É isso mesmo, pessoal! Não se trata de um banco de
créditos ou um fundo de arrecadações para o provimento de operários durante greve
ou movimento social. Trata-se de um anarquista que é dono de banco nos moldes
do capitalismo, com direito a “açambarcamentos, sofismas financeiros e
concorrência desleal”, segundo o próprio. História fictícia? Sem dúvida. Mas
que não deixa de levantar questões interessantes para aqueles que se interessam,
em alguma medida, pelo anarquismo.
O banqueiro anarquista foi publicado
originalmente numa revista de Lisboa, nos idos de 1922. São cerca de quarenta
páginas nas quais o poeta português Fernando Pessoa destila toda sua ironia num
show de retórica e (também) de sofismo. O diálogo se passa num café, local comum
na Europa para discussão de ideias e panfletagem política desde o século 18(?).
O interlocutor-narrador pergunta para o banqueiro se era verídico o boato que
afirmava que ele já foi anarquista. Então ele responde prontamente que não só é
verdade, como continua sendo anarquista. Aí o debate começa. E as gargalhadas
do leitor de Fernando Pessoa também... Devido à densidade do diálogo, vou
descrever e comentar de modo sucinto somente alguns pontos que me chamaram
atenção no texto.
O primeiro ponto que aparece é a questão da teoria/prática.
De cara o interlocutor pressupõe que o banqueiro é anarquista somente em
teoria, mas que não pratica o que acredita. Logo este trata de negar isso,
dizendo que é anarquista em teoria e prática, aliás, seu anarquismo seria mais
prático e verdadeiro do que daqueles anarquistas dos sindicatos, dos movimentos
operários e das bombas. Assim, o
banqueiro responde: “Você me comparou a esses parvos dos sindicatos e das
bombas para indicar que sou diferente dele. Sou, mas a diferença é esta: eles
(sim, eles e não eu) são anarquistas só na teoria; eu sou-o na teoria e na
prática. Eles são anarquistas e estúpidos, eu anarquista e inteligente. Isto é,
meu velho, eu é que sou o verdadeiro anarquista. Eles – os dos sindicatos e das
bombas (eu também lá estive e saí de lá exatamente pelo meu verdadeiro
anarquismo) – são o lixo do anarquismo,
os fêmeas da grande doutrina libertária” (PESSOA, 2009, p. 05-06). Então, o
outro pergunta como ele faz para conciliar teoria e prática, já que é um
banqueiro. Tenho certeza que vocês estão loucos para saber. Mas se acalmem,
porque a resposta do banqueiro depende de uma longa explicação fundamentada nas
experiências de vida que ele teve. Estas formaram os “silogismos retóricos” que
justificarão a conclusão final.
O banqueiro explica que nasceu pobre, foi operário e
não herdou nem um tostão. Mas recebeu dons naturais: a inteligência e a vontade. Como inteligente que era, procurava
trabalhar o mínimo possível, instruir-se e ler bastante, inclusive panfletos
libertários. A partir de um dado momento, começou a refletir sobre as condições
sociais, se revoltou com estas e se tornou anarquista aos 21 anos. “Como eu era
lúcido por natureza, me tornei um anarquista consciente. [...] Ora, o que é um
anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais
socialmente – no fundo é só isto”, conta (p. 07). Daí surge a revolta contra as
convenções ou ficções sociais que tornam possível essa desigualdade. A família,
no caso da herança, da condição de marido/esposa, etc.; o capital; o Estado; as
religiões; e as nacionalidades, são algumas das ficções sociais que causam
injustiça social e dominação. Já as injustiças da natureza ele diz não poder
evitar: “Aceito – não tenho mesmo outro remédio – que um homem seja superior a
mim porque a natureza lhe deu – o talento, a força, a energia; não aceito que
ele seja superior por qualidades
postiças, com o que não saiu do ventre da mãe, mas que lhe aconteceu por
bambúrrio logo que ele apareceu cá fora – a riqueza, a posição social, a vida
facilitada, etc.” (p. 08).
Mas passemos adiante na explicação do banqueiro,
que agora pretende expor sobre o melhor jeito de realizar o anarquismo. Ele
investiga o processo por via material através de um Estado de transição, ou “ditadura
revolucionária”, e chega à conclusão que isto seria um absurdo ou um desastre;
já que por mais que os ideais de liberdade sejam pregados, o Estado de
transição, feito de maneira autoritária, violenta ou despótica, gerará
futuramente não uma sociedade livre, como se quis, porém uma sociedade nos
moldes do próprio Estado de transição, dando como exemplo o Império Romano militarizado,
a França depois da revolução de 1789 e uma previsão do mesmo com a União
Soviética (na mosca!). Então ele chega num esquema. O fim: sociedade livre. O meio: sem transição. Por isso, o processo
deve ser mental e não material, quer dizer, feito pela propaganda, ação-direta
e indireta, exemplo, motivação e disseminação de ideias para amadurecer e
preparar a sociedade para viver livre. O banqueiro conclui que, “se isto não
pode se realizar assim, é que o anarquismo é irrealizável, e, se o anarquismo é
irrealizável, só é defensável e justa a sociedade burguesa” (p. 14). Só uma
revolução social animada pela via mental poderia desfazer essa série de ficções
sociais, ao mesmo tempo, em que mostraria uma sociedade preparada para viver em
liberdade.
F. Pessoa (1888-1935) |
A partir de então, o banqueiro começou a pensar o
que podia fazer para alcançar sua liberdade e a dos outros, algo que preparasse a sociedade para o futuro.
Mas trabalhar para quem? Ele se pergunta. Já que não era cristão, pois é
impossível ser cristão e anarquista,
tendo em vista que o cristão aceita (ou resigna) as desigualdades sociais e o
sofrimento terreno (passageiro) porque o que importa é uma vida no paraíso após
a morte, e o cristianismo é uma ficção social, então porque trabalhar para os outros?
Daqui segue-se uma passagem das mais interessantes e cômicas do texto.
O banqueiro diz: “Vieram-me momentos de descrença;
e você compreende que era justificada... Sou materialista, pensava eu; não
tenho mais vida que esta; para quê hei de ralar-me com propagandas e
desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e entreter-me
muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só uma vida, que não crê na
vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe ao estado
porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, ao dinheiro porque
ele não é natural, a todas as ficções
sociais porque elas não são naturais, porque cargas de água é que defende o
altruísmo e o sacrifício pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o
sacrifício também não são naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um
homem não nasce para ser casado, ou para ser português, ou para ser rico ou
pobre, mostra-me também que ele não nasce para ser solidário, que ele não nasce
senão para ser ele próprio, e portanto o contrário de altruísta e solidário é
portanto exclusivamente egoísta”
(PESSOA, 2009, p. 18).
Mesmo com toda a série de contestações à lógica do
anarquismo, ainda sem ter a certeza de que o futuro corresponderia às expectativas
almejadas pelos anarquistas e sacrificando todos os benefícios pessoais em prol
dos demais, o banqueiro continuou na luta, fazendo divulgação e propaganda dos
ideais. No entanto, ele percebeu que no grupo de seus companheiros libertários
foi se criando uma tirania interna.
Ocasionalmente um mandava e o outro obedecia, e quase nunca era pela razão.
Isso se tornou preocupante, pois nesse caso não era uma tirania de uma ficção
social que já existia, porém uma nova tirania social criada dentro de um
conjunto de pessoas que propunha a liberdade. Além desta, outro tipo de tirania dava as
caras também: a tirania do auxílio.
Sim, o altruísmo, a ajuda ao outro, se tratava na verdade de uma tirania a
partir da arrogância. Porque “auxiliar alguém, meu amigo, é tomar por incapaz;
se esse alguém não é incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supô-lo, isto é, no primeiro
caso, uma tirania, e no segundo caso parte-se, pelo menos, inconscientemente,
do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade” (p.
24). Que problema sério colocado! A questão se desdobra em duas: da servidão
voluntária daquele que espera sempre o outro fazer por ele; ou da tirania
brotada da arrogância de supor ser mais capaz/melhor que o outro, mostrando o
caminho correto no qual esse deve seguir, mais ou menos assim como as
vanguardas revolucionárias fazem, sejam no comunismo ou no anarquismo. Afinal,
eles são os sábios/conscientes e o(s) povo(s) são os burros/alienados!
A sobreposição de uns pelos outros se dava conforme
o grau das qualidades naturais de cada um, pela inteligência, imaginação ou
vontade. Entretanto, de onde a tirania, através do uso dessas faculdades naturais,
provinha? O banqueiro então levanta duas hipóteses. Pode ser que o homem seja naturalmente mau. Ou então
essa tirania é uma perversão adquirida
pelo homem a partir de uma sociedade recheada por ficções sociais que o oprime
e o enrijece. Por sua vez, a humanidade, enquanto criadora de tiranias,
propicia que o homem faça uso de suas faculdades naturais de maneira tirânica. A
primeira hipótese é impossível de
ser resolvida pela ciência, pois teríamos que voltar a um lugar muito distante
na história onde o homem vivesse de modo totalmente natural. Pela mais provável,
a segunda assertiva é mais verossímil, já que todos os registros de sociedades passadas
mostram existência de opressão e de tirania, quase sempre atreladas às ficções
sociais. A partir desse ponto do diálogo, ele usa um sofismo, porque parte de
uma afirmação imprecisa para extrair
uma conclusão precisa e objetiva.
Qual é esta?
Num estado social em que vivemos não é possível
trabalharmos juntos sem criarmos uma tirania social entre si. Portanto, resta
para todos os anarquistas trabalharem para o mesmo fim, porém separados. Deste
modo, ninguém vai tiranizar ninguém, todos trabalharão para a liberdade sem
criarem uma nova tirania social além das ficções sociais já existentes. Esse
deve ser o trabalho dos anarquistas na preparação para a revolução social, conclui o banqueiro. Entretanto, nenhum dos
camaradas de luta aceitou essa condição, aliás, chegou a sair nos socos com
alguns, conta. O banqueiro conclui, portanto, que seus camaradas de movimento
eram uns covardes e parasitas, pois queriam que os outros dessem a liberdade para eles, só que isso é impossível se não for
por meio da “tirania do auxílio”; conclui-se que a liberdade não pode ser
outorgada ou conferida, mas precisa ser conquistada – assim como já havia
escrito Max Stirner. Por fim, o banqueiro diz que se seus colegas não querem
ser anarquistas. Então ele o será, conquistando sua própria liberdade.
Para conquistar a liberdade é preciso atacar as
ficções sociais, superando-as ou
suprimindo-as. E aqui começa sua justificação final de como é possível ser
anarquista e banqueiro ao mesmo tempo. Ele faz as seguintes ponderações: qual é
a ficção social mais importante atualmente? O dinheiro. Como subjugar a força
ou a tirania do dinheiro? “Tornando-se livre da sua influência ou da sua força,
reduzindo sua atividade no que dizia respeito de mim”, pontua. Pois é o máximo
que o indivíduo pode fazer, já que a destruição completa do dinheiro só é
possível pela revolução social. Como
combater o dinheiro? O processo mais simples era ir para o campo ou bosque,
comer raízes, andar nu e viver como um animal. Bom, mas isso não é um combate,
isso é uma fuga das ficções sociais! Por isso, a saída para travar o combate
indo ao encontro do inimigo é adquirindo cada vez mais dinheiro. Assim,
conforme a quantia aumentar menor será a influência do dinheiro. É aí que o
personagem conta que entrou numa “fase comercial e bancária do (seu) anarquismo”.
No entanto, o interlocutor objeta dizendo que ele
fez o contrário do anarquismo e criou uma tirania, a tirania do capital. Ele
justifica dizendo que esta tirania já existia e todos já estão acostumados com
ela (embora não seja o ideal). O problema é quando se cria uma nova tirania em que
as pessoas não estão acostumadas, ainda mais quando se defende a liberdade e gera
o autoritarismo. Novamente o interlocutor contraria o banqueiro; vejamos a
passagem:
Interlocutor:
O verdadeiro anarquista quer a liberdade não só para si, mas também para os
outros... Parece-me que quer a liberdade para a humanidade inteira...
Banqueiro:
Sem dúvida. Mas eu já lhe disse que, pelo processo que descobri que era o único
processo anarquista, cada um tem de libertar-se a si próprio. Eu libertei-me a
mim; fiz o meu dever simultaneamente para comigo e para com a liberdade. Porque
é que os outros, os meus camaradas, não fizeram o mesmo? Eu não os impedi. Esse
é que teria sido o crime, se eu os tivesse impedido. [...] Auxiliá-los? Também não
podia ser, pela mesma razão. Eu nunca ajudei, nem ajudo, ninguém, porque isso,
sendo diminuir a liberdade alheia, é também contra os meus princípios. [...]
Interlocutor:
Mas esses homens não fizeram o que você fez, naturalmente, porque eram menos
inteligentes que você, ou menos fortes de vontade, ou...
Banqueiro:
Ah, meu amigo: essas são já as desigualdades naturais, e não sociais... Com
essas é que o anarquismo não tem nada.
***
Pitacos
safados!
O banqueiro de Fernando Pessoa, embora faça um
raciocínio filosófico mais com intuito provocativo, usando figuras de linguagens
e prerrogativas pouco precisas, adota uma descrição bastante verossímil do
anarquismo, todavia seus argumentos possuem algumas incongruências em relação aos
filósofos anarquistas. Proudhon
(1975), por exemplo, tentou explicar como era possível “neutralizar” a
desigualdades das faculdades naturais por meio do mutualismo e da criação de
laços fraternais e racionais entre os cidadãos. Mas esta é uma discussão
recorrente nos outros autores, cada um tentando resolver da sua maneira; porém
nunca a aceitando como uma condição-limite.
(Alemanha, 1806-56) |
Para além das brincadeiras e ironias, não há
dúvidas que a filosofia anarquista contém uma série de contradições,
especialmente se tentarmos compor um corpo mais ou menos coeso dos autores, concepções
e práticas. Algumas das contradições aparecem na lógica do personagem de
Pessoa. Nesse sentido, o raciocínio do banqueiro joga o anarquismo contra ele
mesmo, através de argumentos muito parecidos com os quais Max Stirner (2009) utilizou em 1844 para atacar não só o Estado e a
religião, mas também o cientificismo, o socialismo e o liberalismo atravessados
e fundamentados por conceitos metafísicos como a humanidade, o homem, o
trabalhador, o burguês – tudo isto para o autor é uma “alienação” do único, do
indizível, do egoísta, do eu. Contudo, penso que Stirner nunca fora anarquista
ou, pelo menos, fuja da concepção de anarquismo dos filósofos clássicos.
Sobretudo, porque o anarquismo de Proudhon e Bakunin, por exemplo, nunca negou
totalmente a moralidade, tampouco a ética colada à moral enquanto conjunto de
regras ou preceitos partilhados numa
dada comunidade, mesmo que seja diferente da sociedade vigente em que viveram
(embora eu acredite que nem assim estejam tão distantes). Ouso afirmar, que o
anarquismo não se resolve simplesmente por uma questão racional ou lógica
levada ao extremo, como fizeram o banqueiro de Pessoa e Stirner, mas passa por
uma prerrogativa de “acreditar em algo” para além do que é totalmente coerente
e não-contraditório, e seja completamente explicável ou lógico. Uma fé? Sim,
uma fé.
Referências:
PESSOA, Fernando. O banqueiro anarquista. [Lisboa]: CNT – A Corunha, 2009 [1922].
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?
Lisboa: Editorial Estampa, 1975 [1840].
STIRNER, Max. O
único e a sua propriedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1844].
Link do livro em pdf: O banqueiro anarquista.
Munhoz,
ResponderExcluiragradeço pelo comentário deixado lá no meu blog e pela gentileza em colocá-lo em sua lista de indicados. Também gostei dos textos e da proposta do site e estou divulgando o seu na minha página principal. Até porque a lógica do blog é essa, fazer parcerias e divulgações.
Abraços
Bertone
olá rapaz!
ResponderExcluirfazia tempo que não comentava aqui, na verdade, fazia tempo que não "comentava" nem no meu blog - mas nos últimos dias, depois de voltar de uma longa viagem, voltei aos blogs. e mais uma vez, parabéns pelos escritos, pela iniciativa. vi que agora tem até página no facebook, rs.
mandarei-te um e-mail no endereço que está no blog.
abraço.