Em 1963 aconteceu um debate, na
emissora de rádio alemã Hessen, entre o presidente das Escolas Superiores de
Educação Popular da Alemanha, Helmut Becker, e o filósofo e sociólogo Theodor Adorno. Os interlocutores
discutiam sobre a possibilidade de a televisão ocupar uma função de formação
educacional. Becker se mostra completamente defensor do uso da TV para este
fim. Então, o intuito do convite a Adorno parece propositalmente interessado em
alimentar a tensão entre os dois, haja vista que já eram conhecidas as duras
críticas do filósofo a Indústria Cultural (e por extensão a televisão),
entendida como veículo propagador de ideologia do Estado e de interesses das classes
dominantes com vistas à alienação das massas. Assim, figura um trecho
transcrito da fala de Adorno (2000, p. 80):
“Em primeiro lugar, compreendo
‘televisão como ideologia’ simplesmente como o que pode ser verificado,
sobretudo nas representações televisivas norte-americanas, cuja influência
entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa
consciência e um ocultamento da
realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às
pessoas um conjunto de valores como se fossem dogmaticamente positivos,
enquanto a formação a que nos referimos consistiria justamente em pensar
problematicamente conceitos como estes que são assumidos meramente em sua
positividade, possibilitando adquirir um juízo independente e autônomo a seu
respeito”.
Porém, ao longo da discussão Adorno
deixa claro que não é contra a televisão,
como muitos podiam pensar na época (e até hoje). Ele diz que é contra
determinados modelos de difusão de informações e valores com intenções
implícitas ou explícitos de dominação política e, de disseminação da cultura
capitalista. Mas concorda, até em certa demasia com Becker, sobre a possibilidade
da TV como ferramenta para a educação e autonomia. Adorno critica, sobretudo,
as novelas por manipularem de maneira sutil a consciência das pessoas, e
salienta a importância de ensiná-las a assistirem televisão, desenvolvendo nelas
aptidões críticas e conduzindo até a capacidade de desmascararem ideologias. O
objetivo deste ensino é proteger diante das identificações falsas e problemáticas,
inclusive da propaganda geral de um mundo onde a mera forma de veículos de
comunicação de massa se encontra naturalizada. Ou seja, usar a televisão contra
ela mesma.
Usar
a TV contra ela mesma! Usar um produto cultural veiculado pela
televisão para fazer a crítica de seus próprios modelos de transmissão de
informação e de conteúdos culturais! Podemos ver resquícios de tal movimento em
determinadas letras de músicas brasileiras, às vezes, de artistas divulgados
pela própria TV da qual se critica. Escolhemos algumas letras que retratam de
uma maneira específica a televisão. A intenção é demonstrar as “representações”
pessimistas e negativas da televisão e problematizar estas figurações
estereotipadas que, de certa maneira, aparecem em opiniões de críticas sociais
pouco aprofundadas sobre a TV. As conhecidas “críticas-senso-comum”.
Televisão (1985) do
Titãs expõe o “emburrecimento” provocado pela cultura televisiva. Polêmicas
médicas que disseminam mitos, estimulam “paranoias” e interferem diretamente na
vida cotidiana são apresentadas no trecho: “o sorvete me deixou gripado pelo
resto da vida”. Há pouco tempo o Fantástico
apresentou uma reportagem na qual o médico Dráuzio Varella considerava que o
ovo fazia mal a saúde. Fato que causou um rebuliço na indústria granjeira. Após
várias reclamações sobre a queda nas vendas, a TV Globo, pressionada por
empresários e médicos, teve que desmentir a consideração de Varella. Então foi dito
que existe litígio na comunidade científica sobre os benefícios e malefícios da
alimentação do ovo, fato que não foi abordado na primeira reportagem. Sobre a
questão do sorvete associado a gripe, a letra ressalta a superioridade da
cultura letrada à televisiva: “eu nunca li num livro que o espirro fosse um
vírus sem cura”. Outro trecho que chama atenção é o que subtende a televisão
estimulando ou inventando desejos que antes não existiam nos espectadores: “que
tudo que a antena capturar meu coração captura”. Aqui a TV também entra numa
forma de simbiose com o espectador, onde não é mais possível dizer qual dos
dois possui vida e vontade.
O Teatro Mágico mistura música, poesia e arte circense |
É nesta linha que Xanéu nº5 (2008) d’O
Teatro Mágico representa a televisão. A letra fala sobre uma televisão que
adquire vida e deixa de obedecer ao dono do controle remoto, que perde o
controle. A TV é apresentada como um ser
vivo que vigia as atitudes e dita as regras. Mas também podemos pensar “a TV
como companhia”, como na melancólica letra de Leve Desespero (1986) do
Capital Inicial. Lembro-me de minha mãe que, às vezes, deixa a televisão ligada
mesmo quando ninguém está assistindo. Certa vez questionei-a sobre isso, e ela
disse que a TV fica ligada para substituir a ausência de “vida” (humana) na
casa, ou seja, diálogos entre pessoas, sons de gente. Portanto, ela faz um uso
positivo da TV, principalmente quando está sozinha fazendo tarefas domésticas e
não pode ficar em frente ao aparelho.
Em Ditadura da Televisão (2004),
do grupo de reggae Ponto de Equilíbrio, a tevê aparece representada como uma
forma de docilizar os corpos e as pessoas; desde cedo o bebê é colocado na
frente da tela para se acalmar e se acostumar à programação. A letra também
ressalta a imposição simbólica, que acontece de maneira sutil, separando as
pessoas de seus verdadeiros interesses e imbecilizando-as através de uma
realidade ilusória, artificialmente construída pelos programas televisivos.
Nesta letra, a ditadura da TV tem como mecanismo de dominação a alienação, que
robotiza os seres humanos. Tais aspectos também aparecem em Até
Quando (2001) de Gabriel o Pensador, no trecho: “a programação existe
para manter você na frente, na frente da tevê, que é pra te entreter, que é pra
você não ver que o programado é você”. Em Escravo
da TV (1991) da banda punk Ratos de Porão, é abordada a
construção de uma falsa realidade e, também a falta de tempo para pensar, onde
só o assistir impera. A linha que divide a realidade como representação
mediatizada pela tevê e a realidade social do além-tela é suprimida em Eu
Adoro Minha Televisão (2007), letra irônica do Capital Inicial na qual
o narrador encarna um alienado que ama sua tevê porque se as coisas estão ruins é só
trocar de canal que melhoram.
Já a banda capixaba Mukeka di Rato em Viva
a Televisão (2001) apresenta uma letra chocante e visceral sobre a
espetacularização da vida cotidiana, onde a exposição do sexo, da violência e
das desgraças pessoais se tornam componentes básicos de um show de horror feito
para divertir. Há uma crítica às notícias do mundo das celebridades e a
importância demasiada às futilidades, assim diz a letra: “a lista dos atores
que tem gonorreia... a festa do cachorro daquela filha da puta”.
O que pensar diante desse mar de
representações negativas da tevê? Particularmente, acho essas interpretações polarizadas demais. É claro que a música
(como uma forma de arte) na contemporaneidade, além de divertir e entreter,
pode se encarregar da função de crítica social, de estimular o ouvinte a
pensar, a refletir sobre sua realidade; e estas letras se encaixam nessa
modalidade. Mas não é necessário que as aceitemos de tal maneira que nos faça
jogar a TV pela janela com medo dela comer nossos cérebros. Contudo, também é
importante não cairmos na ilusão de que os indivíduos estão totalmente livres e
isentos para manipularem as representações da realidade mediadas pela TV da
maneira como quiserem; pois nesse caso sairíamos do polo “preto” para cair no
polo “branco”. Os tons de cinza parecem
mais próximos do real.
Para compreender os aparelhos de
transmissão cultural e as maneiras de recepção do leitor, o historiador Roger
Chartier utiliza o conceito de apropriação.
Esse conceito dá a possibilidade de focarmos no confronto entre TV e
telespectador, entendendo que, toda interação é uma relação entre, no mínimo,
dois polos. Assim podemos fugir de um estruturalismo
raso que desconsidera a experiência e a liberdade dos sujeitos em favor de
um império dos aparatos coletivos e materiais, para perceber a pluralidade de
leituras da realidade através das apropriações diversas das representações do
real (expostas pela TV, rádio, livro, música, etc.). Também escaparemos da filosofia do sujeito (fenomenologia)
que não atenta para a historicidade da individualidade, ou seja, para as
diferentes maneiras no tempo e no espaço social pelas quais os sujeitos sentem,
vivem e experimentam a realidade de uma maneira específica. A relação entre
representação e apropriação proporciona a possibilidade compreender a interação
entre texto e leitor, imagens da TV e telespectador; nem as tiranias do
conteúdo e do formato, nem a liberdade total daqueles que leem ou assistem, mas
captar as fronteiras.
Roger Chartier (1944) |
Podemos pensar através do conceito
de apropriação que as novelas brasileiras, por exemplo, não são meramente
subprodutos culturais que visam alienar o povo e exprimir a dominação da classe
burguesa. Pois mesmo que tentassem transmitir somente valores que estimulam a
conformação à condição de pobreza ou os ideais de vida onde o único sucesso
possível é o empreendedorismo no capitalismo, haveria nesta relação, entre o
bem cultural simbólico e o espectador, negociações, resistências, rejeições, na
qual mesmo a aceitação dependeria de uma “predisposição” (termo meu) do
espectador para tal. Quer dizer, o império do sentido não está somente dentro
do transmissor de TV, nem só no telespectador, e sim na relação entre os dois,
entre o que é transmitido/representado
e as maneiras de interpretação/
apropriação.
A TV e outras tecnologias de
informação (o rádio, o cinema, a internet) podem sim ser usadas como meios de
alienação, na tentativa de submeter os outros a uma ideia, uma ideologia, um
desejo, uma política; assim como foi feito na Alemanha nazista ou durante a
revolução cubana. Mas para compreender a produção de sentido do mundo é preciso
ultrapassar a simples imposição simbólica, e entender que do outro lado existem
pessoas que podem concordar ou discordar, aderir ou rejeitar; por exemplo,
sobre o nazismo, cabe enxergar que para além de uma propaganda eficiente
encabeçada por Goebbels, existiam milhões de alemães que se identificaram e
aceitaram os projetos do partido nazista,
pessoas sem as quais não teria sido possível a existência de um líder, de um Hitler.
Gosto do conceito de positividade, mais ou menos da maneira
como Foucault o utiliza. Ele não significa o que é positivo, o lado bom, mas uma presença, uma existência, um relevo.
Descrevendo assim a condição de existência da TV e seu uso, com boas e más consequências
políticas, sociais e culturais. Uma escolha pressupõe uma série de renúncias. A
tevê pode abrir inúmeras carências e possibilidades de acordo as práticas que a
apropriam: acesso às informações, não
menos distorcidas, mas passíveis de questionamento e de significações que
dependem do telespectador e da maneira como ele assiste; aproximação de familiares
e de amigos para assistirem um programa comum; ponto de partida para um debate
e socialização entre os que estão assistindo. Afinal não raras vezes a tevê
ligada durante uma conversa entre três ou mais amigos desperta a memória ou
interesse sobre assuntos por ela abordados, nesse caso ela é descentralizada e
funciona como ferramenta coadjuvante e propulsora de um diálogo. Portanto, ela pode
funcionar não como um objeto que gera o “enclausuramento espontâneo” do
indivíduo solitário, porém como o estímulo para interações sociais.
Obs.: Esse texto lida com o conceito
de representação (CHARTIER, 2001) apresentado em África e identidade negra pelo conceito de representação de Roger Chartier
Referências:
ADORNO, Theodor. Televisão e formação.
In:______. Educação e emancipação.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel,
2001.
Letras:
CAPITAL Inicial. Eu adoro minha televisão. Álbum: Eu nunca disse adeus. Faixa: 12.
Gravadora: Sony BMG, 2007.
CAPITAL Inicial. Leve desespero. Álbum: Capital Inicial. Faixa: 08. Gravadora: Poly
Gram, 1986.
GABRIEL, o Pensador. Até quando? Álbum: Seja você mesmo (mas
não seja sempre o mesmo). Faixa: 02. Gravadora: Sony Music, 2001.
MUKEKA di Rato. Viva a televisão. Álbum: Acabar com você. Faixa: 03. Gravadora:
Deck disc, 2007.
O TEATRO Mágico. Xanéu nº5. Álbum: Segundo ato. Faixa: 15. Gravadora:
Independente, 2008.
PONTO de Equilíbrio. Ditadura da televisão. Álbum: Reggae a
vida com amor. Faixa: 04. Gravadora: Deck disc, 2004.
RATOS de Porão. Escravo da TV. Álbum: Anarkophobia. Faixa: 05 (lado B). Gravadora:
Eldorado, 1991.
TITÃS. Televisão. Álbum: Televisão. Faixa: 01. Gravadora: WEA, 1985.
Muito bom! Adoro essa "geografização" dos conceitos :D
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