segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O fim e a forma: arte e política em Benjamin e Rancière

♪♪ Cravos e Tulipas bombardeiam,
um jardim novo se levantará.
O Jasmim urge do solo sem medo ♫
 (Fernando Anitelli)

Neste post, pretendo descrever e comentar algumas considerações bastante específicas destes dois autores sobre a arte e sua relação com a política na contemporaneidade. Os textos que usarei são o clássico “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” de Benjamin e o segundo capítulo do livro (em forma de entrevista) “A partilha do sensível” de Rancière. Antes de começar, acho importante fazer uma abordagem sucinta sobre a historicidade da produção dos dois teóricos.

Walter Benjamin é um filósofo alemão-judeu, ligado a Escola de Frankfurt, que se fundamenta sob uma perspectiva teórica marxista. A paisagem histórica desta corrente de pensamento pode ser ilustrada pela ascensão e desdobramento dos regimes políticos totalitários (nazismo e fascismo); por isso, além das contraposições ao capitalismo, colocadas comumente pela tradição marxista, a tendência destes autores é fazer uma crítica à razão instrumental ligada ao Iluminismo e o mito, que se criou especialmente desde Hegel, de que a sociedade humana se emanciparia através da razão. Os frankfurtianos denunciam a desgraça gestada por essa crença “ingênua”, marcada principalmente pelo holocausto, que só foi possível pelos recursos tecnológicos e saberes científicos disponíveis para a invenção daquela ideológica máquina de exclusão e extermínio. Neste sentido, Benjamin defende a importância do papel social dos intelectuais em mapear os lugares políticos para o exercício da cidadania e em desmascarar as ideologias totalitárias transmitidas agora pelos veículos de arte da Indústria Cultural.

Walter Benjamin (1892-1940)
O texto de Benjamin foi publicado em 1955 e tem a atenção voltada especialmente para o cinema, todavia contém exposições teóricas sobre outras modalidades de arte. O cinema marca, com a eclosão da fotografia, a era da reprodutibilidade técnica de uma maneira inédita na arte. O autor diz que a principal característica da “reprodução da obra de arte” é a perda do “aqui e agora” da criação artística. Sem essa particularidade, a arte tem sua “aura” murchada e perde sua autenticidade. A singularidade da arte estava assentada no contexto da tradição, que entra em decadência conforme o crescer das massas. Aqui, opera-se uma mudança, pois antes a obra de arte tinha uma função ritual, primeiro mágica e depois religiosa. Acredita-se, por exemplo, que homens da caverna desenhavam alces na pedra para ritualizar uma caçada. Até mesmo, a estátua da Vênus esteve ligada a diferentes modalidades de culto mágico-religiosas – da cultura helênica de Grécia e Roma antiga à Renascença ocidental, mesmo profana, sustentando o valor de culto à beleza.

Para Benjamin, na modernidade uma corrente que defende e pratica a “arte pela arte” fez surgir uma teologia negativa na forma de arte pura que recusa não só a função social da arte, como também toda finalidade através de uma determinação concreta. Na poesia, Mallarmé foi o primeiro exemplo a fazer isso. Benjamin se coloca explicitamente contra esta posição, pois compreende que a arte possui um fim específico e está ligada a noção de superestrutura, que funciona (se transforma) sob uma dialética mais lenta que a econômica; e é, portanto, determinada e dialógica a outros níveis da realidade social. O que importa é que, na modernidade, com a reprodução técnica, o fim (enquanto objetivo) da arte mudou. Com a derrocada da “autenticidade”, agora a arte não possui mais a função social do ritual, mas da política. Nesse momento, a obra de arte desloca-se do culto para a exposição. Quer dizer, ela não é mais utilizada para ser adorada, cultuada, venerada, porém assistida, mostrada, circulada, transmitida, assimilada, reproduzida. “Na medida em que a era da reprodutibilidade técnica da arte a desligou dos seus fundamentos de culto, extinguiu para sempre a aparência da sua autonomia. Mas a alteração da função da arte, que com isso se verificou, deixou de existir [...] no século XX, que assistiu a evolução do cinema”, escreve Benjamin (1985, p. 174).

O autor alemão acredita que o fascismo soube deslocar “o valor de culto” para um líder (ou para um ideal), introduzindo a estética na política através da guerra – a guerra televisionada, radializada, reproduzida, encenada em estúdio; nela ao mesmo tempo o medo de morrer, que leva a resignação, e o despertar da luta “simulada” pela sobrevivência, visa manter conservadas as relações de propriedade. Por isso, enquanto o capital ditar as normas produtivas do cinema atual, a única perspectiva revolucionária possível é a mudança das regras das concepções tradicionais de arte – incipiente para o autor. Pois, embora o cinema possa fazer uma crítica revolucionária das relações sociais, mesmo das de propriedade, pensando no âmbito do estímulo à práxis, o cinema não promove hábitos de atenção, mas de distração. “A humanidade que, outrora, com Homero, era um objeto de contemplação para os deuses do Olimpo, é agora objeto de autocontemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assumir a sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isso o que se passa com a estética da política, praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte” (BENJAMIM, 1985, p. 196).

Muita água passou embaixo da ponte depois que Benjamin escreveu seu texto. Os comunismos soviético e alemão-oriental exaltados outrora, hoje são tratados como faces do totalitarismo. A denúncia da estetização da política e da “arte pela arte” que, segundo Benjamin, era artifício utilizado pelo fascismo, no entender de Rancière contém uma “forma” libertadora; enquanto isso, “a politização da arte”, com um fim específico é, ou pode, na verdade, assentar-se sob um fascismo da sensibilidade gerenciado pela ordenação às maneiras de experimentar a arte.

Jacques Rancière (1940)
Rancière tem, igualmente a Benjamin, um apoio teórico em Marx, mas não deixa de render suas homenagens a Mallarmé, criticado pelo frankfurtiano. O contexto histórico da produção intelectual de Rancière se inscreve no esgotamento das ideologias modernas e nas crises da democracia (ou do despotismo) capitalista – seu livro-entrevista foi publicado em 2000. A abordagem rancieriana está próxima ou se liga à Teoria Francesa e ao Pós-Estruturalismo, que também criticaram a razão instrumental, mas, ao contrario da Escola de Frankfurt, não caíram num fosso apocalíptico nem apostaram (ainda) suas fichas num modelo universalizante de sociedade, seja socialista, anarquista ou liberal, tampouco num protagonismo dos intelectuais para conduzir a comunidade – contudo, não deixam de apontar os abismos e as trevas do modelo social atual e permitem sim entrever uma possibilidade de outro funcionamento, se não social, da(s) vida(s).

Enquanto Walter Benjamin destaca a importância da arte de acordo com o “fim” (a finalidade) que ela carrega ou pode desempenhar – pois assim a vanguarda intelectual socialista poderia usá-la para construir a consciência de classe proletária ou para a humanização da população (já no comunismo) ambas com vistas à politização das massas –, Rancière acredita que o crucial da arte é a sua “forma”, sem necessariamente estar voltada para um “fora da arte”, ou seja, sem ser criada para educação política literal. Todavia, isso não significa que o autor pense a arte desconexa do social, tampouco da política. Pelo contrário, a política apreende e aprende com a arte observando – e quem sabe copiado-a – a partir do exemplo das regras (ou atentados a estas) de funcionamento de suas formas específicas. E quais formas seriam estas?

Em vez de “forma”, Rancière usa a palavra “regime” para descrever três modalidades de identificação da arte. O primeiro é o regime ético das imagens. Trata-se de saber no que o modo de ser das imagens (das figuras enunciadas num texto, num filme, numa pintura) concerne caráter (ethos) à maneira de ser dos indivíduos e das coletividades. A arte, nesse caso, tem uma finalidade específica de educar e de instruir pelo exemplo do padrão que é demonstrado, figurado. Podemos exemplificar aqui o teatro político usado por militantes comunistas e anarquistas para fins didáticos de conscientização da classe operária, ou ainda o herói do filme hollywoodiano que não solta à mão do vilão quando este está prestes a despencar de um desfiladeiro. As regras éticas-morais de uma comunidade cristã aparecem expressamente nesta cena, já que segundo a doutrina devemos perdoar àqueles que nos fizeram mal e rogar por suas almas. O que importa nesta “forma” de arte é a velha “moral da história” que diz claramente em que tipo de caráter o público deve se espelhar.

O segundo regime é o poético ou representativo. Nesta forma de arte, é a noção de representação (mimesis) que organiza as maneiras de fazer, ver e julgar. A arte poética remonta o esquema descrito por Aristóteles como a representação (imitação) do mundo, onde as regras específicas estão separadas entre: a invenção (inventio), que determina os assuntos; a disposição (dispositio), que organiza as partes do poema ou do discurso; e a elocução (elocutio), que dá aos caracteres e aos episódios o tom e os complementos que convém à dignidade do gênero, ao mesmo tempo, à especificidade do assunto (RANCIÈRE, 1995, p. 25).

O grau de adequação a tais regras, em consonância com a atenção ao apelo moral da comunidade sensível, para a qual a obra é direcionada, define assim as maneiras de fazer e de apreciar as imitações (representações) bem feitas. A configuração das regras nesse regime, ou forma de arte, é inevitável e conscientemente uma analogia com “a visão hierárquica global das ocupações políticas e sociais: o primado representativo da ação sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição, a hierarquia dos gêneros segundo a dignidade de seus temas, e o próprio primado da arte da palavra, da palavra em ato, entram em analogia com toda uma visão hierárquica da comunidade”, escreve Rancière (2005, p. 32). Aqui, a função política da arte não está necessariamente nas imagens, no conteúdo veiculado, nem na assimilação deste, porém no formato que expressa alusivamente os lugares determinados para a ocupação de cada um. Ou seja, há aquele que tem a palavra e aquele que deve ouvir o primeiro. O ouvinte não pode ser falante ao mesmo tempo, assim com a colher de pedreiro não pode ser usada como arma, tampouco o operário pode dar ordens a seu patrão, pois se colocaria no lugar deste e atentaria contra as regras sociais que organizam o papel, a posição e a função de cada um.

Rancière contrapõe as duas primeiras formas com o regime estético da arte. Nascido na modernidade, este “não se faz mais por uma distinção no interior das maneiras de fazer, mas pela distinção de um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte. A palavra ‘estética’ não remete a uma teoria da sensibilidade, de gosto ou do prazer dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. [...] as coisas são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível. Esse sensível [...] é habitado pela potência do pensamento que se tornou estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional etc.” (RANCIÈRE, 2005, p. 32). O regime estético é o paradoxo encarnado na arte, ele desobriga esta a toda e qualquer regra específica e de toda hierarquia de temas, gêneros e artes. É uma forma que atenta contra as outras formas, contra as arquias e arkhés.

Na forma estética, a arte deixa de ser imitação, para ser criação, deixa de representar o mundo, para constituir o próprio mundo, e um mundo sem hierarquias, sem regras, sem qualquer preocupação com a constituição do caráter do público através da figuração das imagens. Porém, esta forma pode agora apresentar (sem precisar educar ou doutrinar) à política uma via alternativa, que paute não mais a exclusão, o totalitário e o homogêneo, mas a convivência com os diferentes, a coexistência dos desiguais que funcionam sob lógicas de regras dessemelhantes, pois próprias, pois autônomas, pois libertárias, pois literárias.


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. A obra de arte da era de sua reprodutibilidade técnica. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 165-196.
RANCIÈRE, Jacques. A literatura impensável. In:______. Políticas da escrita. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 25-45.
RANCIÈRE, Jacques. Dos regimes da arte e do pouco interesse da noção de modernidade. In:______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005, p. 27-44.

3 comentários:

  1. Olá,
    Posso levantar uma questão? Se entendi bem, segundo Benjamin, o narrador tradicional, aquele que dava conselhos, que mantinha a aura nos relatos dentro das comunidades tradicionais, sumiu depois do declínio da arte como culto.
    Como Ranciere lê Benjamin, quanto a essa questão?
    Desde já, obrigada!
    Sou Cibele Lopresti Costa, pesquisadora na área de literatura.

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    1. Oi, Cibele. Agradeço pela visita e intervenção.

      Antes de tentar te responder vou descrever uma nota de rodapé em que Rancière menciona Benjamin. Existem muitas diferenças entre os autores que talvez até impossibilite uma resposta adequada, porque Rancière poderia questionar os pressupostos básicos de Benjamin. Primeiro porque Rancière entende a arte de maneira ontológica, ela (e as imagens em seu interior) tem um fim que aponta para si mesmo. No entanto, o regime ético das imagens, que Benjamin parece seguir, se preocupa em fazer da arte um veículo para concernir caráter aos indivíduos e grupos, e por isso não permite que a arte se individualize enquanto tal. Rancière questiona por isso a noção de “aura” benjaminiana, que leva a um raciocínio falso (que exclui a si mesmo), porque acha que o valor ritual da imagem está ligado ao valor de unicidade da obra de arte (partindo do suposto, advogado por Benjamin, que ela perdeu sua aura assim que perdeu sua função ritual). Ora, se há uma propriedade de “unicidade”, então não pode haver uma especificidade da arte (quem determinou seu valor de culto das imagens, “um fim”, foi ou é o serviço sagrado e não a própria arte). Portanto, “o retraimento de um é necessário à emergência de outro”.

      Rancière não deixa explícita sua posição quanto ao aspecto do narrador. Mas lendo nas entrelinhas, podemos dizer que fato do “narrador tradicional” (que estava fundamentado conforme as regras da tradição retórica ou poética de construção textual aristotélica) ter sido suplantado pela eclosão da literatura “moderna” foi visto de maneira positiva para Rancière. E, de certa maneira, até para o Benjamin, já que esse movimento proporcionou uma popularização da arte e a possibilidade de muitos serem artistas, para além da aristocracia.

      Entretanto, acredito que para Walter Benjamin o problema são os usos que se faz da “arte” quando há um deslocamento para dominação (no caso do fascismo – “estetização” da política) ou quando há desconexão da “arte” à política, como se ela constituísse uma realidade a parte (que neste caso é usada novamente para dominação - no capitalismo -, pois apenas reproduz e nada transforma/revoluciona). A saída que ele encontra aqui está nos intelectuais socialistas que conseguem politizar a “arte”, integrando e conscientizando as massas dessa realidade material. Já no “regime estético” (que só apareceu na modernidade e atenta contra o valor de culto da tradição) defendido por Rancière, ninguém deve dar conselhos a ninguém através da arte, essa não é sua especificidade, pois ela não se preocupa inicialmente (e intencionalmente) com um “fora”, ou seja, com uma comunidade moral a qual pressupõe que todos comungam de valores e ideais idênticos. Por isso, o valor dessa forma de arte está nela mesma, e não no narrador, e não nas formas de concatenar as partes da obra conforme a comunidade, tampouco no literalismo que ela antes transmitia (no regime ético das imagens). O regime estético possui signos sem um significado (ou referente) específico, ele tem possibilidade de apontar para vários referentes; não necessariamente apoiados num “logos” da nossa realidade “material”, pois constitui uma realidade própria e pode ser interpretado de diversas maneiras conforme o espectador/leitor, suas experiências sensíveis e as formas que lhes são transmitidas.

      [Continua...]

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    2. ...

      Se formos pensar o narrador (ou o artista) como um participante da vanguarda política, Rancière aponta para duas acepções de vanguarda. Aquela que “marcha à frente, que detém a inteligência do movimento, concentra sua forças, determina o sentido da evolução histórica e escolhe as orientações políticas subjetivas. Enfim, há essa “ideia que liga a subjetividade política a uma determinada forma – do partido, do destacamento avançado extraindo sua capacidade dirigente de sua capacidade de ler e interpretar os signos da história. E há essa outra ideia de vanguarda que se enraíza na antecipação estética do futuro [...]; do lado da invenção de formas sensíveis e dos limites materiais de uma vida por vir. É isso que a vanguarda ‘estética’ trouxe a vanguarda ‘política’, ou que ela quis ou acreditou lhe trazer, transformando a política em programa total de vida (p. 44). Tem um livro interessante do Rancière que pode ajudar a compreender também o papel do narrador, se chama O mestre ignorante, é sobre como um professor pode conseguir ensinar uma língua ou habilidades e saberes sem sequer possuir domínio sobre tais.

      Apesar do texto longo não sei se consegui responder sua pergunta. Se você não conhece ainda a produção de Rancière, eu recomendo. Tem diversos textos já disponíveis em pdf na Internet.

      Abraços!

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