Esse texto descreve o modo desafiador como o conceito de
literatura é compreendido pelo filósofo Jacques Rancière, no livro Políticas
da Escrita. Na modernidade, houve um deslizamento histórico do (sentido
do) conceito de literatura, que passou do “saber”, quer dizer, do domínio
específico de regras disciplinares de construção textual, à arte, em seu regime
estético (já explicado no texto O fim e a forma).
Até no século 18, existia um saber das letras dotado de (três) regras
particulares de composição textual baseadas na tradição poética de narrativa descrita
por Aristóteles: o pensamento que determina o tema (diánoia); a elocução,
retórica ou fala (léxis); e a disposição das partes, arranjo ou esquema (táxis).
Reparem que as palavras entre parênteses são gregas e estão presentes em alguns
radicais da língua portuguesa, por exemplo, taxonomia, que é a
disciplina da biologia que define os grupos onde os organismos vivos estão
classificados. Portanto, no caso da poética, é um domínio de regras que
classifica e hierarquiza as partes de um texto, ordenando seu formato para
transmitir uma determinada “mensagem” encaminhada pela elocução e retórica. A
retórica, por sua vez, é a arte da persuadir o leitor/espectador sobre um tema
específico – escolhido previamente pelo pensamento, contudo fundamentado numa
importância para a comunidade ou para o público ao qual se destina.
Já no século 19, ao invés do conceito de literatura designar um
saber, passará a denotar um objeto. Sendo, a partir de então, a atividade
daquele que escreve. A mudança de significante (ou referente – aquilo “para
fora” que o significado aponta) passou despercebida e sob essa historicidade, a literatura começou a
englobar as artes das línguas antigas, os textos sagrados, os saberes
retóricos, até os romances modernos, atravessados pelos grandes gêneros
poéticos – trágico, épico e lírico.
Rancière (Argélia, 1940) |
Entretanto, para Rancière a literatura não se refere a este
conjunto de obras tão distintas, pois ela não é o que sucede as belas-artes (da poética, da retórica,
da gramática), porém ela é o que suprime as belas-artes, desnorteando seus
saberes disciplinares. “Há literatura quando os gêneros poéticos e as artes
poéticas cedem lugar ao ato indiferenciado e à arte sempre singular do escrever”, aponta Rancière (1995, p. 26). A literatura
é uma experiência e uma prática autônomas da linguagem – por exemplo, através
da poesia lírica e do romance, que são marginais da grande poesia épica e
dramática, e da eloqüência. Ela se constitui como um modo do discurso no qual é
a própria realidade que existe, ‘sozinha com exceção de tudo’, como na escrita
de Mallarmé. Quer dizer que, a literatura não precisa de “um fora”, de uma
realidade pré-textual que lhe sirva de conexão e explique a transmissão de suas
mensagens, pois não há uma organização formal, nem o domínio de uma técnica que
concatene as partes e os argumentos para persuadir os leitores. A leitura da
literatura pressupõe um mergulho num mundo
próprio, que não tem relação direta com o exterior. É como se um sonho
fosse a própria realidade e dentro dele as coisas teriam leis físicas de
possibilidade e sentidos “lógicos” totalmente diferentes do estado de “vigília”
(quando “sabemos” estar acordados). Ao mesmo tempo, a literatura engendra o
embaraço ou a desestabilidade da linha que divide o sonho da realidade,
pois mostra que não há uma fronteira onde termina o real e começa a ficção, mas
que o primeiro é construído ao apoiar-se em elementos do último. Um exemplo
seminal (já no século 16) de literatura é Dom Quixote de Cervantes. Ao tomar
contato com os romances de cavalaria, o personagem principal “acredita” que eles
são historicamente verdadeiros e possíveis, e começa a viver “aquela realidade escrita”.
Aristóteles (Atenas, 332 a.C.) |
Embora a literatura marque a ruptura às belas artes, ela
administra a ilusão da continuidade ou da identidade das duas como uma só, pois
permite a coexistência de coisas contrária a ela própria em seu interior, como
as práticas da poética. Em todo caso, poderíamos adequar o nome literatura a
esse conjunto de textos compostos por regras distintas, relativizando seus
significados, pluralizando-os, todavia isso faria escapar a questão central
colocada pela própria literatura, que é a desestabilização à ordem das
classificações entre os modos e os gêneros do discurso; tendo em vista que, a “literatura”
resiste à redução nominalista e desmancha as relações estáveis entre nomes,
ideias e coisas e, junto com elas, as delimitações organizadas entre as artes,
os saberes ou os modos do discurso tradicionais e reconhecidos (p. 27). Se
tomarmos a linguagem como um conjunto de regras específicas de significados e
significantes que formam imagens mais ou menos exatas, e que existe um modelo
de hierarquização entre os gêneros discursivos, então podemos dizer que a literatura
(com limiar na modernidade) é uma guerra da escrita contra a própria linguagem.
Assim, “o ser da literatura seria o ser da língua onde esta se furta às
ordenações que dão aos corpos vozes próprias para colocá-los em seu lugar e em
sua função: uma perturbação na língua análoga à perturbação democrática dos
corpos quando só a contingência igualitária os põe juntos” (p. 28-29).
Referência:
RANCIÈRE, Jacques. A literatura impensável. In:______. Políticas
da escrita. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 25-45.
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