“A
história e o estudo da cultura” de Schorske apresenta questões interessantes
para refletirmos sobre o estudo da cultura e suas relações, encontros,
possibilidades e limites à Teoria da
História. Neste post, além de resenhar pontos importantes do texto, pretendo fazer
algumas considerações (im)pertinentes sobre a argumentação do autor.
O
ensaio se trata do posfácio da obra Pensando com a história
de Carl Emil Schorske, professor em História pela Universidade de Princeton. Já
na introdução de seu livro, Schorske deixa claro que, para ele, pensar “com a
história” é diferente de “pensar sobre a história”. Pensar com a história significa
fazer conexões com os acontecimentos políticos, sociais e culturais, averiguar
o sentido dos objetos de pesquisa antes e depois dos eventos históricos, como
também compreender e refletir sobre os encontros que a História faz (e fez) com
outras áreas do saber acadêmico. Em determinado ponto do texto o autor acusa
os teóricos ou filósofos da história de muito raramente escreverem a "história
propriamente dita". Segundo Schorske a contextualização que concatena e, de certa forma,
hierarquiza os acontecimentos é indispensável para aqueles que pretendem
refletir sobre a história, pois os estímulos para pensar e produzir cultura
(escrita historiográfica, por exemplo) chegam de alguma instância do social.
No
entanto se radicalizarmos a propensão contextualista (para o estudo da
historiografia) de Schorske poderíamos afirmar que alguns acontecimentos são
mais importantes que outros e só podem ser explicados/entendidos à luz
de outros. Daí nasce o problema em saber quais acontecimentos são determinantes numa “relação
de causa e efeito”. E será que realmente determinam os fatos? Um exemplo
ilustrativo (e falso – só para pensarmos), seria dizer que Bloch
forjou uma história do social e do econômico porque em sua época cresceram
movimentos populares, o voto passou a ser universal e as pessoas orientavam
suas relações sociais conforme os valores do mercado. Ou pior, e mais tosco
ainda, defender que Lucien Febvre
quis fazer uma “história-total ou síntese” para estar em consonância com o
totalitarismo que crescia na França na década de 30 ou, ao contrário, promovia a
“história em migalhas” em reação ao mesmo acontecimento político. Quer dizer, se
esses tipos de conexões são sempre necessários para “o verdadeiro historiador”,
então a maioria dos textos sobre Teoria da História não são "história de verdade",
já que a relação de acontecimentos descritos e encadeados aparece majoritariamente
no nível da academia – podemos tomar com exemplo o texto de Lynn Hunt “História,
cultura e texto” (1992) –, que Schorske chama(ria) de História Intelectual sem
o Social.
Resenha
Heródoto (Grécia, 4 a.C.) |
Schorske, numa tentativa de escrever teoria e fazer História, procura em
seu texto descrever a orientação da história no estudo da cultura. E ele vai longe ou, melhor, volta longe: até Heródoto. Heródoto teria sido o pai da história
moderna, pois o grego utilizou a história de uma maneira antropológica quando
descreveu, como um etnógrafo, o comportamento de povos e quis compreender o
choque entre duas culturas: gregos e bárbaros. Depois, um acontecimento
político, as guerras do Peloponeso fizeram “a história cultural” sair de cena para
a atuação da história política de Tucídides. A partir daí, Schorske faz um
salto de alguns milênios e usa o tempo para apagar a diferença de lugares
distintos (Grécia 400 a.C. – Europa ocidental no medievo e na primeira
modernidade), já que a história política foi, supostamente, hegemônica até o
século 18, isto é, confinada a estudar o Estado e a Igreja. No século 18 há a
reinvenção da história cultural na Europa, devido a acontecimentos como a
Reforma Religiosa, o Renascimento, o Iluminismo, que ficam pressupostos no texto. A História e Filosofia se unem e destronam os cursos de Teologia e
Direito. Este movimento, por sua vez, teve a ver com uma cultura que defendia a
realização da razão entre os objetivos da sociedade em marcha ao progresso (terreno)
e contra a teologia supratemporal da
religião.
Para
Schorske, o nascimento da história como estudo da cultura apareceu para cumprir
o projeto político-filosófico que conferia a dependência do destino da
humanidade à união entre a história da mente e a história da sociedade – com
vias à realização da liberdade dentro da lei. Aqui a relação direta com Kant e,
sobretudo, com o idealismo de Hegel é nítida. E também não é por acaso que a
partir de então a história se tornou a disciplina-rainha na área de
humanidades, já que os historicistas alemães, apoiados no hegelianismo, fizeram uma crítica vigorosa à metafísica filosófica
(BENTIVOGLIO, 2010). Todavia, em meados do século 19, alguns “historiadores
culturais” não se adequaram às concepções de progresso através do sistema
político liberal. Burckhardt e Tocqueville, por exemplo, desenvolveram um
panorama histórico horizontal, com ritmo de tempo mais lento e de narrativa
menos factual que a história da cultura em voga. Contudo, nos Estados Unidos
foi a História Intelectual como sinônima de História das Ideias (diacrônica e
narrativa) que se consolidou realmente -- pelo menos até ocorrerem as duas
grandes guerras que solaparam as esperanças da cultura liberal adequada ao
programa americano.
Capa do livro |
Nos
anos 50, talvez por conta do descrédito que a disciplina sofria, as diversas
áreas humanas romperam com a história, promovendo uma desistorização da cultura
universitária em prol das críticas formalistas auto-referenciais. A consequência desse fato para o estudo da
cultura é que houve uma subdivisão e, pior, uma polarização dentro da História.
Para Schorske, a “crise” fez os historiadores buscarem elementos teóricos nas
ciências sociais e humanidades desistorizadas (e aqui ele deve se referir à linguística, o estruturalismo, a psicanálise e a teoria literária). Entretanto, após vinte anos a História vem recuperando. E nesse cenário de autonomização das
ciências humanas, a história parece estar livre para estabelecer relações
livres com outros campos do saber.
Pitacos safados!
Algo
me chamou bastante atenção no texto de Schorske quando, em tom mais descritivo
do que crítico, ele aponta uma especificidade dos trabalhos dos historiadores
em sua maioria. Os historiadores seriam dependentes
conceituais obrigados ao encontro de outras disciplinas, como a filosofia e
a sociologia. Schorske escreve o seguinte: “podem [os historiadores] utilizarem
do conceito freudiano de narcisismo para explicar o comportamento de um ator
histórico, mas não se sentem na obrigação de provar aquele conceito, muito
menos de aceitar plenamente o sistema psicanalítico que o gerou. Eles não
adotam princípios e conceitos para provar ou mesmo ilustrar sua verdade, e sim
para dar autoridade, força explicativa e sentido às convergências que estão
traçando num processo ou numa configuração” (2001, p. 243).
Carl Schorske (EUA, 1915) |
Concordo
com a carência de criação de conceitos específicos para o estudo de história,
mas isso devia ser uma urgência de primeira ordem a sanar e não uma condição
que devemos aceitar. Pois se outras áreas estão “desistoricizadas” (sem a
história), será que a história não está “desfilosofizada”, “dessociologizada”, ou
qualquer que seja a área da qual utilizemos e fazemos muitas vezes indigência
teórica? Aceitar um conceito simplesmente por este conferir autoridade ou "encantamento ao texto" é abrir
precedente para que as críticas literárias abundem sobre a história – e com toda razão. Se o historiador quer se municiar contra os chamados ataques intratextualistas
(rejeitados por Schorske), então deveria ao menos se dar conta das categorias e
dos conceitos que utiliza, sobretudo, saber que eles não são naturais,
transistóricos, transparentes ou se aplicam a todas as situações que queremos.
Para isso é necessário entender de onde vieram, por quem foram forjados e com
qual propósito de metodologia e pesquisa. Creio que é mais importante obter
essas informações quando se estuda Teoria da História do que saber que
acontecimentos políticos, sociais e culturais motivaram alguém a escrever algo. Por outro lado, para não cairmos nos extremos, podemos fazer as duas coisas – uma análise
contextualista e uma crítica intratextualista.
Não
se trata de recusar as ferramentas teóricas e os conceitos fabricados por
autores de outras áreas, porém compreender o funcionamento, por exemplo, de “narcisismo”,
da noção “base e superestrutura”, de “prática discursiva”, de “representação”,
dentro dos sistemas teóricos nos quais estes foram concebidos e onde estes possuem
coerência e sentido específicos. Desta maneira, o tráfico de conceitos se torna
legítimo e honesto quando o
historiador explica de que maneira pretende utilizá-lo, sua releitura e
apropriação do conceito, bem como os limites deste em relação à particularidade do seu
trabalho/pesquisa. Esse exercício evitaria confusões e também acusações de que
a história seria uma ciência capenga e oportunista que se apóia em outras
áreas somente até o ponto em que lhe satisfaz.
Referências:
BENTIVOGLIO,
Júlio. Cultura política e historiografia alemã no século XIX. Revista de Teoria da História –
Goiânia: UFG, ano 1, nº 3, p. 20-58, junho, 2010.
HUNT,
Lynn. Apresentação: história, cultura e texto. In:______. (Org.). A nova história cultural. São Paulo:
Martins Fontes, 1992, p. 01-32.
SCHORSKE,
Carl. Posfácio: a história e o estudo da cultura. In:______. Pensando com a história: indagações na
passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 241-255.
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