domingo, 25 de novembro de 2012

A literatura (des)norteadora: regime estético em Rancière

Esse texto descreve o modo desafiador como o conceito de literatura é compreendido pelo filósofo Jacques Rancière, no livro Políticas da Escrita. Na modernidade, houve um deslizamento histórico do (sentido do) conceito de literatura, que passou do “saber”, quer dizer, do domínio específico de regras disciplinares de construção textual, à arte, em seu regime estético (já explicado no texto O fim e a forma).

Até no século 18, existia um saber das letras dotado de (três) regras particulares de composição textual baseadas na tradição poética de narrativa descrita por Aristóteles: o pensamento que determina o tema (diánoia); a elocução, retórica ou fala (léxis); e a disposição das partes, arranjo ou esquema (táxis). Reparem que as palavras entre parênteses são gregas e estão presentes em alguns radicais da língua portuguesa, por exemplo, taxonomia, que é a disciplina da biologia que define os grupos onde os organismos vivos estão classificados. Portanto, no caso da poética, é um domínio de regras que classifica e hierarquiza as partes de um texto, ordenando seu formato para transmitir uma determinada “mensagem” encaminhada pela elocução e retórica. A retórica, por sua vez, é a arte da persuadir o leitor/espectador sobre um tema específico – escolhido previamente pelo pensamento, contudo fundamentado numa importância para a comunidade ou para o público ao qual se destina.

Já no século 19, ao invés do conceito de literatura designar um saber, passará a denotar um objeto. Sendo, a partir de então, a atividade daquele que escreve. A mudança de significante (ou referente – aquilo “para fora” que o significado aponta) passou despercebida e sob essa historicidade, a literatura começou a englobar as artes das línguas antigas, os textos sagrados, os saberes retóricos, até os romances modernos, atravessados pelos grandes gêneros poéticos – trágico, épico e lírico.

Rancière (Argélia, 1940)
Entretanto, para Rancière a literatura não se refere a este conjunto de obras tão distintas, pois ela não é o que sucede as belas-artes (da poética, da retórica, da gramática), porém ela é o que suprime as belas-artes, desnorteando seus saberes disciplinares. “Há literatura quando os gêneros poéticos e as artes poéticas cedem lugar ao ato indiferenciado e à arte sempre singular do escrever”, aponta Rancière (1995, p. 26). A literatura é uma experiência e uma prática autônomas da linguagem – por exemplo, através da poesia lírica e do romance, que são marginais da grande poesia épica e dramática, e da eloqüência. Ela se constitui como um modo do discurso no qual é a própria realidade que existe, ‘sozinha com exceção de tudo’, como na escrita de Mallarmé. Quer dizer que, a literatura não precisa de “um fora”, de uma realidade pré-textual que lhe sirva de conexão e explique a transmissão de suas mensagens, pois não há uma organização formal, nem o domínio de uma técnica que concatene as partes e os argumentos para persuadir os leitores. A leitura da literatura pressupõe um mergulho num mundo próprio, que não tem relação direta com o exterior. É como se um sonho fosse a própria realidade e dentro dele as coisas teriam leis físicas de possibilidade e sentidos “lógicos” totalmente diferentes do estado de “vigília” (quando “sabemos” estar acordados). Ao mesmo tempo, a literatura engendra o embaraço ou a desestabilidade da linha que divide o sonho da realidade, pois mostra que não há uma fronteira onde termina o real e começa a ficção, mas que o primeiro é construído ao apoiar-se em elementos do último. Um exemplo seminal (já no século 16) de literatura é Dom Quixote de Cervantes. Ao tomar contato com os romances de cavalaria, o personagem principal “acredita” que eles são historicamente verdadeiros e possíveis, e começa a viver “aquela realidade escrita”.

Aristóteles (Atenas, 332 a.C.)
Embora a literatura marque a ruptura às belas artes, ela administra a ilusão da continuidade ou da identidade das duas como uma só, pois permite a coexistência de coisas contrária a ela própria em seu interior, como as práticas da poética. Em todo caso, poderíamos adequar o nome literatura a esse conjunto de textos compostos por regras distintas, relativizando seus significados, pluralizando-os, todavia isso faria escapar a questão central colocada pela própria literatura, que é a desestabilização à ordem das classificações entre os modos e os gêneros do discurso; tendo em vista que, a “literatura” resiste à redução nominalista e desmancha as relações estáveis entre nomes, ideias e coisas e, junto com elas, as delimitações organizadas entre as artes, os saberes ou os modos do discurso tradicionais e reconhecidos (p. 27). Se tomarmos a linguagem como um conjunto de regras específicas de significados e significantes que formam imagens mais ou menos exatas, e que existe um modelo de hierarquização entre os gêneros discursivos, então podemos dizer que a literatura (com limiar na modernidade) é uma guerra da escrita contra a própria linguagem. Assim, “o ser da literatura seria o ser da língua onde esta se furta às ordenações que dão aos corpos vozes próprias para colocá-los em seu lugar e em sua função: uma perturbação na língua análoga à perturbação democrática dos corpos quando só a contingência igualitária os põe juntos” (p. 28-29).

Referência:

RANCIÈRE, Jacques. A literatura impensável. In:______. Políticas da escrita. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 25-45.

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