Posto
abaixo as principais partes de um texto meu que foi publicado nesta semana pela
Revista Ágora de Cerro Grande (RS).
O intuito de divulgação é pelo caráter didático do mesmo sobre a filosofia
anarquista, especialmente, porque sei que uma parte significativa que acessa o
blog tem simpatia e interesse pelo anarquismo, tema que há algum tempo tem
ficado em falta aqui. Vou dividir o texto em duas partes, a primeira sobre
Proudhon e a segunda sobre Kropotkin. Aproveito para recomendar a revista Ágora
aos leitores e aos colegas de graduação e de pós-graduação que estão começando
a publicar textos acadêmicos.
***

Proudhon,
no livro seminal do anarquismo, em favor de sua proposta social mutualista, contrapôs
os projetos políticos tanto do liberalismo quanto do comunismo, os quais ele
acreditava ser respectivamente a expressão da propriedade e da autoridade,
princípios estes causadores da miséria e da opressão.
O
anarquista francês recorre a uma hipotética história primitiva (assim como o
“estado de natureza” na filosofia política de Hobbes ou Rousseau) para elucidar
seu leitor acerca do modo como foi instituída a autoridade política de uns
sobre os outros. De acordo com Proudhon (1975, p. 235), pelo hábito e por uma
questão de respeito à experiência, o mais velho do grupo geralmente era
reconhecido como o líder. Sua autoridade ficava maior na medida em que o grupo
crescia. Entretanto, por conta da pressão imposta pela autoridade às
individualidades humanas ali presentes na coletividade, num caso ou noutro
aconteceram revoltas a partir das quais os mais jovens destronaram os líderes
antigos. Entretanto, pouco a pouco o hábito substituía novamente a força. Com o
passar do tempo, a disputa pela autoridade foi se tornando mais complexa,
sobretudo a partir de sua relação direta com a religião. Para Proudhon a
questão do poder na realeza tem um vínculo direto com o direito divino. Pois,
assim que se começou a atribuir a responsabilidade de liderança ao mérito e à
força, foi entendido que essas tais qualidades eram dádivas de Deus àqueles
mais preparados para governar, a partir de então o mais velho do grupo teve de
lhe ceder o lugar na chefia e deu início ao despotismo (1975, p. 236).
Proudhon
adverte que a religião, conjuntamente com a invenção do pecado original, serviu
para que o homem desconfiasse de sua natureza. Deste modo, por temer seu gênio
inato para o mal, o homem crê na necessidade da autoridade de uns sobre os
outros para manter a estabilidade pacífica da sociedade. Existe neste aspecto
do pensamento proudhoniano um diálogo e, acima de tudo, uma crítica voraz à filosofia
política de Tomas Hobbes que, de acordo também com outros anarquistas, foi
desenvolvida para justificar a criação do Estado moderno.
Tanto
a crença da necessidade do Estado quanto da autoridade baseada em Deus ou no
direito divino são constituições de um mesmo preconceito, indica Proudhon. No
entanto, o autor coloca que este preconceito será facilmente abolido por meio
do uso da razão na observação à natureza. Pois, a razão desenvolvida através do
processo evolutivo da ciência é o instrumento necessário para que os homens
enxerguem que a melhor escolha para a organização social é a anarquia.
É
necessário considerar que a noção de história para Proudhon está ligada a um
lento progresso de evolução, às vezes acompanhada de processos abruptos chamados
de revolução. Contudo, diferentemente de outros pensadores anarquistas, Proudhon,
ao menos neste livro, não defende a revolução pela força e imposição, pois
considera que para a sociedade se desenvolver é preciso que todos desejem
espontaneamente de livre acordo. Destarte, pode-se dizer então que a razão e a
ciência encontram-se no ápice desta evolução histórica, “e esta ciência envolve
conjuntamente o homem e a natureza” (1975, p. 12).

Os postulados
do autor nos possibilitam aferir que ao longo da história a autoridade se
constituiu como um empecilho para a harmonia na organização social entre os
homens e que, então agora, com o uso da razão para observar cientificamente
como se deu este processo histórico, o homem concluirá que a anarquia é a
condição propícia para seu desenvolvimento natural, a qual durante muito tempo
lutou-se inconscientemente em seu favor.[2]
É
possível nessa altura do texto estabelecer um contraponto com uma reflexão teórica
de outra perspectiva. Rousseau ficou conhecido como o filósofo político
defensor da natureza “boa” do homem, quando este se encontrava num a priori social hipotético (o
bom-selvagem). Porém, a sociedade corromperia sua bondade, sendo necessário,
portanto, recursos externos educativos que o encaminhasse para o caminho do bem
(FLORESTA, 1999, p. 143-4). Além disso, Rousseau vê com bons olhos a
“alienação” da vontade individual pela “vontade geral” que seria resultado
correlato do bem comum. Entretanto, Proudhon discorda de Rousseau neste último
ponto, e vai além pela defesa da natureza humana como base de um corpo social
harmônico. Ele diz o seguinte:
“Nem
a hereditariedade, nem a eleição, nem o sufrágio universal, nem a excelência do
soberano, nem a consagração da religião e do tempo fazem a realeza legítima.
Sob qualquer forma que se apresente monárquica, oligárquica, democrática, a
realeza ou o governo do homem pelo homem, é ilegal e absurdo” (PROUDHON, 1975,
p. 237).

Sem dúvida
tal exposto nos apresenta como um otimismo romântico do autor. Mas não será
isso que a sociedade mais carece atualmente, isto é, acreditar em si mesma e em
sua capacidade de reverter à situação política que parece tão adversa e apocalíptica?
Acredito, inclusive, que o incomodo causado pelas proposições de Proudhon é
provocado justamente pelo choque com nossa desesperança contemporânea. Então,
que o antagonismo das duas nos proponha um momento de transformação subsidiada
pela reflexão.
Texto publicado
originalmente em:
ALVES,
M. P. Natureza e anarquia: aspectos entre natureza e história na filosofia
política anarquista de Proudhon e Kropotkin. Ágora Revista Eletrônica. Ano VIII, n. 16, p. 31-42.
Referências:
ALVES, M. P. O elogio da anarquia em “O que é a propriedade?” de Proudhon: apontamentos para a discussão conceitual do anarquismo. Revista Urutágua, Maringá, UEM, n. 27,
p. 15-25, nov. 2012/abr. 2013.
FLORESTA,
L. Gênese do pensamento pedagógico anarquista. Revista Educação e Filosofia. Uberlândia, vol. 13, n° 26,
jul./dez., 1999, p. 141-172.
PRÉPOSIET,
J. História do anarquismo. Coimbra:
Edições 70, 2007.
PROUDHON,
P-J. Do princípio de autoridade. In:______. A propriedade é um roubo: e outros escritos anarquistas. Seleção e
notas de Daniel Guérin. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 74-99.
PROUDHON, P-J. O que é a
propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975.
[1] Para detalhes
sobre a “ressignificação” de anarquia empreendida por Proudhon, tenho um
trabalho publicado recentemente pela Revista Urutágua que considero
bastante didático:
ALVES, 2013.
[2] “Anarquia,
ausência de mestre e soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nós
nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e sua
vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a expressão do caos”
(PROUDHON, 1975, p. 239). Como podemos notar nesta citação, Proudhon compreende
a ordem instituída pela autoridade como a constituição da desordem, sendo o
inverso da ordem natural pela anarquia.
[3] Na visão
naturalista de Proudhon “homem e natureza estão intrinsecamente ligados, não
havendo oposição entre eles. Pelo contrário, o homem é visto como parte
integrante da natureza e só se realiza em fusão com ela [...]. O homem possui
todas as qualidades que o tornam um ser capaz de viver em harmonia e liberdade,
sem necessidade de contrato para regulamentar e constranger suas relações”
(FLORESTA, 1999, p. 142).
ótimo texto! Valeu!
ResponderExcluirJá eu acho que o Proudhon é um pensador bem diferente do Kropotkin.
ResponderExcluirO proudhon não pensa a partir de modelos.
E ele também não é romântico ou otimista.
E pra ele existe uma diferença entre razão centralizada e a razão solta que pode ser usada de forma diferente por indivíduos diferentes.
Eu acho que não dá pra falar de Proudhon sem passar pelo seu conceito de direito da força.
Também concordo que seu pensamento é diferente ao de Kropotkin, mas não diria que, por isso, Proudhon (também) não é romântico ou otimista, pois me parece que ele é um herdeiro inegável do esclarecimento e, também, da crença na razão (por mais que esta seja mais sofisticada do que em outros autores anteriores e ao próprio Kropotkin). Agora não saberia dizer se são os anarquistas atuais que gostam de ler Proudhon como um autor mais contemporâneo do que ele realmente é (similar a Nietzsche e seu desencaixe ao século 19), ou se isso é impressão minha. Grato pelo comentário. Abraço!
ExcluirEm tempos como esse que a gente tá vivendo hoje aqui no Brasil, quais você acredita ser ações essenciais pra quem compartilha do pensamento anarquista? Você acha que as ações de nível micro, mesmo não modificando a estrutura da sociedade são úteis de fato pro processo de mudança social? Fico frustrada por ser um processo lento demais e por não ver mudanças efetivas, sabe? parece que não tá atingindo quem precisa... Sinto falta da união de forças pra lutar mesmo, fazer alguma coisa de fato, algo mais ousado, não sei, tá acontecendo tanta coisa péssima e parece que tá todo mundo meio passado e passivo demais.
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