por toda parte.
Recentemente aconteceu um episódio em que mostra o “preconceito de cor da pele” e a
representação do negro como um ser inferiorizado. Na Rússia, torcedores atiraram
bananas dentro do campo de futebol onde estava o jogador brasileiro Roberto
Carlos. A menção simbólica é clara: associar o negro ao macaco, rebaixá-lo a
condição de “não-homem”. Num mundo sem cultura, ou sem esse histórico cultural
de menosprezo ao negro que foi construído (e pode por isso ser desconstruído),
o ato desses torcedores não teria sentido algum, seria um ato banal como lançar
copos de água dentro do campo, mas por conta da comunicação construída entre
símbolos específicos (macaco=banana; macaco=ser-inferior-ao-homem;
macaco=negro), o conceito de representação se faz inteligível e bastante claro
em sua intencionalidade: excluir os inferiores do espaço da polis,
da cena política, retirá-los do lugar comum entre os homens que falam e possuem
logos
(conhecimento). Pois como adverte Aristóteles, o homem é um animal político
porque possui logos. O macaco não o
possui, então ele não faz parte da comunidade (lugar dos comuns).
Maus (no alemão "ratos"): romance gráfico de 1986 |
Essa nítida tentativa de dominação simbólica como forma de
exclusão mediada pela representação pôde
ser vista também no nazismo, onde os “arianos” descreviam os judeus como
seres inferiores, raças medíocres que atrasavam a evolução da nação germânica.
Eles eram descritos não como homens, nem como macacos, mas como ratos. Essa classificação era utilizada como a
representação dos judeus que devia vigorar na sociedade e que, por sua vez,
poderia vir a justificar a matança desses seres. Afinal é preciso matar os
ratos, pois eles nos transmitem doenças! Aí vem toda associação simbólica com a
história da peste bubônica (ou da peste
negra: vejam que ironia!) que dizimou um terço da população europeia a
partir do século 14. O autor americano de HQ’s, Art Spielgeman, soube ilustrar com maestria a “ratização” dos
judeus pelos nazistas. E aqui, novamente, a exclusão da cena política é clara.
O judeu é reduzido a uma condição de “não-homem” e por isso impedido de
participar da polis. Isso é um homem?
Perguntou anos depois um sobrevivente de Auschwitz. Mas ele se referia a
condição dos judeus nos campos de concentração ou a humanidade desumanizada dos
nazistas?
O conceito de representação de Chartier quer fazer saltar
aos olhos daqueles que entendem que o mundo está condicionado a uma existência
puramente natural e biológica. Vamos nos questionar sobre o “homem negro”. Ela
é biológica e natural? A meu ver não. A própria condição instituída e categoria “homem” é bastante frágil,
abstrata, representada e, por isso, ligada a cultura. Para Foucault o homem é
uma invenção recente da modernidade, inaugurada no momento em que se muda a
maneira de olhá-lo, sendo tratado como um sujeito e um objeto passível dos saberes
e dos poderes que governam o mundo. Para Stirner o homem é uma alienação
fabricada para afastar o “eu” dos seus próprios interesses, é uma abstração linguística
que não pode exprimir quem somos a menos
que decida o que nós precisamos e como devemos agir. E o negro? Tanto pior.
Há variações enormes sobre essa “representação”. Meu grande amigo historiador
João Gabriel do Nascimento se representa como negro perante a sociedade, mas
não teve sua representação bem aceita em uma viagem à Bahia, em contrapartida
quando foi ao Chile só faltou acusá-lo de africano nato – ele conta. Na África
a disputa entre as etnias rivais Tutsi e Hutus é bem conhecida, e os Tutsi
consideram-se superiores, inclusive, por seu tom de pele mais claro – nada
incomum para uma região que participou da colonização belga que distribuiu o poder
político muito em função desse critério. Como se nota, essas categorizações se
relacionam com inúmeras especificidades. O próprio jogador Roberto Carlos aqui
no Brasil não é identificado como negro, porque embora tenha traços físicos
“africanos”, possui um tom de pele ainda mais claro que o de João.
Como a representação é um aspecto cultural fragmentário e
interessado que envolve e atravessa diversas lutas políticas pelo símbolo, me
parece que a estratégia mais viável de lidar com ela é manter uma vigília incessante e não acreditar
nessas “instituições” além de sua provisoriedade histórica. Por mais natural,
inocentes e antigas que as representações pareçam nunca podemos aceitá-las como verdades absolutas e inamovíveis,
pelo contrário, é necessário questionarmos com frequência, através de uma
investigação detalhada, acerca de quem somos para nós e para os outros e como
manipulamos (e somos manipulados pelos) os signos para comunicarmos sobre a
realidade.
Referências:
ARISTÓTELES. Política.
São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CARVALHO, F. A. Conceito de representações coletivas segundo
Roger Chartier. Revista Diálogos.
Maringá, PR: UEM, v. 09, n. 01, p. 143-165, 2005.
CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e
representações. Lisboa: Difel, 2002.
CHARTIER, R. O mundo como representação. Revista Estudos Avançados, vol.5 n.11, São Paulo, p. 1742-191, Jan./Apr., 1991.
DURKHEIM, E. Sociologia. Organizador da coletânea
Jose A. Rodrigues. São Paulo: Ática, 1981.
OLIVA, A. História
da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na literatura
didática. Revista Estudos
Afro-Asiáticos, Ano
25, n. 3, p. 421-461, 2003.
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